Neste ano, completa-se o centenário da morte de Lima Barreto, morto em 1922 com apenas 41 anos. O autor e jornalista brasileiro publicou ao longo da vida diversos romances e inúmeros contos e crônicas, atuou em muitos jornais da época, criou uma imprensa estudantil, foi crítico literário, transitou entre os gêneros ficcionais e memorialísticos e permaneceu sempre atento ao seu entorno. Foi por este motivo que, inclusive, fez obras de forte crítica social, apontando também as desigualdades sociais, os vícios e as contradições da política brasileira, e, principalmente, o racismo estrutural que negou a ele tantas oportunidades. Foi frequentemente desprezado e subestimado, inclusive tendo tido a entrada na Academia Brasileira de Letras recusada por três vezes.
Com tudo isso, grande parte de sua obra só foi valorizada bem após a sua morte, já a partir da década de 1950. Para pesquisadores e leitores ávidos do autor, o movimento de recuperar a importância da sua obra e de reconhecer sua relevância tem aumentado muito a sua popularidade recentemente. Não é por coincidência – à frente de seu tempo, foi um moderno antes dos modernos, e é essencial ainda para entender o Brasil atual.
Lima Barreto é, e é cada vez mais, um marco incontornável do cânone literário brasileiro, e por isso, no aniversário de sua morte, há filmes, documentários e até podcasts sendo produzidos para falar sobre o autor. Para a professora Cristiane Brasileiro, formada pela UFJF e atual professora adjunta da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), é importante notar que ele teve uma trajetória difícil para dar vazão ao seu talento, considerando o ambiente cultural asfixiante no qual sua vontade de escrever emergiu. “Acho que, em primeiro lugar, ele assumiu perspectivas e olhares sobre a sociedade da época que são ainda hoje muito originais e necessários, em especial quando pensamos na dinâmica das relações raciais no Brasil e no entrecruzamento das mesmas com questões de classe e gênero”, diz.
Além disso, ela relembra que ele foi um inovador também na forma, ousando aproximar a língua literária de uma coloquialidade carioca quando uma operação desse tipo tendia a ser mal vista. Sua obra também é conhecida por ser capaz de trazer os elementos testemunhais que se mesclavam a uma experiência de vida e a um horizonte altamente coletivo. E fez isso do ponto de vista de alguém que não costumava ter sua voz ouvida, sequer tolerada – fosse em sua singularidade ou no que continha de alta representatividade social.
Para entender essa liberdade que ele tomava em suas obras, o professor de Letras na UFJF e poeta Alexandre Faria relembra que a história da literatura brasileira ainda associa muito o modernismo à Semana de Arte Moderna em São Paulo, mas já havia autores que encarnavam as características do modernismo antes disso. “Autores fora desse circuito paulista, naquele momento, acabavam ficando apagados num lugar nebuloso. Mas nós já tínhamos autores que estavam voltados para a vida cotidiana, para a linguagem coloquial e que vão reportar um estilo de vida moderno”, explica.
De acordo com o professor, isso pode ser percebido no que Lima Barreto propõe em sua obra: aborda, por exemplo, uma cidade que está se urbanizando e que está vivendo as contradições disso. “Ao mesmo tempo em que há uma euforia por essa modernização, ele também está denunciando e retratando na sua obra uma exclusão, a vida de uma população periférica nesse lugar. Essa é uma questão fundamental no modernismo”, diz. Para ele, no entanto, é notável que Lima Barreto tenha sido apagado também por outros motivos: não fazia o jogo de reverenciar uma elite intelectual, jornalística e literária.
Esse olhar, ainda na década de 20, continua contribuindo para os dias de hoje. Giovani Duarte Verazzani, o poeta Verazz, mestre em literatura brasileira e membro do Coletivo Vozes da Rua, deixa claro que o autor trabalhou muito para que os brasileiros se entendessem enquanto povo. “Eu acho que ele contribui para a gente entender esse ódio, esse ranço que uma parte da população brasileira ainda tem contra o seu próprio povo. Em “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, seu grande romance, tem muito esse nacionalismo e esse ufanismo que ao mesmo tempo é perigoso, vazio, inofensivo…” Além disso, Giovanni também ressalta que se trata de um homem negro, brasileiro, que sofreu e passou por situaçoes que homens e mulheres negros brasileiros ainda passam – e isso se tratando do próprio campo das artes, por não ter o devido reconhecimento ou ser tratado como alguém menor, de pouco valor. “Para gente que pesquisa e trabalha com a literatura marginal periférica do Brasil, vejo que ele é importantíssimo. Um dos pioneiros. Ele trabalha com uma perspectiva que não só denuncia e critica a sociedade, os valores e os costumes, mas também propõe mudanças”, diz.
Preconceitos e barreiras
Lima Barreto foi recebido, inicialmente, com um pacto de silêncio e desprezo pelos jornalistas, críticos e literatos da época. Sequer conseguia publicar seus livros pelas editoras brasileiras, tendo tido que pagar do próprio bolso edições por empresas portuguesas. A professora Cristiane Brasileiro relembra ainda que, quando ele começa a receber alguma atenção, enfrenta “acusações recorrentes de que sua literatura era desleixada e excessivamente autobiográfica. E, nesse sentido, inferior ao que os homens brancos escreviam, já que as letras desses eram vistas como naturalmente mais ‘universais'”. Um grande marco na recepção da obra dele, no entanto, se dá no início da década de 50, com o lançamento de uma grande biografia de Lima escrita por Francisco Assis Barbosa, e ainda com a organização da obra dele em 17 volumes pela editora Brasiliense.
Mas têm sido os movimentos identitários negros brasileiros, agora ainda mais aflorados e com mais conexões internacionais, que têm chamado ainda mais a atenção para a força da obra de Lima Barreto, inclusive entre pesquisadores e críticos que só agora olham para ela com mais atenção, e de fato têm descoberto que ela era muito maior do que se sabia. A professora afirma, por exemplo, que “já foram encontrados cerca de 20 pseudônimos que pertenciam ao autor, e nesse sentido a obra dele tem se revelado também quantitativamente muito maior do que se pensava antes”. Nesse mesmo sentido, Giovani nota que os povos marginais, periféricos e negros sempre tiveram uma produção intensa de arte e cultura – mas que foi preciso um amadurecimento dessa percpeção ao longo dos anos. “A sociedade brasileira e as instituições têm uma dívida com ele”, diz.
Abrindo portas e despertando desejos
Mesmo com todo o preconceito sofrido e as barreiras que encontrou, Lima Barreto deixou um legado que se estende por muitas gerações. “Acredito que ele ainda está vivo nesses poetas e escritores marginalizados que estão na correria para poder produzir e viver de literatura. Acho que ele é essencial no momento de hoje, acredito que ele serviu de inspiração. Não só abriu portas, mas abriu desejos”, diz Giovanni Verazzani.
A qualidade literária do autor, hoje, já se fixou bem mais na academia. Ele também recebeu mais atenção dos literatos, teve uma Flip dedicada a ele em 2017 e continua conquistando muitos leitores e admiradores. Uma coisa Alexandre Faria não deixa de esquecer: que não foi fácil para que Lima chegasse até onde chegou. Por isso, relembra Milton Nascimento na canção “Maria Maria”: “mas é preciso ter força, é preciso ter gana sempre.” É isso que mais o encanta no autor. “O Lima Barreto era um cara que tinha tudo para não ter uma obra. E ele tem uma obra monumental por absoluta teimosia”, diz.