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‘O audiovisual não consegue ser tão absurdo como Temer’

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Wellington no papel do agente intergalático WA4, mandado à Terra para matar JK. Chegou atrasado (Foto: reprodução)

A sensação de confusão, delírio, insurgência seguida de impotência diante do cenário político contemporâneo estão explícitas nas muitas camadas de áudio e na potência artístico-visual de “Era uma vez Brasília” (2017). A ficção científica, classificada como documentário, é dirigida por Adirley Queirós, morador da Ceilândia, periferia no Distrito Federal, que serve como locação para alguns de seus filmes, como “A cidade é uma só?” (2013) e “Branco sai, preto fica” (2014). A imagem do Edifício do Congresso Nacional em Brasília, com suas torres, assimetria e rampas parecem mesmo arquiteturas de abdução. Quando deslocadas para uma ficção científica, tornam-se coerentes com a direção de arte assinada por Denise Vieira. E quem está lá dentro são verdadeiros monstros que precisam ser combatidos.

Parece que Adirley pegou o âmago dos discursos políticos recentes, a fala de posse de Michel Temer, as palavras de Dilma Rousseff sendo tirada da presidência e, principalmente, o dia da votação em favor do “impeachment”, com “sim” em favor da família, mandando abraço para a mãe, colocando Deus na história; talvez os 2 minutos de celebridade dos legisladores diante do Brasil inteiro. Os fatos sucedem e antecedem uma enxurrada de escândalos, áudios vazados e notícias contraditórias. Um filme documentando tudo isso só poderia ser nonsense, para dar conta dos aspectos mais profundos desta história que se passa, ainda sem fim, como a narrativa. Na Mostra de Cinema de Tiradentes, quando os curadores Lila Foster e Cleber Eduardo foram apresentar a temática da 21ª edição, “Chamado Realista”, o longa de Adirley foi um dos mais claros exemplos. Um filme que é classificado como documentário por registrar o real, mas que está embalado por uma estética e pano de fundo de ficção científica. As categorias de gênero no cinema cada vez importam menos.

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A atriz Andreia Vieira em cena de “Era uma vez Brasília”, com Marquim da Tropa ao fundo (Foto: reprodução)

“Era uma vez Brasília” parece ser o início da narração de uma fábula surreal, mas que dessa vez não tem desfecho, muito menos deixa uma lição e mensagem. O longa de 100 minutos é anticlímax, retrato do que se passa na cabeça dos indivíduos ordinários e desprovidos de poder, sem perspectiva de saída. O filme é, também, documentário por não partir de um roteiro clássico, e sim de apenas três atores-personagens: Wellington de Abreu, Andreia Vieira e Marquim da Tropa. Dos três, apenas Wellington recebeu um nome fictício para dar o caráter de ficção científica ao enredo. Seu personagem, WA4, um agente intergalático, fez uma viagem espacial do planeta Sol Nascente para cá com a missão de matar Juscelino Kubitschek no ano da inauguração de Brasília, porém foi burlado pelo tempo e acabou chegando à Terra em 2016, com JK morto e Temer no poder.

WA4 teria sido preso, antes de aterrissar na Cidade-Satélite Ceilândia, por ter feito um loteamento ilegal, uma analogia à redistribuição de terra a partir de uma ocupação, talvez. Uma das ideias, com roteiro aberto, foi tentar a saída “porque não mata outro presidente?”. “A gente testou uma cena dessa, mas acabou não dando muito certo, não. No dia 7 de setembro, foi engraçadíssimo, a gente chegou ao Parlamento, foi entrando, o Marquim da Tropa paramentado, junto comigo e a diretora de fotografia, Joana Pimenta, e a gente ficou a 15 metros do Temer”, contou Adirley durante debate em Tiradentes. Para a realização de tal desejo, há uma cena longa de um carro pegando fogo. Não precisa nem ser dito, quem aquele carro, sendo decomposto aos pouquinhos, estava simbolicamente representando.

