O ator e dramaturgo Humberto Assumpção encontrou na literatura uma ferramenta para colocar para fora muito do que sentia, além de uma aliada para o processo de emagrecimento pelo qual passava, após anos de processo de depressão que o fez chegar à marca de impressionantes 246 quilos. O resultado foi a coletânea “Contos que trago”, lançado em maio e que acabou por virar a peça de mesmo nome pela Cia. Ar Cênico, e que será apresentada pela primeira vez em Juiz de Fora sábado (28), às 19h30, no espaço Sala de Giz. Quem deixar o nome até as 16h do dia da apresentação no perfil do espaço no Instagram (@saladegiz) terá desconto no ingresso. O espetáculo, que estreou no mesmo mês que o livro, marcou ainda a estreia de Humberto na direção.
Ele diz que dois dos contos foram escritos há cerca de uma década, mas que o livro só tomou forma quando usou o ato de escrever para se expressar. E seria para ser apenas assim, colocar no papel e pronto, eis um livro. “Mas eu já pensava então em voltar ao teatro depois de tanto tempo, precisava disso, e então um amigo sugeriu transformar esses contos em esquetes para uma peça”, conta. “Achei uma boa ideia, pois tinha alguns textos antigos mas queria algo novo. Peguei os que fossem mais necessários para 2019, mal sabia que seriam os que mais precisam ser falados. E ainda fui colocado como diretor. Eu quis morrer, nunca me vi nessa posição, mas desde então já dirigi duas peças.”
A adaptação dos textos para o formato teatral teve início há um ano, quando ainda terminava o livro, e Humberto conta ter sido um processo rápido. Era preciso, basicamente, dar mais protagonismo aos personagens no lugar da narração. “Mas essa narração ainda existe na peça”, antecipa. “Eu me transformo nos personagens que vão contando essas histórias, que influenciam e interferem no que está acontecendo, não é mero observador. Estou fora da cena, mas fazendo-a acontecer, sou quem mexe a engrenagem dos personagens.”
Entre a ficção e o fato
“Contos que trago” reúne parte dos contos do livro de onde se origina e, segundo Humberto Assumpção, trata-se de histórias fictícias baseadas em situações que realmente aconteceram com ele. “A primeira delas é 99% autobiográfica, sobre a morte do meu pai. “Minha mãe descobriu que ele havia tirado os filhos mais velhos do seguro que ele tinha como funcionário público, deixando tudo para o filho mais novo, da segunda esposa. Ela ficou furiosa. Então coloquei minha mãe no palco, e quem conhece sabe na hora que é ela. Quem não a conhece ri de como ela faz as coisas mais simples ficarem escandalosas. Coloquei os maneirismos dela nesse conto, o ator que me interpreta também tem meus maneirismos. É como se colocasse minha família no palco. Já a família do meu pai não gostou do conto (risos).”
Ao conversar sobre a peça, os contos, a própria vida, o ator e diretor parece buscar a sinceridade. É como na explicação a respeito da concepção do espetáculo, em que afirma que sua primeira preocupação foi se (re)conectar com as pessoas, o que já havia começado com a escrita. “Fiquei afastado das pessoas por anos por causa da depressão, então pensei em como conectar. Por isso, quando sou o narrador, interpreto alguém ligado aos meios de comunicação, como um jornalista, o apresentador de talk show, um escritor, buscando sempre uma forma de enviar a mensagem para alguém. O fio condutor de tudo é a comunicação em si, que considero muito importante. É ela que faz as histórias acontecerem.”
Como vida e arte se misturam na peça, Humberto fala um pouco mais sobre a depressão que o levou, depois de anos, a escrever os contos que entraram em seu livro de estreia. “Ela surgiu quando um médico disse que eu tinha um tumor no cérebro, sendo que na verdade era só uma calcificação. Quando soube disso meu pai morreu logo depois, o que foi muito duro, fez com que ficasse esse tempo todo muito mal.”
