Um pergunta restou. Faltou questionar a Luís Otávio Santos se escolheria outro ofício se não tivesse nascido na família Sousa Santos. No silêncio da frase não dita, contudo, surgem as especulações acerca da pergunta que guarda em si a premissa errada de que o filho caçula de Maria Isabel e Hermínio Sousa Santos foi apenas influenciado pelos gostos e atividades familiares. Se não houvesse Luís Otávio também haveria Pró-Música tal qual foi criado? Em cerca de uma hora de conversa, por telefone, tornam-se claras as interseções que fazem com que uma coisa remeta a outra: o músico remete ao projeto e o projeto remete ao músico. A distância física, contudo, sempre fez parte dessa interação. Nascido em Juiz de Fora, o violinista se profissionalizou no exterior e radicou-se em São Paulo. Permaneceu por perto, como uma das principais vozes intelectuais do centro cultural criado um ano antes de sua chegada ao mundo. Em 2014, após 15 edições como diretor artístico do Festival de Música Colonial Brasileira e Música Antiga, afastou-se.
“Queria ir mais para Juiz de Fora, por questões familiares, uma coisa puramente privada. Agora temos mais tempo. Na época do Pró-Música você não tinha ideia de como aquilo engolia nossa rotina. Era uma máquina enorme, e nós ficávamos reféns de um sonho. Agora temos mais tempo para ficarmos juntos, viajar. O que me prende à cidade, agora, é a minha família e meus laços de coração”, comenta o músico, referindo-se à doação de todo o patrimônio material e imaterial do Centro Cultural Pró-Música à UFJF, em processo iniciado em 2011 e finalizado quatro anos depois. A ruptura, no entanto, proporcionou novos gestos para o artista reverenciado, em 2005, com o “Diapason d’Or”, mais alto prêmio francês de música, pelo registro das sonatas para violino de J. M. Leclair e com a Ordem do Mérito Cultural, do extinto Ministério da Cultura, em 2007. Desde 2015, Luís Otávio Santos assina como diretor do núcleo de música antiga do aclamado Festival de Campos do Jordão, que chega à 50º edição neste ano. Nos últimos dias 12 e 13, o músico regeu o Grupo de Música Antiga do Festival como resultado dos estudos desenvolvidos ao longo de semanas no evento paulista. Nesta sexta (26) e neste sábado (27), comandou a Camerata Antiqua de Curitiba, interpretando Händel.
Aos 47 anos, pai de dois filhos – Mateus, de 13, e Iasmin, 10 – frutos do casamento com a musicista Natalia Chahin, Luís Otávio coleciona novas funções, como professor e regente de sinfônicas pelo Brasil. Prepara-se, agora, para sua segunda vez à frente da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Osesp, após uma elogiada montagem de “A paixão segundo São João”, de Bach, com os Músicos de Capella, na Sala São Paulo, no ano passado. “O resultado final foi animador. Não só se integra uma obra sacra ao calendário litúrgico numa sala de concertos, mas em performance com músicos e cantores brasileiros (graças à competência de Luís Otávio)”, escreveu o crítico João Marcos Coelho, no jornal “O Estado de S. Paulo”. De Campos do Jordão, Luís Otávio, em entrevista à Tribuna, falou sobre a formação, os trabalhos que desenvolve, a potência da música antiga, o cenário nacional e sobre a paixão, que é influência familiar e também inspiração para os Sousa Santos. “Tudo tem que ser consequência da paixão.”
Tribuna – Quando você nasceu seus pais haviam acabado de criar o Centro Cultural Pró-Música. Isso foi determinante para que se tornasse o músico que é hoje?
