Ismael Nery gostava de produzir autorretratos. Seu rosto estampa diferentes telas e desenhos, em ângulos e composições distintas. Dançarino talentoso, não retirava o próprio corpo da arte que fazia. E ao corpo dos outros, muitas das vezes, conferia aspectos andróginos. Absurdamente em consonância com a produção atual, o artista que produziu seus trabalhos no primeiro terço do século XX, faz lembrar o presente de selfies, performances e “questão de gênero”. Enfocando a contemporaneidade que o tempo foi capaz de lhe dar, a exposição “Ismael Nery: feminino e masculino” traça o olhar singular do experiente curador e crítico de arte Paulo Sergio Duarte para a obra de um artista ainda refém das sombras que esse mesmo tempo lhe impôs.
Dividida em seções — nus, figuras, retratos e autorretratos, danças, cenários e surrealismo —, a mostra oferece-se como uma lente de aumento para uma obra de múltiplas nuances e perspectivas. Professor de história da arte e pesquisador do Centro de Estudos Sociais Aplicados da Universidade Candido Mendes e da Escola de Artes Visuais do Rio de Janeiro Parque Lage, Paulo Sergio potencializa o discurso transgressor de Ismael. “Tratar não somente de modo ambíguo, mas ambivalente mesmo a questão de gênero marcou diversos momentos de seu processo de trabalho, de um modo único e muito corajoso na arte moderna, não somente brasileira”, defende o curador, em entrevista por e-mail à Tribuna.
Responsável por retrospectivas de peso como a dos construtivistas Lygia Clark, em 2012 no Itaú Cultural, e Amílcar de Castro, em 2014 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o curador de “Ismael Nery: feminino e masculino” tornou-se um especialista em reposicionar a arte e seus artistas. Ao reler o curto, porém prolífico, trajeto do artista paraense radicado na Zona Oeste carioca, Paulo Sergio não apenas reordena um percurso, mas promove a justiça histórica que Murilo Mendes, amigo de Ismael, sempre reivindicou. Para o crítico e pesquisador, o ineditismo de Ismael, capaz de justificar sua solidão no cenário artístico nacional, não concorda com o esquecimento que a atual mostra deseja reverter.
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Tribuna – Qual o lugar de Ismael Nery nas artes visuais brasileiras?
Paulo Sergio Duarte – Ismael Nery (1900-1934) ocupa um lugar muito especial na arte brasileira. Vejamos: Na verdade, toda a arte moderna brasileira é constituída de singularidades, dos anos 1920 até os anos 1940. Tarsila do Amaral (1886-1973), Alberto da Veiga Guignard (1896-1962), Emiliano Di Cavalcanti (1897-1976), Lasar Segall (1889-1957), José Pancetti (1902-1958), Candido Portinari (1903-1962), Cícero Dias (1907-2003), Djanira da Motta e Silva (1914-1979), para citar apenas alguns, são todos singulares. A arte moderna brasileira na primeira metade do século XX é um arquipélago de ilhas singulares que não formam um território contínuo. Entre essas ilhas, muitas se unem ideologicamente na busca de uma arte “essencialmente” brasileira, a conhecida busca da identidade que dominou até o final da década de 1940. Mas um território contínuo só se formará com a chegada dos abstracionismos informal e geométrico desde o início da década 1950, quando passa a se procurar uma espécie de esperanto visual que se dirigisse a qualquer público, pouco importando sua nacionalidade. Aí sim, não são os artistas apenas que conversam entre si, são as obras que dialogam por meio de linguagens comuns num mesmo território. É o fim do arquipélago. Ismael Nery é uma dessas ilhas da primeira parte do século passado, apesar de sua curta vida — morre aos 33 anos de idade. Seu lugar é marcado, primeiro, por dar as costas às questões da busca de uma identidade local e preocupar-se com as questões modernas que circulavam no ambiente europeu: o cubismo, o expressionismo, o art déco e, no final, o surrealismo. Em segundo lugar, a obra é toda atravessada por um esforço de tangenciar todas essas linguagens num curto espaço de tempo — de 1918 a 1933 — adquirindo um caráter literalmente experimental em todo seu percurso; e isto é inédito.
Quais dados biográficos de Ismael são importantes para ampliar sua produção artística?
