A cerimônia de premiação da 91ª edição do Oscar, que aconteceu domingo (24) em Los Angeles, nos Estados Unidos, ficará marcada por alguns avanços – o número recorde de mulheres e negros premiados – e, também, pela sensação de que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood se mantém presa a “tradições” (conservadorismo?) que resultam em erros históricos. Erros estes que serão lembrados por muitos anos – com a velocidade do mundo digital, aliás, ajudando a espalhar o assombro com certas escolhas segundos depois de anunciados determinados vencedores. É a sensação (poderíamos afirmar certeza) de que o Oscar mudou para não mudar.
Três horas e 17 minutos depois de seu início, o Oscar 2019 consagrou como melhor filme “Green Book: O guia”, que levou ainda outros dois prêmios, de ator coadjuvante para Mahershala Ali (vencedor na mesma categoria em 2017 por “Moonlight”) e roteiro original. Considerado por muitos como o melhor da safra, “Roma” levou outras três estatuetas (direção, fotografia e filme estrangeiro para Alfonso Cuarón). Quem também faturou três Oscar foi “Pantera Negra”, da Marvel: design de produção/direção de arte, figurino e trilha sonora original. Surpreendentemente, a produção com o maior número de estatuetas (quatro), foi “Bohemian Rhapsody”, com a cinebiografia do Queen faturando melhor ator (Rami Malek), edição/montagem, edição de som e mixagem de som.
A seguir, comentamos alguns dos 24 prêmios oferecidos pela Academia, desde as barbadas e escolhas mais que merecidas, sem se esquecer de equívocos marcados pelo corporativismo, falta de perspectiva história e pura falta de noção, mesmo.
O mesmo erro, 29 anos depois
Em matéria publicada no último dia 17 (“23 vezes em que o Oscar errou feio (ou poderia ter sido mais justo)”), lembramos que “Conduzindo Miss Daisy” venceu o Oscar de melhor filme de 1989 sobre “Meu pé esquerdo”, “Nascido em 4 de julho” e “Sociedade dos Poetas Mortos”. Pois faltou “Faça a coisa certa”, de Spike Lee, que na ocasião só foi indicado a roteiro original e ator coadjuvante (Danny Aiello), para mostrar o quanto a Academia errou feio.
Eis que o erro se repetiu em 2019. “Green Book: O guia”, tem muitos méritos, principalmente na interpretação de seus protagonistas, mas semanas antes da premiação já vinha sendo criticado por ser considerado um filme condescendente na relação entre brancos e negros numa época em que o racismo era muito mais escancarado nos Estados Unidos, assim como em “Conduzindo Miss Daisy” – porém com os papéis invertidos, agora o motorista branco e o patrão negro.
O problema é que este é o tipo de história que faz com que os votantes possam a dormir com a consciência tranquila. Pois, apesar dos conflitos, os opostos acabam entendendo suas diferenças e estreitando laços de amizade, com a crítica social presente, mas de forma atenuada. Quase uma história chapa-branca sobre relações interraciais num período de racismo – e que fica ainda mais difícil de entender o prêmio quando se sabe que a família de Don Shirley, o pianista, denunciou o que consideram inúmeras inverdades da história, a ponto de processar os produtores.
De cara, pode-se pensar em três longas com mais qualidades: “A favorita”, “Roma” e “Infiltrado na Klan”. O primeiro tem o problema de ser “diferente demais” em sua reprodução da corte inglesa no século XVIII; o segundo, além de ser pule de dez para melhor filme estrangeiro, é uma produção da Netflix,e jamais que a Academia iria premiar um longa sem um estúdio por trás, de uma plataforma de streaming e que só chegou aos cinemas para poder disputar o Oscar.
E temos “Infiltrado na Klan”, o motivo para dizermos que, quase três décadas depois, Spike Lee foi novamente injustiçado. O longa do cineasta não tem medo de ser mais incisivo, de esfregar, enfiar e cutucar o dedo na ferida que é a questão do preconceito racial e, numa produção historicamente situada nos anos 70, tecer paralelos evidentes com os Estados Unidos de hoje, em que o presidente Donald Trump é acusado de endossar de forma indireta os supremacistas brancos. É muito para a sensibilidade da Academia como um todo, que teria que dar nada menos que dois pódios para Spike Lee, que fez um discurso contundente ao receber o prêmio de roteiro adaptado.
Dos quatro, “Infiltrado na Klan” é o que tem mais chances de ser lembrado no futuro, mas o Oscar prefere continuar errando.
O filme que deveria ter passado em branco
Absurdo igual somente para os quatro, quatro prêmios (!) dados a “Bohemian Rhapsody”, longa que arrebatou o maior número de prêmios da noite. Desses, é até possível relevar o de melhor ator, pois Rami Malek conseguiu incorporar Freddie Mercury, vocalista do Queen, de forma quase sobrenatural – menos na hora de cantar, e é imperdoável dar o prêmio para um sujeito que apenas precisava dublar em muitos dos principais momentos do filme.
E isso num ano que tínhamos Willem Dafoe como Van Gogh (“No portal da eternidade”) e Christian Bale em mais uma de suas transformações, desta vez como Dick Chenney em “Vice”. Mas seria difícil a Academia dar por dois anos seguidos a estatueta para atores representando figuras históricas brancas, gordas, carecas, visto que Gary Oldman levou no ano passado por sua interpretação de Winston Churchill em “O destino de uma nação”.