Luís Otávio Santos – Sou o irmão caçula de uma família toda imersa na música. É uma história fantástica, um roteiro de filme. Quando cheguei, o cenário familiar já estava montado, tanto é que fui o que mais se beneficiou, podendo respirar a música por todo tempo. Fui para Europa com 17 anos, fui estudar no Conservatório de Haia, na época a grande meca da música antiga. Foi supercedo, foi uma aventura, e eu estava predestinado para fazer isso. Ia e não sabia o que iria acontecer. Acabei ficando durante 16 anos. Aos 18 anos, eu já tinha uma carreira, participava de CDs que ganharam prêmios. Com 20 anos, eu já era professor no Conservatório de Bruxelas. Uma coisa foi puxando a outra. Eu nunca forcei nada. Gosto de ensinar para os meus alunos que tudo tem que ser consequência da paixão pelo que a gente faz. Não pensar muito no resultado, mas pensar nas ferramentas que estamos usando. Aprendi e convivi com grandes mestres, e alguns desses velhinhos nem estão mais aqui. Eles começaram esse movimento da música antiga na década de 1950. Foi um legado que recebi e que eu sentia a importância e o peso. Mesmo tendo uma carreira na Europa, todos os anos eu voltava para o Brasil para trazer isso. Depois fiz meu doutorado, porque senti a necessidade de concretizar o que aprendi em pesquisa científica. Terminei meu doutorado falando do paradoxo que é o ensino da música antiga no sistema metodizado da escola moderna. Todo o meu trabalho, seja teórico ou prático, sempre girou ao redor da paixão pela música antiga e pelo violino barroco.
Porque voltou para o Brasil?
A volta para o Brasil foi maluca. Decidimos, eu e minha mulher, ter filhos aqui e não lá. Não queríamos viver como imigrantes indefinidamente. Como tive a oportunidade de manter a minha carreira fazendo turnês na Europa sem importar onde eu morasse, voltamos, e eu pude ter uma atuação mais intensa aqui. Minha trajetória tanto musical quanto de vida – e uma coisa não se desassocia da outra – nunca foi linear. Na verdade nunca deixei o Brasil e nunca deixei a Europa. Da mesma forma, minha atividade pedagógica nunca foi desassociada dos palcos.
“Na verdade nunca deixei o Brasil e nunca deixei a Europa. Da mesma forma, minha atividade pedagógica nunca foi desassociada dos palcos”
Sua mãe, Maria Isabel, conta de uma lembrança de te ouvir tocar repetidamente assistindo gravações. Esse comprometimento, esse empenho, essa determinação também te ajudaram na formação?
Imagina Juiz de Fora nas décadas de 1970 e 1980: não havia nada. O trabalho que meus pais fizeram foi o de plantar um grande jardim que floresceu e permitiu chamar Juiz de Fora de uma cidade com vocação musical. Tive minha formação inicial dentro desse celeiro que foi o Pró-Música. Depois fui estudar violino no Rio de Janeiro e muito cedo fui estudar em Haia. Toda a minha formação curricular, acadêmica, é europeia. Meus diplomas são holandeses, tanto a graduação quanto o mestrado. Só o doutorado eu fiz na Unicamp. Não tive uma formação autodidata porque fui muito bem orientado por todos os professores que vinham dar aulas no Pró-Música e depois os que busquei no Rio de Janeiro, mas o país nos anos 1980 era outro. Aparecia um LP, e a gente ouvia até furar. Quando tinha foto, a gente queria ver o quer estava por trás. A precariedade das informações era tamanha. A gente escrevia cartas. Para fazer um ligação internacional no telefone, não podia passar de dois minutos, porque caía e custava caríssimo. O universo era completamente diferente do que a garotada vive hoje em dia. Alerto muito para a banalização da informação e como isso cria certo desinteresse e anestesia a informação de qualidade. Naquela época, quando chegava um VHS ou um LP, era sinônimo de coisa boa, porque somente as coisas boas circulavam dessa maneira. Um disco era um professor que acompanhava a gente por muitos anos. Eu ouvia, tocava junto e só falava naquilo.
O perfeccionismo que muitos apontam como uma característica sua é fruto dessa consciência de caminhada?