Em primeiro lugar, as condições materiais de sua existência: sua mãe herdou um patrimônio significativo de imóveis não só na sua Belém natal, como no Rio de Janeiro. Isso lhe permitiu dedicar-se à arte muito cedo sem preocupações com a sobrevivência. Há testemunho e registro de sua passagem pela Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, entre 1915 e 1918. Essas mesmas condições permitem que, em companhia da mãe viúva faça uma viagem à Europa, em 1920, por dois anos. Além de estudar um ano na Académie Julian, em Paris, no ano seguinte viaja por países europeus e visita até a Palestina. Depois de se casar, na volta da viagem, em 1922, com a poeta e escritora Adalgisa Nery (1905-1980), então com 16 anos de idade, trabalha por um tempo como desenhista de arquitetura no Ministério da Fazenda, quando conhece aquele que será um de seus maiores amigos e responsável pela preservação de boa parte de sua obra, o poeta Murilo Mendes (1901-1975). Em 1927, com Adalgisa e seu primeiro filho Ivan, nascido no ano anterior, viaja de novo para a Europa, quando conhece os surrealistas, entra em contato com André Breton, torna-se amigo de Marc Chagall, frequentando seu atelier, cuja linguagem marca de modo assumido sua obra em diversos trabalhos.
Você diz das contradições de Ismael Nery. Como isso está refletido em suas obras?
Sendo um católico convicto, inclusive um irmão leigo da Ordem Terceira de São Francisco, com cujo hábito foi enterrado, se dedica a temas sagrados, entre suas obras sacras, estão na exposição no Museu de Arte Moderna de São Paulo “Ismael Nery – Feminino e masculino”, por exemplo, três pinturas sobre papel “Adão e Eva”, os óleos “Cabeça de Cristo” e “João Batista”; ao mesmo tempo não se exime de pintar figuras andróginas, relações sexuais explícitas entre pessoas do mesmo sexo e mesmo sexo grupal em um desenho onde nomeia os participantes: o casal Nery e seus amigos Jorge Burlamaqui, Antonio Bento, Murilo Mendes e outros. Seu Arlequim não é acompanhado da Colombina, mas de um homem. É ou não é uma contradição para um irmão leigo da Ordem Terceira de São Francisco? Além disso, ele e a mulher eram conhecidos pela sua beleza física. No curto tempo de sua vida pintou inúmeros autorretratos com Adalgisa em que exercia o prazer em tornar ambígua a identidade de um e de outro num narcisismo muito claro, nada a ver com um autorretrato de Rembrandt velho e pobre. Defendia ardentemente suas convicções religiosas em rodas de discussões com intelectuais e, grande dançarino, se exibia em performances.
Tendo exercido seu trabalho em consonância com diferentes correntes artísticas, é possível apontar para uma onde Ismael tenha parecido mais exitoso ou, ao menos, mais à vontade?
Sua obra é uma experiência contínua, e exercita diferentes linguagens simultaneamente. Os nus expressivos e as conhecidas chaggallianas, a partir de 1927, são momentos elevados desses exercícios. As experiências com a paleta azul escuro e negro são também obras que se destacam.
“Seu Alerquim não é acompanhado da Colombina, mas de um homem. É ou não é uma contradição para um irmão leigo da Ordem Terceira de São Francisco?”
De que maneira Ismael Nery está presente na arte contemporânea brasileira? É possível apontar artistas que ele tenha influenciado?
A obra de Ismael Nery foi salva, em grande parte, pelo amigo Murilo Mendes, que pagava uma empregada para, ao final de cada dia retirar do lixo tudo que ele jogava fora, e lhe entregasse. O poeta guardou essa porção muito representativa de seu trabalho e entregou à viúva depois de sua morte em 6 de abril de 1934. Durante a vida realizou pouquíssimas exposições individuais — todas mal recebidas pelo público e pela crítica, com raras exceções. Sua primeira retrospectiva foi realizada pelo marchand Franco Terranova, na Petite Galérie, no Rio de Janeiro, em 1966, portanto 32 anos depois de sua morte. Durante esse período, salvo para pouquíssimos colecionadores e artistas, Ismael Nery era desconhecido do público. O primeiro livro importante sobre sua obra foi publicado com texto do amigo Antonio Bento, em 1973, quase 40 anos depois de seu desaparecimento. Assim ficou difícil ele influenciar artistas. Sua presença é uma lição permanente da coragem de caminhar sozinho e sobretudo não hesitar em experimentar as linguagens mais recentes de seu tempo. Hoje, é trivial discutir as questões de gênero e de raça, mas qual dos “modernistas” brasileiros se atreveria a pintar, em 1928, uma mulher branca nua sendo abraçada por um negro?