“Quando cheguei aos 40, pensei: ‘não posso morrer’, não estava fazendo o que mais amo, que é estar no palco. Então surgiu a oportunidade de escrever um conto para uma antologia chamada ‘Quando a escuridão bate à sua porta’. Criei a história de um rapaz que passa por depressão e obesidade mórbida, mas por outro motivo: ele era apaixonado por um amigo de infância, que é heterossexual. Procurei escrever de uma forma respeitosa, leve, queria falar sobre isso para as pessoas entenderem que essas coisas acontecem, que o amor acontece e que você pode sobreviver a isso se ele der errado, for impossível.”
Diferenças entre livro e peça
Quanto ao seu livro, porém, Humberto diz que ele é muito sombrio em seus contos, e aí surgiu o novo desafio após o desafio de desenvolver a adaptação: não entregar um texto, uma peça com uma carga tão pesada. “Eu não estava no meu melhor momento, e as histórias não são bonitas, com finais felizes. Dizem que o que escrevo é muito ‘cru’. Não poupo o leitor, os personagens. As pessoas podem até se machucar lendo, é muito verdadeiro. Alguns falavam quando liam que é muito Nelson (Rodrigues), e eu dizia ‘Não é Nelson, é Humberto!’, mesmo que ele seja uma referência para quem faz teatro.”
“A diferença principal (entre os dois) é que os contos são cruéis no livro, mas precisava aliviar no palco, dar uma comicidade sem que se tornasse algo gratuito”, explica. “Tinha que transformar a crueldade em deboche, em ironia, e isso aconteceu. Eu queira essa reflexão que vem do humor. No texto literário vou direto ao ponto, a pessoa não tem a menor vontade de rir, enquanto a peça é uma comédia.”
Ele ressalta, entretanto, que a maioria das pessoas percebe a gravidade da situação. “Quando fizemos a leitura do texto para o pessoal da produção, a figurinista disse ‘A sua peça é uma denúncia’, e eu não havia me dado conta disso, só quando alguém de fora comentou.” Todavia, há quem se incomode com as coisas que são ditas pelos personagens. “Tivemos pessoas que saíram do teatro porque se ofenderam com um conto que mexe um pouco com religião, e isso aconteceu em duas ocasiões diferentes no Rio de Janeiro. Uma foi na estreia, no Parque das Ruínas, em Santa Tereza, e outra há duas semanas em Laranjeiras. Elas se sentiram ofendidas com essa questão religiosa, sendo que antes havia contos com palavrões, baixarias – mas nada sujo -, mas aí, num momento em que falamos de uma certa religião, a pessoa saiu ofendida.”
“Ali eu vi a hipocrisia da pessoa, que antes ria de algo anormal”, critica. “É interessante ver como a religião pode dividir opiniões de uma forma muito brusca, e justo num momento em que ela se impõe em certas situações, o que é muito preocupante”, diz Humberto, lembrando que no elenco há pessoas de várias denominações religiosas, além de dois ateus. “Várias vezes me pego dizendo ‘vai com Deus’ para eles (risos).”
Grupo novo, novos projetos
Para encerrar a conversa, Humberto Assumpção é todo elogios para o elenco – que começou a se reunir a partir de janeiro, quando o ator e diretor publicou um anúncio à procura de atores. “Aí apareceram esses loucos (risos); desses eu já conhecia três, os outros três vieram através do anúncio”, conta. A estreia de “Contos que trago” se deu em maio, e como o grupo é sediado em Nova Iguaçu, logo foi convidado para fazer parte da Rede Baixada em Cena, coletivo de grupos teatrais da Baixada Fluminense que tem ajudado a levar as peças para a capital fluminense.
“O grupo deu tão certo que estreamos semana passada outra peça, ‘Universo íntimo’, em que também faço a direção, e já comecei os ensaios de outra peça, ‘Língua’, em homenagem ao Eugène Ionesco e que também pretendo levar até Juiz de Fora, que é a terra da família da minha mãe (os irmãos dela, que é carioca, nasceram na cidade) mas onde estive pela primeira vez há apenas duas semanas. Quero muito conhecer a cidade, vou levar minha tia que mora aí para nos assistir.”
Contos que trago
Neste sábado (28), às 19h30, no espaço Sala de Giz (Rua Mariano Procópio 65)