Não tenho o menor conflito em relação à minha paixão. Insegurança com a música, não tenho. Sempre quis isso, procurei com muita intensidade. O prêmio, a recompensa, é fruto disso, desse tesão, dessa insistência de buscar um sonho. O perfeccionismo é uma característica minha porque gosto das coisas benfeitas. Música para mim é um exercício de evolução, não só espiritual, mas física também. A gente quando está melhorando e buscando uma qualidade musical mais sublime está cada vez mais perto de algo elevado. Então, sou muito severo com minha profissão e com meus colegas. Não admito coisas pela metade. Torço o nariz para coisas falsas, para os maus profissionais. Tenho um compromisso com essa verdade que está dentro de mim e de cada um de nós. A gente percebe quando há uma coisa maravilhosa: quando vê um filme incrível ou lê um livro que deixa marcas. Essa qualidade artística que a gente percebe é o espelho de uma centelha divina dentro de nós.
“Sou muito severo com minha profissão e com meus colegas. Não admito coisas pela metade. Torço o nariz para coisas falsas, para os maus profissionais. Tenho um compromisso com essa verdade que está dentro de mim e de cada um de nós”
E o que te deixou marcas?
O contato com os artistas que estão em um patamar de ser humano para além da profissão. Tive muita sorte de encontrar seres humanos que usavam a música como ferramenta para falar de outras coisas, muito mais elevadas e mais importantes. Toquei e estudei com holandeses supercélebres, que gravaram LPs que chegaram para mim antes. Eu ouvia eles aqui e trabalhei com eles lá. Eles tinham 60, 70 anos, e eu estava com 17, 18 anos. Isso me marcou profundamente, como mestre e discípulo. Sinto-me na obrigação de passar isso para a frente, não leiloando esse conhecimento para quem não está interessado, mas entregando para quem deseja. As coisas que esses mestres me falaram estavam muito além do simplesmente fazer música.
A doação do Pró-Música para a UFJF também te deixou marcas? Qual é a sua avaliação desse processo?
Isso foi digerido coletivamente ao longo dos anos. É uma opinião familiar. A gente torce para que dê certo. Foi nosso sonho. Uma espécie de esperança para que a iniciativa continuasse indefinidamente e não dependesse da vida da família, mas se transformasse em um projeto da cidade e do país. Se isso está um pouco difícil agora, estamos aí, prontos para ajudar. E, obviamente, para criticar, porque não nascemos ontem e precisamos colocar nossa experiência em evidência. Estamos à disposição para aconselhar e estar presente, torcendo para que esse processo atual dure o menor tempo possível. Que o nosso exemplo, que as 25 edições do festival que fizemos, sirvam de estudo e de análise, para que aprendam com o que foi feito. Que isso não seja assunto do passado, mas que sirva de elementos para o futuro.
Tanto a Orquestra Barroca do Festival quanto o disco com o registro da orquestra não são, hoje, realidades do evento. O que essa perda representa para a cultura brasileira?
Isso fazia parte de um cenário quixotesco. Os discos aconteciam porque havia uma intenção por trás, uma paixão, uma vontade que estava quase além das condições. É fruto do sonho de uma família. E não vejo essa perda como um lamento muito grande, porque o tamanho da realização é muito expressivo. Só da Orquestra Barroca foram 15 CDs. Quantos grupos brasileiros chegam a metade disso em suas discografias? Isso é uma coisa que está fora do contexto do Brasil. É um material que concretiza uma era de forma tão inequívoca e serve de exemplo para futuras iniciativas. É um material de estudo que não se esgota. Fico contentíssimo com essa obra. Se continuássemos, continuaríamos fazendo os discos. Os discos foram feitos com a intenção de divulgar o festival como evento, mas, também, dando um alcance maior para o que a gente fazia em Juiz de Fora. Tem escolas dos Estados Unidos e da Europa que têm esses CDs. Tive a felicidade de colocar em prática uma coisa que sempre quis: trazer o “know-how” da minha carreira europeia para o Brasil. Foram muitos discos que estão pelos quatro cantos. Plantei a semente.
