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Indicação de ator surdo ao Oscar revela desafios de pessoas com deficiência nas artes

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Quando foram anunciados, no início do mês, os indicados para a 94ª edição dos prêmios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, a presença de Troy Kotsur na categoria de ator coadjuvante representou a primeira indicação de um ator homem com deficiência auditiva/surdo a uma das categorias de atuação no Oscar. Um dos principais nomes de “No ritmo do coração” _ que também concorre a melhor filme -, ele se junta à pioneira Marlee Matlin, atriz surda que venceu o Oscar de melhor atriz em 1986 por “Os filhos do silêncio”, quando tinha apenas 21 anos. Ela, aliás, faz a esposa do personagem de Kotsur em “No ritmo do coração”.

Sem cair no discurso reducionista e incorreto da “história de superação”, a indicação é um reconhecimento à carreira do artista de 53 anos de vida e quase 30 de carreira. Ela teve início em 1994, numa montagem de “Sobre ratos e homens”, da companhia Deaf West Theatre, localizada em Los Angeles, tendo atuado em mais de 20 peças do grupo, interpretando personagens como Stanley Kowalski e Cyrano de Bergerac. Antes de trabalhar em “No ritmo do coração” _ que também lhe rendeu indicações ao Screen Actors Guild (SAG) e Bafta -, Kotsur participou de filmes como “Número 23” e séries (“The Mandalorian”, “CSI: Nova York”).

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Troy Kotsur e Marlee Matlin, ambos surdos, em cena de “No ritmo do coração”, que concorre ao Oscar (Foto: Divulgação)

Se a indicação de Troy Kotsur ao Oscar de melhor ator coadjuvante chega num momento em que pessoas com deficiências e limitações vão sendo incluídas em diversas produções (“O som do silêncio”, “Eternos”, “Estação Onze”, “Gavião Arqueiro”), o caminho para a inclusão mais efetiva em expressões artísticas como o teatro, o cinema e a TV ainda é longo. Os motivos são vários, e entre eles estão o preconceito, a falta de oportunidades, de acessibilidade e, por consequência, a sensação, por uma parcela dos deficientes visuais e auditivos, de que não haveria espaço para eles.

Nem todos, porém, pensam assim. Um exemplo é o ator, cantor, músico e dublador cego Anderson Carvalho. Atualmente ele mora em Agudo do Sul, na região metropolitana de Curitiba (PR), com a noiva, a atriz e cantora Adri Lima. “Eu fiz em Juiz de Fora o curso de teatro do Trajano Amaral, e por causa disso participei de diversas peças. A primeira foi ‘Homens de pedra’, e também atuei em várias outras, entre elas ‘Mandrágora’ e ‘O prisioneiro’, em que interpretei o protagonista”, conta, acrescentando que enveredou pelo teatro com o objetivo principal de conseguir o registro profissional para trabalhar como dublador.

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Fazer, mas também aprender

Anderson teve que ser persistente. De acordo com ele, tentou outros quatro cursos de teatro antes de estudar com Trajano Amaral. “Entrava em contato e, quando falava que era cego, diziam que não poderia fazer as aulas porque não saberiam como trabalhar comigo. No caso do Trajano, eu só cheguei lá no dia (risos) e tiveram que se virar, porque já havia feito o pagamento da inscrição.” Apesar do acolhimento por parte dos professores, Anderson Carvalho comenta que houve momentos de dificuldades. Segundo ele, várias vezes recebia o direcionamento para atuar da forma que fosse mais natural para ele, sendo que, no seu caso, o seu “mais natural” não é o mesmo para quem estivesse assistindo. “Por mais que não tenha no dia a dia o hábito de gesticular tanto, se o personagem tem que gesticular, eu tenho, sim, que me adaptar ao personagem. Falavam ‘ah, faz o personagem do seu jeito’, e eu estava ali para aprender, não para fazer o que eu já sabia”, diz.

