Esta reportagem, obviamente, não é sobre mim, o repórter Júlio Black, mas precisa ser iniciada pelo chamado “olhar estrangeiro” de quem não é natural da cidade – e que jamais havia colocado os pés em terras juiz-foranas até se mudar para cá, há pouco mais de três anos. As poucas referências eram, entre outros, o ex-presidente Itamar Franco, o Tupi, Murilo Mendes, Ana Carolina e o fato de o primeiro passo efetivo para o Golpe de 1964 ter acontecido aqui. Por isso, das coisas que mais me fascinam ao conhecer o passado de Juiz de Fora estão as personalidades que fizeram a história da cidade, como Olavo Bastos Freire, Pantaleone Arcuri, Mariano Procópio, Bernardo Mascarenhas. A lista é enorme, e aumentou um pouco mais com o nome de Geraldo Magela Tavares, que tem sua história contada no documentário “Histórias do Magela”, de Flávio Lins, que será lançado nesta quinta-feira, às 19h30, no Mamm.
Com pouco menos de 60 minutos de duração, o documentário recupera algumas das histórias vividas por este mineiro de Rio Novo, que veio para Juiz de Fora ainda na infância, e mostra como sua trajetória se mistura à história da cidade por mais da metade do século XX e nos primeiros anos do século XXI, culminando com sua morte, aos 87 anos, em 8 de maio de 2015. Sem seguir uma linearidade temporal, “Histórias do Magela” reúne alguns dos depoimentos que Magela deu a Lins entre setembro de 2012 e fevereiro de 2013, num total de aproximadamente 60 horas de entrevistas em encontros semanais.
O filme ajuda a desvendar as diversas facetas de Geraldo Magela. A primeira delas é a do jogador de futebol que decidiu abandonar a carreira após uma contusão no joelho, pois preferiu não operar por medo das sequelas. Depois surge o treinador de futebol que passou pelo Rio de Janeiro, Paraná, mas, principalmente, por Minas em geral e Juiz de Fora em particular, onde treinou o Sport, o Tupynambás e o Tupi, ajudando que o Carijó tivesse, na década de 60, o apelido de “Fantasma do Mineirão” ao derrotar no estádio os três grandes da capital (Cruzeiro, Atlético e América). Há o cronista esportivo, radialista e apresentador de TV, tendo passado pelas rádios Industrial e Nova Cidade e as emissoras TV Industrial, TV Tiradentes e TVE, sendo o criador de programas que marcaram época, como o “Camisa 10” e “Mesa de debates”.
Esteve ainda fortemente ligado ao carnaval, tendo sido diretor de carnaval na Prefeitura de Juiz de Fora, ajudado a organizar alas das escolas de samba e até mesmo participando das transmissões radiofônicas e televisivas dos desfiles. A política também foi outra área em que atuou: teve presença discreta, mas marcante, nas campanhas de eleição de Itamar Franco à Prefeitura, e, anos depois, estava ao lado do ex-prefeito Alberto Bejani, que também era radialista.
Magela multimídia
O documentário faz parte de um projeto tocado por Flávio Lins, professor do curso de comunicação de UFJF, que inclui um livro e um site dedicado ao Geraldo Magela, ainda em desenvolvimento. Todo o trabalho, até agora, foi realizado com recursos próprios de Flávio, que fez as vezes de entrevistador, pesquisador, cinegrafista, diretor e editor – neste último, com o auxílio da jornalista Regina Gaio. “Todas as entrevistas foram registradas com uma câmera de vídeo analógica, posteriormente digitalizadas. Não havia preocupação com iluminação, microfone de lapela, o importante era a informação”, explica o diretor, que se reunia de uma a duas vezes por semana com Geraldo Magela para as entrevistas.
Um dos motivos, segundo ele, para a realização do documentário é seu interesse pela história da mídia, tanto que seu primeiro documentário, “Cariocas do brejo entrando no ar”, de 2012, é ligado ao mesmo tema e foi premiado no Recine (Festival Internacional de Cinema de Arquivo). A escolha de Magela para o próximo projeto vai ao encontro desse interesse, por se tratar de figura tão ligada à história dos meios de comunicação (“ele era multimídia quando ainda não se utilizava esse termo”) na cidade e por ter uma trajetória tão ligada a Juiz de Fora nas últimas décadas. “E também há um lado sentimental. Meu avô, Isaac da Silva Lins, o ‘Zazá’, também foi jogador de futebol e igualmente desistiu da carreira por conta de uma contusão no joelho. Ele se tornou sapateiro, assim como o Magela durante um período.”