“Tive a felicidade de colocar em prática uma coisa que sempre quis: trazer o “know-how” da minha carreira europeia para o Brasil. Foram muitos discos que estão pelos quatro cantos. Plantei a semente”
Como se deu o convite para que formasse um grupo de música antiga no Festival de Campos do Jordão?
Este é o quinto ano. Fui convidado justamente quando eles tiveram a intenção de abrir uma janela para a música antiga, como um departamento. O festival está completando 50 anos, e a grande marca dele, que virou modelo para outros festivais, é o ensino mais tradicional da música erudita, com instrumentos modernos. Como a música antiga deixou de ser periférica há muito tempo, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, essa necessidade batia na porta do Festival de Campos de Jordão. Com a minha saída da direção do Festival de Música Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora, pela primeira vez consegui ficar livre no mês de julho. Em todos esses 25 anos em que atuei no festival com a minha família eu tinha sempre que recusar convites de outros festivais, como o de Londrina. Eu estando livre, o pessoal de Campos de Jordão abriu esse grupo de música antiga. É um trabalho em construção. Não temos pressa. A intenção é introduzir esse alunos na interpretação histórica da música antiga. Na primeira semana, por exemplo, os alunos fazem a sinfonia de Mahler, a quintessência do repertório moderno tradicional. Na semana seguinte, eles fazem uma obra de Bach, ou a sinfonia de Carl Philipp Emanuel Bach, um repertório bem específico barroco que eles não estão nem um pouco acostumados a fazer. Para eles, em nível pedagógico, é uma experiência incrível, mesmo que não tomem contato com o instrumentos antigos de uma forma concreta, o que é outro estágio. É uma oportunidade para pensarem a música de outra maneira, reunindo bagagem.
Você também formou um núcleo de música antiga na Escola de Música do Estado de São Paulo, a Emesp. Como está esse trabalho atualmente?
A Emesp é um orgulho. Foi uma oportunidade única, dada à minha equipe, que era a mesma que dava aulas no festival de Juiz de Fora. É um grupo de colegas de décadas, todos com trajetória na Europa. Moramos todos juntos na Holanda e trabalhamos bastante por lá. Tivemos a oportunidade de criar um curso regular, com grade e currículo específicos de música antiga. É um curso inédito e único no Brasil, com uma formação completa na matéria da música antiga. São quatro anos. Espelhamos nossa grade curricular num modelo instaurado em Haia, na Holanda, em Basel, na Suíça e em Londres, na Inglaterra, grandes centros que começaram com a sistematização do ensino da música antiga. Até agora é o único modelo do gênero. Os alunos têm aulas não só dos instrumentos antigos, mas de música de câmara, baixo contínuo. Eu dou aulas de análise e retórica e terminologia de época. Assim conseguimos criar um ecossistema para que os alunos se sintam inseridos num contexto, façam parte de uma comunidade e não se sintam isolados, como se fizessem uma coisa perdida. O grande mérito dos festivais de Juiz de Fora foi aglutinar gente de várias cidades do Brasil, mostrando que tinham muitas pessoas com um mesmo interesse. Uma escola que consegue criar um curso regular, fazendo com que os alunos se encontrem, é muito importante. E é um número expressivo: são 40 alunos. Isso tem efeitos muito produtivos. Vários alunos nossos conseguiram seguir uma carreira e foram estudar em outros centros ou em outros países. Este ano completamos dez anos e mostramos que temos frutos. Já fizemos oito festivais nossos, com convidados internacionais, montando uma orquestra muito grande e um coro expressivo para fazer obras de peso.
Daqui a menos de um mês você vai reger mais uma vez a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Osesp, uma das principais sinfônicas do país. Como tem sido exercitar essa outra faceta?