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O filme começa quando sai da inércia. A arte, fotografia e produção são colocadas em prática e partem para a aventura, ainda sem saber o que se esperar – como qualquer documentário. A entrada de um quarto personagem é a maior prova disso. Franklin Ferreira, até então, era apenas cenógrafo, ficava trabalhando em uma oficina para construir o que seria a nave de Wellington. Um dia, enquanto fazia seu serviço, um policial suspeitando do movimento em um desmanche de carro, entra em seu espaço já perguntando: “O que é isso aí?” e Franklin responde com convicção, sem hesitar: “uma nave, não está vendo?”. Uma ficção científica sem efeitos especiais, com atores não profissionais, dependia muito dessa veemência, para que a interação dos “personagens” com os objetos fosse muito natural. A dedicação de Franklin com a cenografia, inesperada vindo de um homem de uma oficina de automóveis, faz com que ele entre em cena e se torne personagem de uma hora para a outra, em meio às gravações.

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Quando deram o “start”, alguns pontos de locação também estavam definidos – o carro e a nave – e, depois, a ponte, onde Andreia, que seria uma espécie de rainha do pós-guerra, se encontra. A ideia central é sobre personagens em cárcere, criando essa ambiguidade e contraste absurdo, de se abrir a narrativa para toda a galáxia (“Um filme top das galáxias”, afirmou Franklin no Festival de Brasília), mas onde todos estão aprisionados – uma metáfora de nossas ações e ideias pouco catárticas. Filmam na rua, mas sempre em ambientes fechados. Quase como se as manifestações na rua estivessem mornas, fragmentadas e pouco efetivas, refletindo a imobilidade política que nos coloca em um estado permanente de prisão.

“O personagem do Wellington está tentando lidar com a nave, e na nossa cabeça todos eram presos, a nave é construída como uma cela, poderia ser a narrativa de um presidiário na cadeia. O carro também. Estavam sempre encarcerados, construindo a fantasia de lutar contra inimigos. A gente ia sem autorização, sem nada, de quatro a cinco pessoas para aquela ponte, e a tensão da equipe era a mesma dos personagens”

Adirley Queirós, diretor

Para passar a ideia da nave estar voando, por exemplo, deixaram Wellington preso por duas horas, sem comunicação com ninguém do lado de fora do set, enquanto balançavam a nave e fumaça ia subindo. Quase sempre ele aparece, dentro daquele cubículo, fumando, com imagens azuladas e a fumaça branca tomando conta. “Eu acho que ele entrou em paranoia. O filme tinha muito essa ideia da alucinação”, disse o diretor. Na montagem de “Era uma vez Brasília” os planos são excessivamente longos, aproveitando de toda estrutura da arte e da fotografia, que são sempre escuras e noturnas.

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Se há algum momento de maior tensão no filme certamente é o dos helicópteros da polícia, filmados de verdade, enquanto Marquim estava todo paramentado de frente para o Congresso e de fora dos dois lados de posicionamento político-partidário. A equipe de filmagem permanece parada com a câmera ligada o dia inteiro. Quando se afastam, e continuam filmando Marquim da Tropa em sua cadeira de rodas, com aquela mise-en-scène de confusão de Brasília ao fundo, os helicópteros começam a baixar para investigar o que poderiam estar tramando ali. “A gente provoca aquele helicóptero em certo sentido, a gente queria provocar uma atenção. Não sabia que chegaria àquele ponto”, relatou Adirley Queirós.

Utilizando-se de sucatas e cenário enxuto, atrelado a um incrível trabalho de som, pouco som direto e mais desenho de som assinado por Guile Martins, Daniel Turini e Fernando Henna, Adirley fez de “Era uma vez Brasília” um manifesto político-estético ligado a uma ideia de deslocamento de tempo e espaço. Fernando chegou a dizer durante o debate que se viu diante de 64 camadas de som durante a mixagem. Isso criou uma atmosfera perturbadora, uma menina saiu da sala de cinema dizendo estar com náusea por conta do som, que é encaixado, em certos pontos, desatrelado da imagem. Essa dissociação pode ser uma metáfora aos diálogos vazios, sobre se ouvir muita opinião, mas pouco efetivas para se causar alguma revolução.

