Ao se folhear uma revista em quadrinhos, há quem pense que é fácil criar uma HQ, no estilo “até eu faço isso”. Mas não é nada fácil. Basta perguntar a roteiristas ou ilustradores como Scott Snyder, Matt Fraction, David Aja ou Jim Lee o trabalho que dá pensar toda uma sequência de histórias para caber em 22 páginas por mês, às vezes em uma trama que pode durar um ano inteiro. Sendo que, em muitas ocasiões, este é apenas um dos trabalhos que se desenvolve em paralelo, eventualmente com produções autorais que só saem da cabeça por conta de suas assinaturas para personagens como Batman, Superman, X-Men. E com a sorte de ser contratado por editoras do mainstream, Marvel, DC, Image, Dark Horse.
Mas tem muita gente por aí com talento e ideias para colocar no papel, mas que precisa ralar e contar com o apoio dos aficionados pela nona arte. É nesta categoria que se encaixa o casal formado pela ilustradora Sheila Bastos, 25 anos, e o roteirista Rodrigo Dilon, de 27. Os dois – que comandam o estúdio de ilustração e quadrinhos Omamori Studio – iniciaram no último dia 7 uma campanha de crowdfunding (arrecadação virtual) para publicarem “Necromancer – Além do beco”, segunda HQ criada por eles. O objetivo é tentar arrecadar – e, com sorte, até superar – R$ 8 mil até 6 de novembro, para que eles tenham tempo para imprimir o maior número de cópias possível para a próxima edição da Comic Con Experience (CCXP), que acontece entre 6 e 9 de dezembro em São Paulo.
O casal conseguiu ser selecionado para a Artists Alley, espaço reservado para os artistas independentes mostrarem seus trabalhos autorais. Por conta disso, quem quiser dar uma força à dupla pode entrar no link da campanha (www.catarse.me/necromancer) e contribuir com valores entre R$ 35 e R$ 200. As recompensas para os apoiadores vão de uma cópia da revista com marcador de páginas ao supercombo com mimos variados, que incluem – além da revista – a HQ anterior, “Love up!”, postais e poster holográficos e cartela de adesivos, entre outros. Caso atinjam a meta, será possível imprimir 500 cópias de “Necromancer…”, já descontados os gastos com os prêmios e a porcentagem do Catarse.
“Queremos ofertar a mesma experiência que tivemos na infância, por isso procuramos um produto com material de qualidade. E também queremos que as pessoas conheçam nosso trabalho de forma profissional”, afirma Sheila Bastos, explicando que para isso a campanha se faz necessária para imprimir a HQ com uma qualidade que se costuma ver nas principais editoras (miolo em papel couchê fosco 90g/m² e capa em papel triplex 300g/m², com acabamento em laminação fosca e lombada quadrada, a preferida de muitos leitores). No total, serão 76 páginas coloridas no formato 17cmx26cm, pouco maior que o tradicional formato americano. Uma novidade da revista será a inserção de artbooks (ilustrações artísticas) em meio à trama, o que ajuda a contar a história de formas diferentes.
Uma fórmula que funcionou
A tentativa de publicar “Necromancer – Além do beco” por meio do crowdfunding vem de uma experiência anterior que deu certo. Depois de tentarem emplacar o projeto de “Love up!” para a CCXP, ano passado, eles resolveram apelar para a vaquinha virtual, transformando o trabalho digital originalmente em preto e branco numa revista colorida de 56 páginas, com um total de mil cópias, lançada em maio no Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), que aconteceu em Belo Horizonte. “Foi muito legal o retorno que tivemos, foi além do público-alvo que imaginamos para a revista, que era a galera que gosta de games”, diz, Sheila, explicando que “Love up!” consiste numa série de histórias curtas, em que os personagens encaram desafios como se precisassem passar de fase. “Fomos ousados, fizemos a campanha em cerca de um mês, mas as vendas já cobriram os custos”, comemora Rodrigo Dilon.
E foi o sucesso de “Love Up!”, que passou por outros eventos de quadrinhos como o Anime Friends, em São Paulo, e a ComicCon RS, em Porto Alegre, que foi fundamental para a existência de “Necromancer…” – HQ, aliás, que sequer existiria se Sheila não sonhasse com personagens que ela colocou no papel, sem nomes ou história, depois de sonhar com eles.
“As personagens principais da história vieram nesse sonho, as desenhei e passamos a vender os prints das ilustrações nos eventos. Só que as pessoas queriam saber quem eram as personagens, seus nomes, de quais histórias elas participavam, e a gente não tinha nada (risos). Foi a curiosidade do público que nos inspirou a fazer a HQ”, conta Sheila.
“Necromancer – Além do beco” segue em produção a partir de uma ideia de Sheila que é roteirizada por Rodrigo. Depois, é feito o layout, a definição do número de quadros por página, ilustrações, arte-final, colorização, letreiramento etc. Quanto à história, o casal adianta que ela mostrará a origem das personagens principais, Ayla e Zoe, como se conheceram e se tornaram necromancers. “Ayla era uma jovem universitária insatisfeita com o curso que fazia, e por isso mesmo aberta a coisas novas. E ainda havia o fato de ter poucos amigos, a viagem de casa para a faculdade e da faculdade para casa é longa. Só que um dia ela cruza com um gato que a leva para um beco, e de lá ela parte para um mundo sobrenatural, que ela acredita ser uma chance de mudança em sua vida”, adianta Sheila, acrescentando que a origem de Zoe – e como as duas se conheceram – é algo que os leitores só descobrirão conferindo a HQ.
Longe dos rótulos negativos
Quanto ao título (“Necromancer”), os dois acreditam que é uma oportunidade de ajudar a tirar o estigma que a palavra carrega, apesar de ser vista como uma forma de comunicação com o mundo dos mortos para se obter respostas sobre o passado, o futuro e até mesmo o pós-vida, sendo tema popular em RPGs, videogames e obras de fantasia. “As pessoas veem a necromancia como algo negativo, e queremos mostrar que há muita coisa positiva”, diz a ilustradora. “Antigamente, os sacerdotes perguntavam aos espíritos se os reis e imperadores teriam sucesso nos campos de batalha, é daí que veio a necromancia. Na verdade, ‘Necromancer…’, apesar de ter drama e mistério, tem muito mais romance que ‘Love up!’, que apesar do título tinha mais ação e aventura que romance em si.”
Para a história, Rodrigo e Sheila procuraram pesquisar sobre o tema para saber com qual tipo de necromancer estavam lidando, sendo que no caso da HQ as protagonistas lidam com espíritos de animais. Nada ligado ao terror, inclusive, e sim à magia e espiritualidade, com Ayla e Zoe preocupadas em proteger esses espíritos. Outro ponto que eles destacam é a escolha das duas heroínas, tendência que vem se fortalecendo com o tempo pelo aumento do número de leitoras, o que torna o universo das HQs cada vez menos um espaço dedicado apenas a leitores e heróis brutamontes. “Uma coisa que sentia falta na infância era de personagens femininas fortes, e hoje isso vai deixando de ser uma preocupação”, afirma Shiela, que entre as leituras atuais preferidas estão os quadrinhos estrelados pela Miss Marvel, alter ego da adolescente de origem paquistanesa Kamala Khan e uma das primeiras heroínas muçulmanas das HQs.