Minha atividade como maestro está ajudando a mostrar que não existem abismos entre a especialização da música antiga e o ramo mais tradicional da música moderna. Tenho sido convidado com muita frequência para reger orquestras tradicionais, o que sinaliza uma abertura desses grupos mais engessados num gosto musical. Eles estão querendo mudar a concepção e ter outras influências e inspirações. Praticamente todas as orquestras sinfônicas do Brasil tenho regido com regularidade. A Osesp é a segunda vez, agora em agosto, o que, para mim, é uma espécie de troféu. Normalmente eles chamam o maestro convidado uma vez, apenas. É a segunda vez que estou indo num intervalo de dois anos. Eles gostaram muito do meu trabalho. E ela está no topo, porque, de longe é a mais importante do país.
E sempre leva a música antiga ou executa outros repertórios?
Levo o repertório barroco. Minha especialização é no repertório antigo, dos séculos XVII, XVIII e XIX, especialmente visto numa reavaliação da interpretação. Preocupo-me em como reler a partitura, executar numa outra ótica. Só vou para esses lugares para mostrar a minha bagagem de quase 30 anos pensando dessa maneira. Nesse início do ano, regi a Orquestra do Theatro São Pedro, daqui de São Paulo, num programa só com obras de (Felix) Mendelssohn (Bartholdy), do início do século XIX. Ano passado fiz uma ópera de (Georg Friedrich) Händel, que foi a primeira montagem num teatro de ópera com agenda constante de uma obra barroca desse vulto. Também regi a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, a Orquestra Sinfônica do Paraná, a Orquestra Filarmônica de Goiás, a Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional de Brasília, a Orquestra Petrobras Sinfônica, a Orquestra Sinfônica da USP. Fico muito contente com essa minha outra vertente, mas ser instrumentista vai ser sempre minha tônica. Serei sempre violonista. É o que amo fazer.
“Preocupo-me em como reler a partitura, executar numa outra ótica. Só vou para esses lugares para mostrar a minha bagagem de quase 30 anos pensando dessa maneira”
Diante desses novos grupos formados e desses convites para reger sinfônicas pelo país, é possível afirmar que o interesse pela música antiga no Brasil cresceu nos últimos anos?
Desde a década de 1990, venho implementando essa minha aventura quixotesca de amor pela música antiga. Quando comecei com minha família não tinha praticamente ninguém no Brasil trabalhando com isso. Era uma coisa de louco. Hoje vejo que estou conseguindo passar essa missão para frente. O interesse pela música antiga sempre existiu, porque é um assunto fascinante. É um estilo de música muito agradável e palatável. Os maiores e mais ilustres compositores são antigos. Se fizermos uma lista dos dez maiores compositores, seis são do período barroco. O atrativo da busca pelos instrumentos antigos têm outro tipo de fascínio. A medida que damos oportunidades para o público ter contato com essa proposta, o interesse só cresce. O importante é ter continuidade, é manter esse acesso visível e com qualidade. Não podemos nunca justificar uma proposta só com palavras e ideias. A qualidade musical, o convencimento da performance musical tem que ser inquestionável e inegável. O que fomos construindo no festival em Juiz de Fora, por exemplo, foi um crescente de qualidade musical que se tornou parâmetro. O que vemos em Campos do Jordão e em Curitiba, com a tradicional oficina de música, são pequenas ilhas, pontos de encontro anual onde o público pode vivenciar o que também está no YouTube e em CDs. É uma coisa que virou rotineira na Europa e nos Estados Unidos. Agora tenho ido muito para a Ásia, que está igualzinha à Europa. Aqui no Brasil o interesse tem crescido, mas as oportunidades ainda são pontuais, isoladas e, muitas vezes, não se comunicam.
Qual o papel do artista nesse contexto de fortalecimento da música antiga?
O artistas têm um papel muito importante de servir de ponte. Sou chamado para dar aula em vários eventos e faço da minha bagagem uma espécie de amálgama para alunos e público de várias partes do país. Em São Paulo, por exemplo, a Emesp e a Sala São Paulo são separadas pela Cracolândia. São duas instituições que podem ser vistas como coisas isoladas. São iniciativas com administrações diferentes e com tônicas distintas. Uma é estritamente pedagógica e a outra tem uma tônica de promoção de concertos. Vejo a minha trajetória, com a minha arte, como uma ponte a ligar os dois lados da rua. O sonho que tenho é que o interesse cresça cada vez mais na medida em que o intercâmbio e o reconhecimento de quem produz possa também aumentar.