Leia a conversa que tivemos com o diretor Adirley Queirós durante a Mostra de Cinema de Tiradentes:

– Você se apropria dos áudios dos discursos e votação no Congresso Nacional de uma maneira muito legal, porque os insere em uma produção de ficção científica. Você considera que, mesmo usando dois discursos binários (Temer e Dilma), consegue atravessar esse dualismo?
– A gente sempre quis utilizar aqueles áudios mesmo, e o posicionamento não é que a gente “ame” a Dilma, a gente só acha que o Temer seja um monstro. É um filme anti-Temer, mas não necessariamente pró-Dilma. Por mais que ache o governo do PT incrível, tenho minhas considerações sobre o governo Dilma, não com a Dilma. O filme tinha a ideia que esses sons e a política estivessem presentes, a intenção era dizer bem assim: ‘o mundo acabou depois do golpe’. Toda aquela estética da noite, da escuridão tinha a ver com isso. Como poderíamos contar esse fato tendo a mínima conexão com o Brasil? E fizemos através do som. Aquele discurso da Dilma, na minha convicção, é o único emocionante, porque ela sempre tem um discurso muito frio, não tem muito carisma. A gente pensava que aquele discurso era o mais humano, o que tocava as pessoas. Já o do Temer, desde o início, é muito opressor. A primeira coisa que ele faz é usar mesóclise, é uma barreira gramatical, o oposto ao que era o do Lula, que aproximava o povo. A monstruosidade da fala dele já é sobre falar somente para um grupo de pessoas. E é binário no ponto de vista de ser uma ficção científica que propõe o bem e o mal. Tinha que ficar muito evidente que o Temer representava o lugar da opressão.

– O filme parte de um mundo fantástico e vai em direção ao antificcional por se aproximar de um hiperrealismo?
– O filme é uma etnografia da ficção. A ideia foi propor uma ficção que, de tão absurda, se aproximaria do real. A proposta estética, a fotografia, o som e a montagem criam esse lugar muito forte ao redor. A Joana entra com o olhar etnográfico dela, porque ela é uma fotógrafa de documentário, isso influencia muito em como todo o filme se constrói. Essa ideia do hiperrealismo, de como chega, é o nosso imaginário no cotidiano. O que o filme propunha era uma intervenção dos corpos em espaços muito estranhos, que nos levariam a pensar sobre várias coisas. Por exemplo, a cena das pessoas com mordaça e algema no metrô é uma performance. Todo dia ir para o trabalho é uma opressão. O metrô ou o ônibus, para quem mora na periferia, é a senzala moderna, você fica duas horas indo e voltando. O filme mostra a ideia de que o espaço é muito opressor e não tem saída neste momento e nesta opressão.

Adirley Queirós durante debate (Foto: Beto Staino/Universo Produção)

– E é legal a contradição que se estabelece por você tratar também do espaço, de toda galáxia nessa ficção científica. O filme está nesse universo amplo, mas os personagens estão esmagados.
– O que os personagens chamam de Planeta Sol Nascente é o nome da maior favela da América Latina, que fica na Ceilândia, onde eu moro, com mais de 100 mil pessoas. O Wellington Abreu invadiu um lote lá mesmo, na vida real. Quando ele fala “me pagaram para invadir um lote e matar o presidente”, ele traz o imaginário dele em relação à cidade. Todos os elementos que estão ali dentro estão colados com a favela Sol Nascente. Ele veio do Planeta Sol Nascente, ele veio lá da casa dele na verdade, ele foi preso ao lado da casa dele e, mais uma vez, realocado para outro lugar. É muito comum em Ceilândia as pessoas terem amigos e irmãos presos, o “saidão” sempre está no Natal, a cadeia é algo próximo. A nossa ilusão estética era que as referências estariam com esses moradores, capazes de construir o caminho que quisessem com o filme. O filme é aberto, é um espaço muito estranho e a única forma de contar essa política é através do absurdo. A política, o golpe, tudo é tão absurdo, tão estranho. O Temer ser esse “garçom” para o mercado financeiro é tão absurdo que o audiovisual não consegue ser tão absurdo como o Temer. O que o Temer faz é inventar narrativas, “o dólar subiu” é uma delas. O filme reinventa corpos que não aceitam essa gramática. O Temer sempre fala “um novo horizonte se aproxima”, e esse áudio está na cena final, ao passo que nunca há horizonte durante o filme, ele se passa somente à noite.

