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O garçom que vende água e doces no semáforo da Avenida Brasil com a Benjamin

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“Já dormi ali”, aponta Marcelo Canavezzi dos Santos para o albergue da Rua José Calil Ahouagi. “Não tinha nenhuma renda, pegava a fila e dormia no albergue. Mas tinha a certeza de que sairia daquilo. Um dia, descarreguei um caminhão de chapa de aço, ganhei R$ 15, comprei uma caixa de isopor, gelo e água. Comecei no sinal com um fardo só de água. No princípio foi difícil, mas toda a renda que ia entrando eu ia multiplicando. Hoje faço trufas, suco de laranja, suco de açaí com guaraná, vendo água com gás e sem gás, refrigerante, mercadorias de qualidade”, orgulha-se o homem, que desde abril trabalha com calça social e sapato pretos, camisa impecavelmente branca e passada e gravata borboleta, segurando uma bandeja de metal com os produtos e uma toalha branca no braço, na esquina da Avenida Brasil com a Rua Benjamin Constant. Sua base é um carrinho de compras, com isopores encapados de preto, novinho em folha e estacionado sob um guarda-sol num posto de gasolina.

Marcelo vende água, refrigerante, sucos e trufas, agora uniformizado (Foto: Felipe Couri)

“Aquele sinal, por sinal, era muito ruim, e ninguém queria trabalhar nele”, conta. “Mas decidi que iria transformar ele. No princípio, estava com roupa comum. Em abril, comecei a usar uniforme para mostrar aos motoristas que, além de estar ali trabalhando, ofereço um serviço de valor”, explica. “Não é melhor pedir do que roubar. É melhor trabalhar”, defende. O serviço que o homem de 44 anos oferece no tempo veloz em que os carros param e os pedestres atravessam demarca mais uma de suas muitas voltas por cima. A primeira delas, imposta ainda antes de falar. “Assim que nasci meus pais se separaram e eu não conheci minha mãe”, recorda-se ele, que, nascido no Rio de Janeiro, cresceu os primeiros anos num abrigo. O pai, que esporadicamente fazia visitas a ele e a um dos irmãos, assim que se casou voltou para tirá-los do lugar. “Sofri mais quando era criança do que quando adulto. Praticamente nasci preso, porque não via a rua, não fazia nada”, conta ele, que, ao lado de três irmãos, do pai e da madrasta, conheceu Juiz de Fora aos 19 anos. “Meu pai, na época, trabalhava numa firma de móveis que se mudou para cá. Por aqui ficamos”, conta ele, que começou uma nova história em Minas Gerais.

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Para ser doce

Há cerca de dez anos, quando trabalhava no depósito da loja Tetê Festas, Marcelo fez o curso de trufas oferecido aos colaboradores. Sabia que algum dia poderia precisar. “No inverno, sai pouca água no sinal, então precisava colocar alguma coisa quente. Pensei em chocolate quente, mas não funciona, porque o sinal fica fechado, no máximo 42 segundos. Quando o fluxo de veículos aumenta, diminui ainda mais o tempo. Daí tive a ideia das trufas”, conta ele, que vende o doce com recheio de coco, morango, amendoim ou a novidade em cereja. A passagem pelo comércio se soma aos empregos na Votorantim, na Mercedes-Benz e em muitas outras empresas. Ao longo de suas primeiras três décadas de vida, o homem de cabelos habilmente moldados em gel teve casa, carros, gozava de prestígio no Benfica onde seus familiares moravam, até que conheceu a droga e a dura realidade das ruas. Mais uma vez, era preciso reerguer-se para escrever uma nova história.

Trabalho do garçom se concentra nas esquinas da Avenida Brasil com a Rua Benjamin Constant (Foto: Felipe Couri)

Para ser outro

O trabalho no sinal deveria ser efêmero, conta Marcelo. Com o dinheiro das vendas de um ano, ele conseguiu, em dezembro passado, renovar a carteira e trocar a categoria para ser motorista de ônibus. Mas a falta de experiência e a passagem pelo sistema prisional tornaram-se entraves para um recomeço. O homem que tomou coragem de seguir outro caminho só encontrou portas fechadas. “O preconceito existe, sim. O negro é discriminado, as mulheres são discriminadas, os ex-presidiários são discriminados, todos são. E as empresas não dão oportunidade para quem quer se renovar”, lamenta ele, que decidiu, então, recuperar-se revitalizando a rua e um ofício. “No Brasil, o garçom não tem muito valor. Nem carteira assinada costuma ter, ou se assinam, é para ganhar apenas a comissão”, comenta, certo de que a visibilidade que oferece aos profissionais da área ajuda no processo de valorização dos garçons da cidade. “Tive um período ruim na minha vida. E decidi refazer tudo. E, para mim, tenho uma história que ficou para trás. Quando a gente crê e se empenha, as coisas acontecem. O mundo pode até virar as coisas, mas se tiver força, consegue se reconstruir.”

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Antes do trabalho nas ruas, Marcelo faz trabalho voluntário, ajudando pessoas em situação de rua, condição que experimentou no passado, hoje superado (Foto: Felipe Couri)

Para ser melhor

Há um ano, Marcelo vive num apartamento na mesma rua do albergue que lhe serviu, com a companheira com quem está junto há, também, um ano. Evangélico da Universal – a fé, segundo ele, ajudou-lhe no processo de se reerguer -, ele hoje ajuda, voluntariamente, nos trabalhos da Fundação Maria Mãe. Por volta das 6h da manhã, Marcelo segue para casa de caridade, para ajudar a servir o café da manhã dos assistidos, em sua maioria pessoas em situação de rua. No local, ele fica até as 9h, quando retorna para casa e prepara-se para seguir até o sinal onde trabalha. Às 10h, ele estaciona o carrinho na esquina e fica até as 18h. “Em casa, vou para a prorrogação, para fazer as coisas para vender no dia seguinte”, ri. “Já desenhei um novo carro, porque o que tenho já não está dando conta. Tudo partindo de R$ 15. Hoje tenho estoque, 60 barras de chocolates guardadas, tudo em casa. Moro num apartamento todo montado, pago meu aluguel, trabalho honestamente. Não gosto de pegar o microfone para contar minha vida. Meu testemunho é o todo dia”, orgulha-se ele, pai de dois filhos, um de 21 e outro de 20, frutos de relações anteriores. “Errei muito. Um sonho que tenho é que eu permaneça como estou, sem olhar para trás e seguindo em frente, como Abraão, que conseguiu escrever uma nova história deixando o passado para trás. Espero que eu consiga construir a família que eu nunca tive.”

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