“O sonho que tenho é que o interesse cresça cada vez mais na medida em que o intercâmbio e o reconhecimento de quem produz possa também aumentar”
Qual é a sua avaliação da pesquisa em música antiga hoje em dia?
Existe uma pesquisa musicológica, acadêmica, teórica e uma pesquisa que é prática, de performance, artística. A pesquisa musicológica sempre existiu, de uma certa forma tímida e discreta na década de 1980 e no início dos anos 1990. Isso tem crescido muito porque a profissionalização do pesquisador de música melhorou muito com o tempo. Hoje temos muito mais pesquisadores nas universidades que há 20 anos. Existe, também, essa outra pesquisa, a prática, que na verdade é a mais importante, porque concretiza uma pesquisa teórica. Sem essa concretização do palco, do espetáculo, uma pesquisa teórica se torna estéril e infértil. Essa pesquisa na qual me insiro, de tocar e apresentar o que pesquiso, tem crescido, mas de forma desigual. Existe, ainda, um amadorismo muito grande. Temos uma formação ainda básica. Os cursos de especialização em música antiga são, ainda, muito introdutórios. Queremos desbravar, porque ainda tem uma coisa de catequese, de mostrar o universo. Não existe, ainda, um nível de excelência como tem na Europa. Diria que na parte acadêmica também há essa desigualdade. Existe uma corrida do ouro, com as pessoas querendo um lugar ao sol, uma posição de destaque estando embasadas apenas em pesquisas especulativas. A qualidade é o que põe um ponto final nisso. Está crescendo o interesse, e é preciso ser positivo, principalmente no Brasil, na loucura que vivemos hoje. É incrível podermos falar em arte, em crescimento cultural, em música antiga, mas não podemos fechar os olhos e achar que onde estamos agora é o lugar dourado, o ponto final da evolução. Estamos no meio do caminho. Eu quero, realmente, fazer no Brasil o que consegui fazer na Europa, e tenho a consciência do tanto que ainda precisa ser capinado para que possamos ter um terreno ideal.
“Está crescendo o interesse, e é preciso ser positivo, principalmente no Brasil, na loucura que vivemos hoje. É incrível podermos falar em arte, em crescimento cultural, em música antiga, mas não podemos fechar os olhos e achar que onde estamos agora é o lugar dourado, o ponto final da evolução. Estamos no meio do caminho”
Recentemente a cultura tem sido, com grande frequência, colocada em xeque como artigo dispensável. Você atua com música erudita, e com uma especificidade dentro dela, que é a música antiga. Sente-se ameaçado por isso? Como artista, qual é a sua avaliação do momento atual?
Não dá para dourar a pílula: temos que bradar que o momento é grave. O patrimônio cultural e as grandes heranças são frágeis e precisam ser mantidos. Educação e cultura são imateriais, mas são preciosas. Se não as mantivermos vivas, elas murcham e não deixam rastros. A música, o balé, as letras são flores preciosas que a gente tem que regar. O Brasil atualmente não está num momento de força. Vivemos um período em que a qualquer momento tudo pode desabar. E acho que já está desabando. O que vai salvar são as iniciativas isoladas e a união de quem valoriza isso. Espero que tudo mude o mais rápido possível para não virar pó. Temos que cuidar para que a arte viva e para que as pessoas valorizem o passado, as grandes realizações que são de toda a humanidade. Eu vivo de apresentar para o público música barroca do século XVII composta na Alemanha e na França. Se formos olhar de uma forma fria e pouco sensível, pode parecer uma coisa supérflua, mas estamos falando de um legado, de um elo que remete às nossas origens. Fazer música antiga é muito importante, tão essencial quanto manter a educação e o sistema de saúde. Isso não pode morrer e, ao contrário, tem que florescer porque se ramifica para outros lados da sociedade.