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Concerto de excessos

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Exibida em outubro passado na Galeria Oriente (RJ), mostra ganhou nomes locais em edição que comemora 15 anos da Hiato, de Juiz de Fora

Mauro Morais Repórter

Aos seis anos, o irlandês Hans Sloane perdeu o pai. Aos 16, contraiu uma sinistra doença que o confinou no quarto durante um longo ano. Aos 26, já reconhecido médico em Londres, começou a fazer de sua vida um traçado contra perdas. Reuniu em um dos cômodos de sua casa uma das mais importantes coleções de história natural e cultural da Europa. Com mais de 150 mil peças egípcias e cerca de 3.500 manuscritos antigos, o acervo deu origem ao imponente Museu Britânico. Prática de seu tempo, a criação de um gabinete de curiosidades tomou contornos grandiosos no projeto de Hans, cuja morte em 1753 deu início ao processo de compra de suas obras pelo Parlamento do Reino Unido. Também chamado de quarto das maravilhas, o gesto do acúmulo irrompe a contemporaneidade de excessos pleno em sentido. Informações demais, imagens demais, discursos demais.
Em “Gabinete contemporâneo de curiosidades”, exposição que a Hiato – Ambiente de Arte inaugura nesta sexta, 28, às 20h, a obsessão é utilizada como ferramenta para o debate acerca da visualidade no presente. Lado a lado, a milímetros de distância entre um e outro, cerca de 200 trabalhos de artistas de diferentes cantos brasileiros dão pistas do que seria uma possível coleção atual. Para o artista e curador Marco Antônio Portela, idealizador do projeto, a diversidade dos acervos antigos também integra a nova cena. “Essa variedade traz uma similitude com esses quartos de curiosidades. No mundo globalizado, não existe separação, então a arte angolana é tão poderosa quanto a nossa. A única separação que existe é a do mercado. Os suportes são muitos, do tecnológico ao gestual. E essa variedade existe desde o século passado. É uma diversidade de possibilidades estéticas e poéticas, não só na arte brasileira como na mundial.”
“É uma forma de conexão, sobretudo”, pontua o artista e cocurador José Augusto Petrillo, coordenador da Hiato. “A reunião de todos os trabalhos é uma maneira de pensar o imaginário coletivo dos artistas de hoje, tanto pelos temas que trazem quanto pelos materiais que utilizam”, completa. Preponderante em diversas obras, o tom político diz de uma geração que não entende a arte dispersa do noticiário, como o quadro onde André Parente exibe suas moedas de “1 irreal”, com o rosto de Michel Temer nas duas faces. Ou o objeto em cerâmica de Cris Cabus, no qual uma placa no formato do território brasileiro pende entre grades. Ou, ainda, a colagem “Cegos, surdos e mudos”, de Paulo Branquinho, que de maneira literal agrupa imagens publicadas em jornais para tecer crítica aos políticos nacionais.

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Tranças Pintadas e em fios: Trabalho de Andréa Facchini, natural de Cataguases e radicada em Niterói , compõe mostra

Tempo dos acúmulos
Superlativas discussões em formatos diminutos, como as fotografias de Francesca Woodman ou as pinturas de Vermeer, recorda Portela. “Tamanho nunca foi uma questão para a arte. Fizemos uma mostra com trabalhos pequenos até para poder ocupar a galeria numa diversidade absurda”, adverte, chamando atenção para a harmonia criada pelo excesso. Delicadas, obras que exaltam o fantástico dividem a mesma parede onde estão trabalhos primordialmente indignados e outros, essencialmente estéticos, como o neoconcretismo de João Batista. Repletos de lirismo, os seis pequenos pratos de cerâmica de Maria Hallack, que juntos evidenciam a cena de um coelho sobre a mesa, dialogam com a tela de Andréa Facchini e suas tranças fundidas com folhas de tecido e pintura de natureza.
“A exposição transpõe para o nosso tempo uma prática que era comum no século XVI, o gabinete de curiosidades onde a aristocracia expunha pedras e animais do novo mundo, o que agregava poder a eles. Como se tivessem mais força econômica e mais saber”, observa o carioca Portela, relacionando o ideário de poder ao campo das artes na contemporaneidade. Atual, a questão do colecionismo de arte pelas classes mais abastadas está, inclusive, nas páginas políticas e policiais por conta de esquemas fraudulentos. Para além disso também se faz atual o debate acerca da constituição de acervos. Em tempos tecnológicos, o que se deve guardar? “Esse acúmulo diz de nosso tempo, e é um desdobramento da ideia inicial, dos gabinetes que já eram excessivos. Trazendo isso para o agora tomamos outros significados, como o do fazer contemporâneo, que nos permite fazer muito num mesmo tempo”, pontua Portela.

Juiz-Forana Maria Hallack apresenta pintura delicada em cerâmica

Bodas de cristal
“Gabinete contemporâneo de curiosidades” reúne em suas paredes, também, uma história que em agosto comemora bodas de cristal. “A exposição diz de uma compulsão, de um ajuntamento desordenado, como a vida é”, destaca Petrillo, que nos últimos 15 anos, compulsivamente, analisou a arte contemporânea por diferentes ângulos, seja valorizando nomes locais, seja agrupando veteranos e iniciantes, seja criando intercâmbios com outras cidades, exercícios expostos na mostra comemorativa. Tanto é que o projeto inicial, apresentado em outubro na Galeria Oriente, no carioca Bairro da Glória, foi acrescido de nomes juiz-foranos na nova montagem.
O resultado de ambas as mostras demonstra a força da fotografia no fazer contemporâneo. “Hoje a fotografia é forte e muito pela facilidade da linguagem”, comenta o curador Marco Antônio Portela. Mas também revela o vigor de artesanias clássicas. “Em todos os movimentos artísticos as novidades são utilizadas pelos artistas, que sempre foram precursores de ideias e suportes, experimentando o que surge. A tecnologia sempre atraiu na arte, mas não representa a única atração. Há artistas, como a Camila Soato, que se dedicam à pintura à óleo. Não existe o rigor de que a arte contemporânea é tecnológica”, acrescenta Portela. De alguma maneira, defende Petrillo, o gabinete atual revela-se, curiosamente, um retrato fiel da cena visual de hoje.
Gabinete contemporâneo de curiosidades

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Abertura nesta sexta, 28, às 20h. De segunda a sexta-feira, das 9h ao meio-dia e das 14h às 19h, sábados, das 9h às 13h, na Hiato – Ambiente de Arte (Rua Coronel Barros 38 – São Mateus). 3216-4727. Até 20 de maio.

 

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