Desde que se tornou a espécie dominante da terceira pedra a partir do Sol, a humanidade acumula momentos que mostram o quanto podemos ser cruéis e desprezíveis. Eis uma pequena lista e que conta apenas com eventos do século XX: o massacre dos armênios, o nazismo e o holocausto, os “expurgos” de Stalin, o talibã, Estado Islâmico, os genocídios de Ruanda e Camboja, a Guerra dos Bálcãs, a ditadura militar brasileira entre 1964 e 1985. Para muitos, até mesmo a atual campanha eleitoral. Em todos os casos, os motivos são variados: preconceito, xenofobia, ódio ao que é estranho à cultura e origens, o desejo do poder pelo poder, ressentimentos datados de séculos, a absurda ideia de “supremacia racial”.
Um ponto comum em todas essas histórias, porém, é o fato de que não se tratavam de algo espontâneo surgido entre milhares ou milhões de pessoas. Quase sempre foi preciso um gatilho, fosse ele uma palavra de ordem, um acontecimento, a distorção de fatos, que aos poucos tomavam dimensão tal para que aqueles que jamais agiriam enquanto indivíduos tomassem coragem para, junto a outros, extravasarem os piores sentimentos. Esta é basicamente a premissa da franquia “Uma noite de crime”, surgida como sucesso inesperado em 2013 da produtora Blumhouse e que, duas continuações depois (todas dirigidas por James DeMonaco), chega aos cinemas nesta quinta-feira (27) com “A primeira noite de crime” para mostrar as origens da série — que recentemente ganhou um spin-off para a TV.
No caso de “Uma noite de crime”, o longa partia de uma premissa absurda e teoricamente impossível de acontecer no mundo real, mas que é interessante o suficiente para gerar reflexão a respeito de nossa natureza. Depois de sucessivas crises econômicas e ondas de violência nos Estados Unidos, o povo elege para a Presidência um candidato do Novos Pais Fundadores da América, partido radical e de propostas simplistas, mas que encontra eco no desespero do momento.
Entre as medidas está o “Expurgo”, um período de 12 horas, uma vez por ano, em que a lei deixaria de valer em todo o país, e tudo se torna permitido, seja roubo, vandalismo, estupro, espancamento, assassinato. Sem polícia e exércitos nas ruas, todos os crimes cometidos nesse período de tempo são automaticamente anistiados. O objetivo, de acordo com os novos governantes, é mostrar que os americanos, liberados para um período de catarse, ajudariam a “purificar” a nação nos 364 dias seguintes — o que acontecia na história, com a economia em pleno vapor, desemprego por volta de 1% e queda brutal nos índices de criminalidade.
Só que “Uma noite de crime” mostrava, no final das contas, que o “Expurgo” servia muito mais como uma disfarçada limpeza étnica-social, com os mais pobres, principalmente negros e latinos, sendo as maiores vítimas da noite de violência, morrendo aos milhares, enquanto os mais abastados se escondiam em casas super protegidas – alguns, porém, aproveitavam a data para expressar todo o seu ódio pelos desvalidos, caçando-os pelas ruas por diversão e “direito”.
Experiência sociológica ou genocídio disfarçado?
Agora sob direção de Gerard McMurray, “Uma noite de crime” mantém alguns dos defeitos dos longas anteriores (falta de explicação convincente para a existência do “Expurgo”, personagens caricatos, roteiro mal desenvolvido), mas se garante como bom filme ao mostrar as origens da noite de matança livre e generalizada. Aproveita, ainda, para ir mais fundo nas críticas política e social, sem medo de fazer referências à ascensão ao poder de Donald Trump, os movimentos de extrema-direita, as manifestações de Charlottesville e o preconceito contra as minorias e os mais fortes.
Com os Estados Unidos ainda mergulhados na crise, os Novos Pais Fundadores defendem que a América só conseguirá se erguer, mais forte e “purificada”, se expurgar todo o ódio, frustração e demais sentimentos ruins acumulados. Por conta disso, eles propõem — e conseguem aprovar — uma experiência social conhecida como “Expurgo”, em que os participantes estariam livres por 12 horas para cometer todo tipo de crime sem precisar prestar contas com a lei, e que depois disso a comunidade se tornaria “melhor”.
Como local da “experiência” é escolhido Staten Island, o mais pobre dos cinco distritos de Nova York e que tem uma população majoritariamente negra e latina, disposta a aceitar os US$ 5 mil oferecidos para cada um participar do experimento – fora os “bônus” por crime cometido. Apenas uma minoria, geralmente os de melhor condição financeira, não concorda com a proposta e sai de Staten Island antes do início do evento. O longa mostra, mesmo que de forma superficial, o debate entre quem defende a experiência e aqueles que a criticam por acreditar ser apenas uma forma de higienização da sociedade, eliminando os mais pobres e — por consequência — necessitados de ajuda federal.
A princípio, o “Expurgo” não apresenta nas primeiras horas o resultado esperado pela psicóloga responsável pelo projeto, interpretada por Marisa Tomei, e pelo governo. Com exceção de um psicopata — que nada acrescenta à trama — e uma meia dúzia de vândalos, a maioria das pessoas fica em casa ou vai para as ruas festejar. É nesse ponto que o longa mostra que a sociedade, muitas vezes, precisa de um gatilho para colocar para fora todo o ódio e ressentimento represados. Só depois que um grupo de mercenários racistas contratado pelo governo (interessado em que o “Expurgo” seja posteriormente expandido) parte para o genocídio é que as pessoas tomam coragem de ir às ruas e participar da anarquia — porém, quase todas usando máscaras, mostrando que elas não têm medo de ser cruéis, desde que não sejam reconhecidas e tenham que encarar posteriormente a responsabilidade pelos seus atos.
Em outra prova de como o mal pode ser banalizado, toda a noite de crime é exibida e debatida ao vivo pelas emissoras de televisão, mostrando que o distanciamento pode tornar a violência como um reality show sádico. O público do cinema, porém, não terá essa sensação porque a história é contada pelo ponto de vista de três personagens: Dimitri (o ótimo Y’lan Noel), traficante mais preocupado inicialmente que o “Expurgo” atrapalhe seus negócios; Nya (Lex Scott Davis), ex-namorada do criminoso e atualmente ativista social; e seu irmão, Isiah (Joivan Slade), que deseja se vingar do psicopata Skeleton (Rotimi Paul).
Com pouco mais de 90 minutos de duração, “A primeira noite de crime” pode repetir alguns defeitos de seus antecessores e ter menos suspense que “Uma noite de crime”, mas acerta em boas cenas de ação e por aproveitar uma história inverossímil para fazer o público refletir sobre até que ponto a humanidade pode descer em seus instintos mais condenáveis — e como somos, geralmente, governados por gente cheia de preconceito e desprezo à diversidade. Não é pouca coisa, afinal.
A primeira noite de crime
UCI 3 (leg): 22h20 (exceto qua). UCI 4 (dub): 20h. Cinemais Jardim Norte 1 (dub): 15h30, 19h. Cinemais Jardim Norte 1 (leg): 21h20.
Classificação: 18 anos