A cidade cabe numa construção. O prédio de número 200 da Avenida Getúlio Vargas carrega consigo representações que dão conta de narrar Juiz de Fora. A casa com cerca de 7.000m² de área construída guarda em sua memória o som dos teares da extinta Companhia Têxtil Bernardo Mascarenhas, que abriu suas portas em 1888 com 60 teares, vivenciando o período áureo da industrialização local. A edificação com suas 70 janelas frontais também preserva em seu passado o protagonismo das primeiras lutas patrimoniais locais, reunindo pessoas dos mais diferentes segmentos em prol da revitalização de um imóvel tomado pelo município em janeiro de 1983. O complexo que leva o nome de um dos maiores empreendedores brasileiros do século XIX reserva, ainda, a escrita da história recente da cultura juiz-forana, servindo, após conhecer as ruínas, como agigantado espaço das artes, com galerias, anfiteatro, videoteca, teatro, salas e corredores multiuso.
Em 31 de maio de 1987, um domingo, a Tribuna noticiava a inauguração do espaço cultural aberto onde há quase um século abriu-se uma fábrica de tecidos. “A inauguração, que faz parte das comemorações dos 137 anos da cidade, alardeia a vitória de um movimento que se arrastou durante anos em prol da transformação do prédio em espaço destinado às artes e cultura. A campanha ‘Mascarenhas, meu amor’, que comoveu Minas e concentrou em JF, em mais de uma oportunidade, personalidades como Fernando Gabeira, Adélia Prado, Afonso Romano de Sant’Anna, entre outros, chega ao seu “final feliz”, com a festa de inauguração, durante todo o domingo.” Para a cerimônia de entrega do almejado Centro Cultural Bernardo Mascarenhas (CCBM), com a avenida interditada, vieram o ministro da cultura Celso Furtado, o poeta e compositor Capinam, além dos músicos e compositores Tavinho Moura e Sueli Costa, que se apresentaram.
Localizado num espaço de “dessegregação” – termo utilizado pela antropóloga e pesquisadora carioca Janice Caiafa para locais de contágio e encontros -, o centro cultural mostrou-se uma vitória relativa quando seu uso começou a ser questionado, logo na sua abertura. “Do tear à arte”, exposição com agigantadas telas, em formato outdoor, de 15 artistas, espalhadas pelo Parque Halfeld, chamava a atenção para um prédio que se fez demanda de uma classe e carecia de um sentido e destino reais. Em sua reedição, “Do tear à arte II”, que ganha a mesma praça no Corredor Cultural, a mesma questão vem à baila, destacando sua importância para as artes e artistas locais, bem como sua fragilidade ao longo de várias gestões e sob diferentes gerações de olhares. Reunindo nove telas, em formatos menores e menos dispersa no parque, a mostra marca a presença do prédio no “coração da cidade”, denunciando, no entanto, sua crescente ausência no coração das pessoas.
Espaço limitado
“É importante lembrar a função desse lugar. Hoje temos alguns espaços destinados às expressões visuais na cidade, desde os privados até os públicos, mas o CCBM, por sua história e localização, pela pluralidade de possibilidades que oferece para sua ocupação, tem uma importância ainda maior. É o ponto de referência da conjunção de linguagens”, destaca o artista visual e professor do Instituto de Artes e Design da UFJF Afonso Rodrigues, um dos presentes na mostra de 1987 e também na releitura. “É um lugar que carece de muita atenção, porque tem potencial por toda a visitação que permite”, pontua o também artista Renato Abud, que na primeira mostra quis desenhar um elefante branco, para denunciar sua desconfiança com a missão do espaço. Recuou. Desta vez, desejou desenhar a maçã da Branca de Neve, demonstrando seu pessimismo com uma ideal utilização do local, mas também recuou, na certeza de que louvar também pode ser uma forma de reivindicação.
“Reeditar essa exposição que demarca a revitalização da antiga fábrica e sua transformação como lugar de cultura é apropriado inclusive para retornar à questão patrimonial, jogando luz sobre a falta de adequação do prédio. A cultura vira vítima da Boate Kiss, quando exige milhares de documentos a espaços como esse”, alerta a artista e organizadora da nova montagem Fernanda Cruzick, referindo-se à atual situação do imóvel. Com lotação reduzida no térreo e segundo andar inutilizado, o Centro Cultural segue, desde outubro do ano passado, orientação do Corpo de Bombeiros, que indicou as restrições até que haja a liberação do Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB), bem como uma adequação nas políticas de combate a incêndio e pânico em todo o complexo, incluindo mercado, biblioteca e outras áreas. De acordo com informações da assessoria da Funalfa, o auto está sendo negociado, e as ações necessárias estão sendo tomadas para que a casa volte a seu funcionamento normal.
Termômetro do espectador
Afonso Rodrigues, Breno Chagas, César Balbi, César Brandão, Fernanda Cruzick, Frederico Merij, Henrique Lott, Renato Abud e Ricardo Cristofaro formavam uma mesma tribo nos anos finais da década de 1980. Os nove nomes – que se juntaram a Arlindo Daibert, Humberto Borem, José Alberto Pinho Neves, Leonino Leão, Ruy Merheb e Luiza Gomes, na primeira edição de “Do tear à arte” – circulavam por galerias alternativas da cidade e, também, pela universidade, uns alunos, outros professores. Por isso, havia, em alguma medida, mais unidade na primeira edição que na atual. Em contrapartida, a reedição oferece, sobretudo, uma leitura das trajetórias individuais desses artistas que novamente se encontraram, numa das salas do Centro Cultural Bernardo Mascarenhas, para criarem suas obras num ateliê coletivo. “Foi um reencontro muito feliz, com uma convivência novamente produtiva”, ressalta Fernanda, que escolheu trabalhar com o padrão da forma das janelas do prédio antigo em sua nova obra.
Em sua nova obra, Renato Abud explora a imagem do relógio no topo do prédio. Cristofaro desvia seu olhar para a caixa d’água no estacionamento do complexo para falar sobre monumentos, criando uma nova visualidade para aquele espaço. Rodrigues, por sua vez, também recorre aos símbolos, fazendo referência à ideia de projeto. “Meu trabalho assimila uma série de notações gráficas, como as partituras de música, contas, projetos arquitetônicos. Fiz um rascunho da Bernardo Mascarenhas com a superposição dos elementos gráficos que as pessoas usam para registrar o início de suas ideias.”
Inicialmente projetadas para ocupar os três dias do Corredor Cultural, as noves telas podem, segundo informações da Funalfa, continuar no Parque Halfeld por mais um mês. A condição está nas mãos dos espectadores. Caso atendam as expectativas e apenas sofram a ação do tempo, permanecerão. Em 1987, recebidas com curiosidade e zelo, as telas foram levadas para o estacionamento do CCBM, onde permaneceram por três anos. A tela de Ruy Merheb, contudo, realizada com papel de seda e papel crepom, se desfez na primeira chuva. Mas a própria ação da natureza estava prevista no discurso do artista, como os novos trabalhos, que desta vez estão mais próximos dos espectadores, na altura dos olhos e das mãos, na altura do risco, como termômetro do respeito. “Quando topamos fazer o trabalho, nos preparamos para as questões relacionadas à exposição pública, na possibilidade de haver alguma interferência”, afirma Afonso Rodrigues, certo de que preservação é substantivo enigmático.