Se ainda podemos relevar o prêmio de melhor ator, o restante é impossível de engolir. “Bohemian Rhapsody” faturou os Oscar de edição de som e mixagem de som tendo como adversários “Um lugar silencioso” na primeira e “O primeiro homem” nas duas categorias. E o prêmio de edição/montagem, então? Ignorando a ausência de “Roma”, a categoria tinha “A favorita” e, principalmente, “Infiltrado na Klan”.
Pensando bem, levando em conta que “Bohemian Rhapsody” é um filme que envelheceu mal em tão pouco tempo, é chocante pensar que o longa será lembrado como o “maior vencedor” do Oscar 2019.
‘Pantera Negra’ e Marvel fazendo história
“Pantera Negra” não levou o prêmio de melhor filme (primeira produção de super-heróis a ganhar uma indicação), mas fez história no Oscar. O longa da Marvel faturou três dos sete prêmios que disputou: em figurino, com Ruth Carter, e direção de arte/design de produção com Hannah Beachler, primeiras mulheres negras a vencerem as categorias; e também trilha sonora original, com Ludwig Göransson.
Apesar de serem prêmios “menores”, eles marcam história por mostrar que os blockbusters do gênero podem e devem ter mais conteúdo, tendo como resultado bilheteria (superior a US$ 1,3 bilhão) e reconhecimento artístico. “Pantera Negra” se tornou não apenas um ícone pop, como o super-herói – e rei – do fictício reino de Wakanda se tornou exemplo e motivo de orgulho para negros de toda a parte do mundo. É um estímulo para a Marvel/Disney (e para a Warner/DC Comics) apostarem em produções com personagens diferentes e com histórias que vão além do confronto com o vilão da vez.
Barbadas e surpresas
A cerimônia do Oscar também teve suas surpresas, que não são necessariamente um equívoco. A maior delas foi o prêmio de melhor atriz para Olivia Colman, que superou a favoritíssima Glenn Close (“A esposa”). Mas o desempenho de Olivia como a rainha Anne em “A favorita” mais que justifica a escolha da futura Rainha Elizabeth na terceira temporada da série “The Crown”.
Outra surpresa foi a derrota de “Vingadores: Guerra Infinita” na categoria efeitos visuais, a única em que esteve presente na cerimônia. A vitória ficou com “O primeiro homem”, longa de Damien Chazelle sobre Neil Armstrong, o primeiro ser humano a pisar na superfície lunar. Apesar do trabalho primoroso da equipe de efeitos visuais da cinebiografia, todo mundo acreditava que a obra-prima do time da Marvel com Thanos, interpretado por Josh Brolin, seria reconhecido pela Academia.
Dentre as barbadas, Lady Gaga e o produtor Mark Ronson levaram o Oscar de canção original por “Shallow”, da trilha de “Nasce uma estrela”. Dos 24 prêmios da noite, era dos mais aguardados – e merecidos -, e o discurso de Lady Gaga emocionou. Outro prêmio que não surpreendeu ninguém foi o de melhor animação, com o excepcional “Homem-Aranha no Aranhaverso” ficando com a estatueta. Méritos para a Sony, detentora dos direitos do personagem da Marvel para o cinema, que arriscou numa produção que mesclou diversos – e arrojados – estilos de animação e apostou num protagonista pouco conhecido: Miles Morales, que se tornou o Homem-Aranha do Universo Ultimate no lugar de Peter Parker.
Representatividade em alta
Uma das maiores críticas ao Oscar durante as décadas mais recentes diz respeito à falta de representatividade nas premiações, com mulheres em geral e negros em particular tendo pouco espaço, sem esquecer de asiáticos e latinos, entre outros. Neste ponto, a premiação deste ano conseguiu dar um passo a mais nesse processo de inclusão, com nada menos que 15 mulheres premiadas, sendo que três delas fazem parte do grupo de sete negros que venceram em suas categorias.
Além das já citadas Hannah Beachler e Ruth Carter, outros destaques foram Regina King, que venceu como atriz coadjuvante por “Se a Rua Beale falasse”; Mahershala Ali, que levou seu segundo prêmio de ator coadjuvante por “Green Book: O guia”; Elizabeth Chai Vasarhelyi e Shannon Dill, pelo documentário por “Free Solo”; Rayka Zehtabchi e Melissa Berton, documentário curta-metragem por “Absorvendo o tabu”; Spike Lee; e Peter Ramsey, por “Homem-Aranha no Aranhaverso”.
OSCAR 2019 – VENCEDORES
Melhor Filme
“Green Book: O guia”
Ator
Rami Malek (“Bohemian Rhapsody”)
Atriz
Olivia Colman (“A Favorita”)
Diretor
Alfonso Cuarón (“Roma”)
Atriz coadjuvante
Regina King (“Se a rua Beale falasse”)
Trilha sonora original
“Pantera Negra”
Ator coadjuvante
Mahershala Ali (“Green Book – O guia”)
Roteiro adaptado
“Infiltrado na Klan”
Roteiro original
“Green Book – O guia”
Edição
“Bohemian Rhapsody”
Fotografia
“Roma”
Filme de língua estrangeira
“Roma”
Melhor animação
“Homem-Aranha no Aranhaverso”
Canção original
“Shallow” (“Nasce uma estrela”)
Figurino
“Pantera Negra”
Curta-metragem
“Skin”
Edição de som
“Bohemian Rhapsody”
Mixagem de som
“Bohemian Rhapsody”
Curta de animação
“Bao”
Direção de arte
“Pantera Negra”
Efeitos visuais
“O primeiro homem”
Maquiagem e penteado
“Vice”
Documentário
“Free Solo”
Documentário curta-metragem
“Absorvendo o tabu”