Em 2020 completa-se a primeira década de morte de Maria da Saudade Cortesão Mendes, viúva do poeta juiz-forano Murilo Mendes. Por consequência, completam-se, também, os dez anos de espera de um lote de 22 obras de arte que integra a coleção de Murilo, adquirida pela Universidade Federal de Juiz de Fora em 1993. Segundo acordo entre a instituição e a viúva, a maior parte do acervo pictórico seria transferida para Juiz de Fora, permanecendo no apartamento do casal apenas algumas das peças, de maior valor afetivo. A UFJF atendeu o desejo de Maria da Saudade, mas, passada sua morte, as obras não foram entregues. Os herdeiros da viúva – e, portanto, de Murilo Mendes, cuja morte completou 45 anos em 2020 – são sobrinhos de Maria da Saudade, com os quais a universidade tentou diálogo, intermediado por advogados de ambas as partes. No início da década de 2010 foram realizadas viagens a Portugal na tentativa de reaver os trabalhos. O impasse se arrasta.
O caso se encontra em juízo. Treze páginas de um processo aberto pelo Ministério Público Federal no ano passado reivindicam a tutela imediata das obras e sua repatriação. Sim, repatriação, já que desde 1993 os 22 trabalhos pertencem ao Brasil, ainda que nunca tenham desembarcado no território brasileiro. No raciocínio estabelecido pela procuradora da República Zani Cajueiro Tobias de Souza na ação civil pública, está pontuada a importância do patrimônio cultural para a formação e identidade de uma civilização, o museu como espaço de valorização e guarda da fração reconhecida publicamente desse patrimônio, e a obra e as coleções de Murilo Mendes como uma expressão patrimonial de interesse nacional.
“É uma negociação difícil, que envolve dois países, com dois sistemas jurídicos diferentes”, avalia Ricardo Cristofaro, diretor do Museu de Arte Murilo Mendes, gerido pela pró-reitoria de Cultura da UFJF. “O diálogo (com os herdeiros) terminou a partir do momento em que a universidade acionou o Ministério Público. Até ali existia um diálogo sereno, mas envolvendo os advogados da família e da universidade. A universidade fez os esforços corretos”, pontua o diretor, acrescentando que a complexidade da questão passa, também, pela vinda das obras, o que envolve impostos, seguro e traslado. A maior parte da coleção, hoje preservada pelo museu situado no número 790 da Rua Benjamin Constant, viajou como malote diplomático.
“Certamente, quando tiver a certeza de que precisa fazer esse transporte, ela vai se mobilizar para isso, até acionando o Governo federal”, responde Cristofaro ao ser questionado sobre a disponibilidade orçamentária da universidade para o gasto com a repatriação. “Foi o Governo brasileiro que conseguiu os recursos para que essa coleção fosse adquirida. Ela pertence ao Governo brasileiro e está patrimoniado na universidade, mas pertence ao povo brasileiro”, destaca o diretor, reforçando a narrativa processual, que atualmente encontra-se, segundo dados disponibilizados pela Justiça Federal, em fase de citação.
Aberto em fevereiro de 2019, o processo chegou a ser indeferido. O juiz federal Bruno Souza Savino justificou-se afirmando que a petição ultrapassava os limites da jurisdição nacional, já que tanto o contrato quanto o objeto discutido e o réu encontram-se em território português. Meses depois, o processo foi retomado. Um novo dado se inseriu no impasse: o inventariante do espólio de Maria da Saudade, Marcos Zuzarte Cortesão, até então apontado como morador de Lisboa, encontra-se morando num condomínio de alto padrão em Salvador, Bahia. A Tribuna não conseguiu estabelecer contato com o inventariante, nem com seu representante.
Obras milionárias e com valor afetivo
Ao longo dos últimos dez anos existem poucas informações sobre as 22 obras pertencentes à Universidade e sob posse dos herdeiros da viúva de Murilo Mendes. Foram perdidas? Vendidas? Incendiadas num acidente ocorrido na residência de Maria da Saudade? Ou ainda ocupam as paredes de membros da tradicional família Cortesão? “Temos certeza de algumas obras”, aponta Ricardo Cristofaro, contando que, numa das missões da UFJF a Portugal para tratar do impasse, as imagens de todas as obras foram colocadas, uma a uma, sobre uma mesa para que os representantes da família reconhecessem. Alguns trabalhos foram. O guache “Le séducteur”, de René Magritte, dentre eles.