A pessoa que ajudou Anderson na questão do gestual e expressividade foi justamente sua noiva, que começou o curso depois dele. “Foi com ela que comecei a pegar material para desenvolver a expressividade do personagem de ‘O prisioneiro'”, relembra, destacando que foi o mais difícil que teve de interpretar, por também ser cego. Para quem acreditava que isso seria um facilitador, Anderson explica que foi justamente o contrário. “Tinha que mostrar, em certos momentos, a debilidade que o personagem tinha no contexto da peça, mas que eu não tinha, pois era um cego dentro do estereótipo, num contexto medieval – ainda mais que ser cego é uma condição nata para mim, e tive que me adaptar ao que o personagem sofria, de não acreditar que podia fazer as coisas.”

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“Vestindo” o personagem

A jornalista e professora de história Rosani Martins fez um curso de teatro amador ligado à educação nos anos 90, mas abriu mão de seguir carreira por conta dos estudos e trabalho, a fim de ter sua independência financeira, mas não descarta tentar um retorno. Também deficiente visual, ela conta que, na época, não encontrou dificuldades para se sentir inserida no grupo. “Primeiro porque tenho desenvoltura e facilidade para guardar o texto, sem esquecer dos improvisos. Adorei a experiência, ainda mais que o pessoal me recebeu muito bem. Toda vez que vou ao teatro fico com vontade de estar lá em cima, amo o teatro porque é uma arte que não se repete, todo dia você tem uma plateia nova.”

Da época em que pensava ainda em fazer teatro, ela guarda uma conversa com o diretor Marcos Marinho. “Ele perguntou por que não tentava, e eu disse que tinha muita preocupação com a expressão corporal. Ele disse ‘quem dá expressão corporal e ‘veste’ o personagem é a pessoa que o interpreta’, que eu não deveria me preocupar, pois seria minha expressão. Sempre guardei isso”, conta Rosani, que também é cantora.

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Embora sua experiência tenha sido positiva, ela afirma que pessoas em situação parecida ainda são marginalizadas. “A situação melhorou, mas enquanto a gente não naturalizar isso, vai ter que ser imposto”, diz, ressaltando que o mesmo vale para cegos e surdos enquanto público. “Alguns filmes já têm a audiodescrição, que está crescendo, e todas as tentativas de inclusão são boas, válidas, necessárias e importantes. Mas, quando não existe audiodescrição, é como eu digo: cego não vai ao cinema e teatro sozinho, pois há cenas que são importantes e que precisamos de alguém para narrar, assim como na televisão.”

Adaptar é preciso; desistir, não

No caso do ator e músico Marcos Rocha, o limitador é a paralisia no braço direito devido a uma poliomielite contraída quando tinha apenas nove meses de idade. Ele diz que desde a infância tinha o dom para o teatro, e, depois de se mudar de São Paulo para Juiz de Fora, em 1983, fez sua estreia na peça “O casamento suspeitoso”, de Ariano Suassuna, dirigida por Sérgio Lessa. “O próprio diretor ia fazer o papel do juiz, mas ele me deu o papel porque só queria dirigir. Apresentamos no Teatro Pró-Música e foi um grande sucesso na época, e a partir daí não parei mais”, conta Marcos, que inclui na lista de diretores com quem trabalhou o nome de José Luiz Ribeiro, do Grupo Divulgação.

“Atualmente, estou trabalhando com o Thiago Fontoura nas companhia Formô e Ribalta, e ele escreveu uma cena chamada ‘O juízo final’, em que contraceno com outro ator, que vai ser apresentada no Teatro Paschoal Carlos Magno em 17 de março, nas comemorações dos dez anos da companhia Corre Cotia”, adianta o artista, que planeja aprender a tocar teclado _ para isso, inclusive, já adquiriu o instrumento.

Em quase quatro décadas de carreira, Marcos diz não ter encontrado resistência dos diretores e atores por causa das suas limitações, apenas comentários positivos deles e do público, sendo mais uma questão de saber se adaptar aos eventuais desafios. “Certos trabalhos exigiam que usasse dois braços, mas o teatro permite outras formas de colocar seu corpo no palco. Houve uma comédia que fiz com a Nilza James em que interpretava um coronel que tinha que rasgar uma carta que o deixava nervoso; rasgar não daria, pois teria que fazer com a boca, então vi que poderia amassar e jogar fora. Se o corpo não pode fazer certas coisas, você vai por outro meio”, relembra. “E depende também do olhar clínico do diretor, de pensar que tem um ator com certa limitação e ver como trabalhar com ela. O ator com deficiência só precisa saber se preparar e se inserir nesse meio.”

