“Não posso estudar, não posso fazer isso. Porque assim eu me conformava, sabe?” O relato foi ouvido e registrado por Giane Elisa Sales de Almeida para sua dissertação de mestrado em educação “Entre palavras e silêncios: Memórias da educação de mulheres negras em Juiz de Fora – 1950/1970”. O desejo e a conformação repetiram-se em muitas das outras nove entrevistas que a pesquisadora realizou. E na certeza de que a educação se dá em espaços para além das salas de aula, onde também deve se firmar a luta antirracista, Giane embasa suas ações na supervisão no departamento de acesso à cultura da Funalfa e na direção e dramaturgia do grupo de artes cênicas e políticas As Ruths. Por mais desejo e nenhuma conformação.
De que maneira a educação recebida pelas mulheres negras entre as décadas de 1950 e 1970 impactaram a vida delas?
Um dos principais dados da pesquisa diz respeito ao modo como os espaços são percebidos como territórios educativos. Não é só a escola que educa. As memórias desvelaram Juiz de Fora como um potente dispositivo de educação, e isso é percebido a partir do modo que as memórias apresentam Juiz de Fora como proporcionadora de processos de subjetivação capazes de impedir o direito à cidade. Esse fato, sem dúvida, desenha interferências nos modos como as jovens mulheres negras construíram suas possiblidades de produção da vida em Juiz de Fora. Em outras palavras, o racismo na cidade foi, para essas jovens, um fator determinante para os modos de vida que foram possíveis de serem construídos.
Em seu trabalho você conta sobre o footing das mulheres negras na Marechal como uma estratégia de resistência em relação ao footing das mulheres brancas na Halfeld. Como isso se dava? Percebe uma alteração, com o passar dos anos, nas estratégias de resistência ao racismo estrutural?
Essa questão é bastante interessante na medida em que nos mostra como as formas de enfrentamento ao racismo estão presentes na vida da população negra desde sempre. As formas de resistência variam, de acordo com diversos fatores, inclusive, de acordo com as possibilidades de cada tempo histórico. E, nesse caso, o interessante é perceber como essa ferramenta de enfrentamento ao racismo surge sem nenhuma combinação prévia, digamos assim. As fotos desse passeio pela rua mostram as jovens mulheres, crianças e famílias negras passeando pela Rua Marechal, do mesmo jeito que as pessoas brancas o faziam pela Rua Halfeld. Na análise dos dados, atribuí essa movimentação como uma movimentação de resistência negra, que é tão valorosa e necessária quanto as resistências e enfrentamentos dos movimentos negros, que são, em primeira análise, os grandes responsáveis pelas conquistas da população negra no Brasil.
Como as experiências relatadas a você nos provocam a pensar na exclusão racial como uma perspectiva que moldou a cidade? Que geografia imposta pelo racismo identifica hoje?
As memórias das mulheres que entrevistei dão conta de uma Juiz de Fora inteiramente dividida entre territórios de brancos e territórios de negros, o que já é um marcador bastante significativo para apontar Juiz de Fora como uma cidade de práticas racistas presentes ao longo da sua história. Tais práticas vão se repaginando de acordo com as características do tempo histórico. Se em determinado momento da história não era possível aos negros e negras andarem pela parte alta da Rua Halfeld, hoje em dia esses “impedimentos” acontecem de outras maneiras. Há locais de comércio onde a concentração de negros é significativa e, em mesma medida, espaços comerciais onde a presença branca é maioria, sendo a presença negra tolerada. E isso se repete em diversos territórios, basta observar. Não existem interdições legais, mas a interdição simbólica está ali, e ela é suficiente para nos dar chaves de interpretação sobre o racismo em Juiz de Fora.