Sem papas na língua
Flávio Lins recorda que Geraldo Magela – com quem trabalhou na virada das décadas de 80 e 90 na extinta TV Tiradentes – era conhecido por ser uma figura de comentários ácidos tanto no rádio quanto na TV, de não ter “papas na língua”, mas ao mesmo um apaixonado pela família e um trabalhador incansável, capaz de trabalhar na rádio de manhã e no início da tarde, depois seguir para comandar os treinamentos do Tupi e, à noite, participar do “Camisa 10” na TV Industrial.
Como destaca Flávio Lins, Geraldo Magela mostra nas entrevistas memória prodigiosa para lembrar as histórias, com direito a datas, nomes e outros detalhes, ajudando a trazer à tona nome de figuras que muitas vezes ficaram por baixo da poeira que toma conta do passado. Nestes relatos, é notável perceber, por exemplo, a forma como trata Itamar Franco, de quem mostra um lado humano distante da mítica muitas vezes atrelada a seu nome. “Mas ele sempre deixa claro que, apesar de ter trabalhado com política, jamais enriqueceu por conta dela”, acrescenta Flávio, ressaltando ainda a franqueza com que o Geraldo fala a respeito dos anos em que trabalhou com Bejani.
Um homem discreto, mas sempre presente
Outro ponto a se destacar em “Histórias de Magela”, segundo o diretor, é o fato de que, mesmo quando era protagonista, Geraldo sempre primou pela discrição, apesar de ser pessoa de palavras firmes, fortes, mas que ao mesmo tempo sabia ficar no seu canto quando era o coadjuvante, jamais tentando trazer para si os louros e holofotes que pertenciam a outros. “Ele tinha uma memória impressionante, lembrava todos os detalhes. Só a história do jogo do Tupi com o Southampton, da Inglaterra, dura mais do que a própria partida em si”, diz. “O mesmo se deu com os detalhes sobre o que ele acompanhou do Golpe de 1964, que teve início aqui em Juiz de Fora e com o anúncio feito por meio dos microfones da Rádio Industrial.”
Pesquisa a fundo
Além das entrevistas, Flávio Lins diz ter realizado um trabalho de pesquisa que durou anos, em que reuniu fotos e recortes de jornal que estão no documentário, obtidos em pesquisas na Biblioteca Municipal Murilo Mendes e eventualmente obtidos com o próprio Magela, além de registros audiovisuais que ele utilizou em “Cariocas do brejo…”. De acordo com Flávio, Geraldo topou dar as entrevistas por ter a preocupação de que suas histórias se perdessem com o tempo. Ele, porém, não chegou a ver a produção finalizada. “O Geraldo já estava com problemas de saúde quando voltou a entrar em contato comigo, e eu disse que o documentário ainda demoraria a ficar pronto. Ele disse que seria melhor assim, que fosse lançado apenas depois de sua morte”, relembra.
Após o lançamento, o plano de Flávio Lins em relação ao documentário é continuar a realizar exibições públicas e gratuitas do filme, especialmente em centros universitários e escolas, além da participação em festivais. “Não acredito na distribuição de DVDs, que vão ficar jogados, esquecidos. Essas exibições são muito mais válidas para fomentar o debate a respeito da vida do Magela e também da história da cidade”, argumenta.
Quanto aos desdobramentos do projeto, Flávio espera ter o site na internet em 2018, com o livro lançado em 2019. Ele planeja entrevistar outras pessoas contemporâneas de Geraldo Magela para a biografia e tem em mente obter apoio para as duas iniciativas apresentando uma proposta de projeto de extensão para a UFJF ou se inscrever em leis de incentivo, como a Murilo Mendes. Tudo para manter viva a memória de uma das figuras mais peculiares de Juiz de Fora, que ajudam a cidade a ter uma história e personalidades próprias em nosso país. E que é capaz de impressionar a quem acabou de “conhecê-lo”.
“Histórias do Magela”
Lançamento de documentário de Flávio Lins, nesta quinta-feira, às 19h30, no Mamm (Rua Benjamin Constant 790)