Quando o relógio marca 4h na Inglaterra, no Brasil observamos os ponteiros sinalizando a primeira hora do dia. Enquanto por aqui alguns iam dormir, Nara Vidal acordava em sua casa no Condado de Kent, na vizinhança de Londres. Era início da pandemia e a escritora e colunista da Tribuna sofria com uma inédita insônia. “Passei a me levantar toda madrugada às quatro da manhã, às vezes às três, fazia um café e abria o computador”, narra. Assim surgia “Mapas para desaparecer” (Editora Faria e Silva, 136 páginas), livro de contos que lança agora. “É o meu livro pandêmico”, classifica a escritora, radicada há quase duas décadas no território inglês, onde a vacinação já acontece desde o último dia 8. Se a paisagem de hoje revela esperança, no início do ano, quando surgiu a insônia, a vida parecia suspensa para Nara e sua família. “Quando tivemos aqui na Inglaterra, em março, o primeiro confinamento, começaram as notícias de mortes pela Europa, a pandemia se alastrando, aquilo me desequilibrou bastante. Não era possível não se sentir afetada com tanta tragédia. Inclusive eu sentia muito aflição e revolta quando via representantes de governos rirem da morte dos outros”, conta, tendo que transmitir aos dois filhos a segurança que ela mesma não tinha.
“Mapas para desaparecer” é dedicada à Aurora. E não se trata de uma pessoa, mas do alvorecer que a acompanhou durante a escrita da obra. “É a janela de tempo durante o confinamento que me proporcionou a liberdade de criar sem interrupções e momentaneamente sem medos. Entre aquela brecha de noite e dia eu escrevi o livro todo”, recorda-se a autora que, nos 12 contos, retrata diferentes formas de ausência, das mais objetivas às mais subjetivas. “Em cada texto está um mapa, uma orientação de como é possível morrer, se ausentar, ser cancelado, extraviado, disfarçado. São minhas sugestões de abordagem de cada texto. Essas palavras, em combinação com cada conto, servem para nos nortear (mapa) em relação à hipocrisia, à violência, à agressão, ao esquecimento de cada um de nós dentro de uma suposta normalidade, sob uma situação rotineira”, observa.
Londres, Rio, Juiz de Fora, Guarani
Nos mapas de sumiços que Nara Vidal apresenta também estão um pouco de sua própria geografia. Alguns contos referenciam Londres, outro, o Rio de Janeiro, onde já morou. Também citam Juiz de Fora e simulam paisagens como a de Guarani, sua terra natal. “Faço uso dos territórios que conheço, mas tenho enorme prazer em explorar locais inexistentes”, observa a escritora, citando o conto “Cipó Mil-homens”, que mescla lugares da memória e outros imaginados. “Para aquela história ser narrada, o ponto no mapa teria que ser um local no meio do nada. Pensava no filme ‘Paris-Texas’, naquela aridez do deserto, mas pensava também em uma casinha de barro abandonada que sempre portou uma cruz de fita da Nossa Senhora das Graças na porta, na estrada entre Juiz de Fora e Guarani”, conta.
‘O que se faz com uma ferida aberta?’
Ainda que alguns dos contos sejam narrados por homens, todos os textos contam com o protagonismo feminino. Como em “Sorte”, romance de 2018 e com o qual Nara venceu o concorrido Prêmio Oceanos, o debate sobre as marcas provocadas pelo machismo retornam à cena. Enquanto o romance retratava um século XIX partido pelas questões de gênero e raça, o novo livro se volta para o contemporâneo, quando a violência contra a mulher deixa de ser política de Estado para se tornar artigo dissimulado de contratos sociais. Nara retoma, ainda, “A loucura dos outros”, livro de contos publicado em 2016 e no qual o assunto também foi retratado. Não se trata de um projeto literário premeditado, afirma. “Essa interseção vem sendo a minha observação cuidadosa e atenta às profundezas do universo da mulher em luta contra o universo do homem. Digo ‘em luta’ porque me espanto com o tanto que andamos para frente, para depois retrocedermos em reivindicações, conquistas, direitos e deveres”, argumenta.
Para a escritora, como norte de sua literatura está a provocação de questões incômodas, muitas vezes silenciadas. “Afinal, o que se faz com uma ferida aberta?”, indaga, sugerindo que tais machucados podem auxiliar na discussão e, por consequência, na resolução de demandas históricas em nossa sociedade, como a desigualdade de classes, descortinada em “Carmen”. Na narrativa, a empregada doméstica que dá título ao conto ganhou um bolo para comemorar os 25 anos em que trabalhava para aquela família. A celebração foi após o expediente, o bolo era de um sabor que ela detestava e, ao fim, ainda precisou lavar os talheres e pratos que todos da casa utilizaram. “A sociedade brasileira – e digo brasileira porque não conheço bem outras senão a inglesa, por exemplo – tem suas estruturas e alicerce firmes nessas relações de exploração. Grande parcela da classe média brasileira ainda acredita que é inaceitável deixar de ter a casa limpa por alguém, porque essa prática sempre nos custou pouco”, pontua Nara. “O trabalhador doméstico, a diarista, essas pessoas, geralmente, não querem ser parte da família das supostas casas grandes. Elas têm as próprias famílias, muitas vezes colocadas em segundo plano e sacrificadas por conta dessas horas-extras, dos pedidos para dormir no emprego, dos favores, das cestas em época de Natal”, acrescenta a autora.