O trabalho de 17cm de largura e 15cm de altura, feito em papel com a inscrição “Guache que me ofereceu Magritte. Bruxelas 1954”, é uma reconhecida criação do pintor surrealista e apresenta um veleiro navegando. Na imagem, o fundo é repleto de nuvens, enquanto a totalidade do veleiro é preenchida pelas ondas sobre as quais ele também flutua. A versão em pintura (óleo sobre tela), datada de 1950, encontra-se no Museu de Belas Artes da Virgínia. Como não existem especificações acerca do guache da coleção de Murilo Mendes, torna-se impossível precisar o valor de mercado da obra, já que para tal avaliação é necessário identificar o tamanho do quadro, estado em que se encontra, se está mais próxima de um estudo do que um trabalho acabado, dentre outros critérios.
“Certamente (o guache) está entre as dez obras mais valiosas do acervo do poeta. Temos também uma pintura de Portinari (que se encontra no museu). E hoje Ismael Nery é muito valorizado. Não sei dizer se a guache do Magritte valeria mais que alguma obra do Ismael Nery”, observa Ricardo Cristofaro, além de diretor do Mamm, artista visual, pesquisador e professor do Instituto de Artes e Design da UFJF. Do lote reivindicado, segundo Cristofaro, é possível que uma colagem do dadaísta Hans Arp, uma aquarela de Nery e o guache de Magritte sejam as mais valiosas no mercado de arte. Magritte em leilão de 2018, na Sotheby’s, em Nova York, superou a própria marca e alcançou o valor de U$ 26,8 milhões com a venda da pintura “Le principe du plaisir”. Também constam, entre as 22 peças, litografias de dois artistas consagrados: Marc Chagall e Joan Miró. Os trabalhos podem ter avaliações mais tímidas por terem sido fabricados em série.
O que representa, portanto, o lote alvo do impasse? “Basicamente, completa a coleção”, responde o diretor do Museu de Arte Murilo Mendes. “O que temos aqui (em Juiz de Fora) é uma coleção parcial. Existem artistas neste lote que se repetem, como a Vieira da Silva”, aponta Cristofaro, referindo-se à portuguesa Maria Helena Vieira da Silva, que, ao lado do marido, o húngaro Árpad Szenes, assinam nove das 22 obras em questão. “Esses trabalhos não são apenas obras de arte. Estão ligados a uma produção poética, intelectual, crítica no campo da arte. Essas obras carregam notas, referências, dedicatórias, que são relevantes para uma pesquisa mais ampla, mais complexa e mais completa sobre as múltiplas atuações do Murilo Mendes não só como poeta, mas como intelectual, crítico e colecionador da arte.”
Uma cláusula compreensiva
Ao observar a lista das obras que originaram uma cláusula no contrato de aquisição da coleção de Murilo Mendes é possível compreender o motivo que levou a viúva Maria da Saudade a pedir a permanência de parte da coleção nas paredes de seu apartamento em Lisboa. Quando não possuem sensíveis dedicatórias, são retratos do casal ou estudos para capas de livros do poeta. “Per Murilo il giovanissimo poeta in occasionne del suo 45º compleanno” (“Para Murilo, o jovem poeta, por ocasião dos seus 45 anos”, em tradução livre), dedica o italiano Piero Dorazio em litografia de 1966. “A Murilo Mendes pour ses soixante ans avec l’amitié grande de Magnelli” (“A Murilo Mendes por seus 60 anos com a grande amizade de Magnelli”, em tradução livre), escreve o também italiano Alberto Magnelli em aquarela sobre papel.
“De certa forma ela tinha apego a essas obras, o que demonstra a importância para o casal. A coleção fica meio manca sem esse lote. Até porque representa quase 20% da coleção. Não é um pequeno número de obras que está ficando lá”, destaca Ricardo Cristofaro, sobre um conjunto que revela, também, os afetos de Murilo Mendes e sua esposa. “Agora a universidade deve esperar para saber o resultado dessa ação judicial. Em juízo, teremos uma resposta”, aposta o diretor do museu. Respostas que há dez anos não chegam. “A família da Maria da Saudade nunca procurou espontaneamente a universidade”, aponta Cristofaro, fazendo coro com um processo que defende a recomposição da coleção e o zelo com o patrimônio público brasileiro. “Mesmo que não tivesse essa importância, o que vale é que são do nosso país. Há de se pensar nesse vazio que é comprar e não receber.