Com o cinema, TV e streaming dando espaço para pessoas com alguma deficiência, seja visual, auditiva, intelectual ou motora, Marcos Rocha acredita que, enfim, aumentaram as oportunidades de inserção na área de atuação. “Com certeza estou me sentindo mais representado. O leque está sendo aberto em relação à deficiência. Anos atrás tivemos uma atriz cega fazendo novela. Eu mesmo interpretei um policial em ‘O monstro do Rio Paraibuna’. A gente sente que existem mais possibilidades das pessoas com deficiência mostrarem seu talento.”

“Temos artistas querendo trabalhar, mas que não têm oportunidade”, diz Adryana Ryal (Foto: Leonardo Costa)

Corpos que podem produzir

Artista que estuda questões como corpo e movimento desde 2006 _ e que tem mãe com deficiência -, a atriz, diretora e produtora Adryana Ryal tem desenvolvido nos últimos seis anos um trabalho de preparação para deficientes visuais e auditivos poderem trabalhar em espetáculos, em cidades como Ubá, Juiz de Fora _ incluindo as crianças e adolescentes do projeto Gente em Primeiro Lugar – e Governador Valadares, entre outras, e conhece de perto essa realidade.

“A pessoa que nasce com uma deficiência – seja visual, auditiva, física (sem um braço, cadeirante, quem sofreu um acidente e passou a ter deficiência) – acaba passando pelo que chamamos de ‘olhares piedosos’, com pessoas que dizem ‘ah, não pode fazer nada’, e isso é mentira. As pessoas tendem a achar que só as pessoas que têm corpos padrão são funcionais, sendo que pessoas com deficiência podem desenvolver aptidões melhores que as que estão dentro do ‘padrão'”, argumenta. “Qualquer tipo de deficiência tem que ser inserida na sociedade civil, mas, como isso não é colocado como prioridade, aí esbarramos nas questões da acessibilidade, do que é permissível para um e para outro. Até os lugares não são acessíveis para todos.”

Atualmente, Adryana desenvolve tese de doutorado cujo tema é a produção de corpos, defendendo que todos os corpos podem produzir. Com a experiência adquirida na convivência com esses grupos, ela tem uma perspectiva sobre as dificuldades encontradas. “Dizem que você tem que ter voz, mas quando essas pessoas se expõem artisticamente não são valorizadas, são descartadas, e sabemos que elas podem fazer. Uma pessoa com deficiência visual vai passar pelos ensaios como qualquer um. Temos artistas querendo trabalhar, mas que não têm oportunidade. Precisamos fazer um mapeamento para saber quem são esses artistas, quais as dificuldades que enfrentam e o que eles podem fazer”, pontua. “Nas escolas há jovens com deficiência interessados em fazer algum tipo de arte.”

Uma vitória coletiva

Se as dificuldades estão aí e devem demorar ainda a serem superadas por completo, pelo menos a indicação de Troy Kotsur ao Oscar serve de alento e esperança. “Minha primeira reação (com a notícia) foi gritar ‘até que enfim!'”, diz Adryana Ryal. “Fiquei extremamente emocionada, pois ao longo dos Oscars a gente vê alguém referenciando seu país de origem, e agora veremos uma pessoa que representa a linguagem de sinais, e isso é fantástico.” Anderson Carvalho concorda. “É importante que esse ator seja reconhecido. É um grande avanço, apesar de cada deficiência ter suas próprias barreiras. É necessário que cada pessoa, em seu contexto, consiga o reconhecimento.”

Para Rosani Martins, ter novamente uma pessoa com deficiência no Oscar demorou _ e muito. “Demorou demais ter um deficiente representando e não sendo representando, sendo que nesse tempo tivemos tanto material humano e outros atores fazendo o papel desses personagens. Lembro do Tony Ramos fazendo um deficiente auditivo em uma novela, e me perguntava na época por que não podia ser um surdo de verdade.”

Marcos Rocha também reconhece a vitória coletiva que a indicação de Troy Kotsur representa. “Foi muito importante para nós, pois normalmente as pessoas olham com reprovação, falam que não seríamos capazes e esquecem que a gente tem uma força interior muito grande. Dificuldades há, mas quando nos comprometemos e conseguimos fazer, vamos derrubando barreiras.”

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