– Eu acho que o filme, mesmo tratando de absurdos, que poderiam torná-lo muito irônico, não tem muito humor porque você não quer assediar público. O que você acha?
– Sim, a proposta não era essa. E também acontece o seguinte, esse filme passa muito no exterior e é interessante como as pessoas lá fora têm a ideia de ser um trabalho muito plástico, como um filme que poderia estar sendo exposto em um museu de arte moderna, porque ele é encarado como uma performance. Eles categorizam meu filme como um filme de arte, eu acho massa também.

– Justamente porque elas estão distantes do real, dos fatos políticos no Brasil.
– É interessante observar que mesmo em um país tão grande como o nosso, e o absurdo que aconteceu, a exposição internacional é muito pequena, só os iniciados em política sabem.

– Durante uma entrevista que você deu no Festival de Brasília, eu li sobre você achar as imagens mais potentes do que o som do filme. Embora tenha sido uma mixagem complexa, com captação de muitos barulhos, sucatas, ventilador. Por que você tem essa consideração?
– Eu acho que as imagens chegaram mais longe do que o som, e potencialmente o som tinha mais força. Não que o som seja melhor ou pior, mas houve um potencial de som que a gente jogou fora. Eu perco muito tempo fazendo o som dos filmes, estou sempre envolvido nessa parte. Acho que os sons dos filmes têm um potencial absurdo que muitas vezes não é absorvido na produção de cinema. No “Era uma vez Brasília” a gente tinha uma pesquisa experimental de som e poderia chegar a um som muito mais distante.

– É legal esse caminho do cinema brasileiro, porque se pensarmos no Cinema Novo, o áudio sempre foi muito aquém do visual. Nos filmes do Rogério Sganzerla havia imagens icônicas, mas o som não acompanhava. Você acha que na produção de cinema atual o design de som está sendo tão pensado quanto as imagens?
– Acho que sim. Hoje em dia eu penso muito mais no som. A gente falar do som antigo que existia também tem que levar em consideração do equipamento que se tinha, muito mais sucateado. E acontece um processo que é incrível também, por estarmos acostumados a ver filme com língua americana, parece que o texto em inglês soa melhor. Por exemplo, eu não falo nada em inglês, então quando ouço uma música, a palavra é como um instrumento musical. Não importa se fala do cachorro ou da mãe, eu entro, choro, bebo, me emociono com o que nem sei o que é. Quando o texto é em português, parece que é mais fraco, impotente, acho que tem muito a ver com as salas de cinema e o quanto a gente pode investir financeiramente em áudio. Quando falo disso, é desde a captação até a mixagem final. Esse filme, “Era uma vez Brasília”, depende de uma exibição boa, é um filme plástico, depende até do horário e do espaço.

Adirley Queirós (Foto: Beto Staino/Universo Produção)

– Quase como se fosse uma instalação artística?
– Pronto. Esse era o termo que eu estava procurando. Ele tem muito de instalação, tanto é que alguns museus estão querendo comprar o filme, para ficar lá para sempre como um bem material. Porque eles acham que o filme tem uma força estética e sonora. Eu tenho clareza que é difícil o acesso das pessoas a esse filme neste momento, acho que daqui a 5 anos ele será revisto com uma outra perspectiva. Ao contrário dos outros filmes que eu fiz, que batiam muito de imediato.

– Talvez se ele for rememorado daqui a cinco anos, ele já será digerido de outra forma porque será uma experiência diferente, vamos estar, possivelmente, em outro momento político.
– Importante você falar isso, na real porque a gente se perdeu, falando por mim. A gente não sabe onde está, foi nocauteado. Na minha visão pessoal de militância de esquerda, com os 47 anos de idade que tenho hoje, acompanhei desde o surgimento do PT, mobilização nas ruas, uma idealização da esquerda, experimentei as benesses de um governo progressista, os editais são isso. Quando que um grupo de periferia ganharia um edital para produzir um filme? Então existiu, sim, esse momento de democratização dos bens de consumo, bens de acesso.

– Importante você ter falado no debate sobre a liberdade que os cineastas brasileiros têm com estes editais e financiamentos estatais. Podendo-se fazer e experimentar o que quiser. Isso é crucial para tudo o que tem acontecido de novo no cinema brasileiro.
– Existe muito uma ansiedade para a ideia de mercado. A nova política da Ancine, por exemplo, vai te direcionar a um canal de televisão. Eu não tenho nada contra televisão, tenho vontade de fazer televisão um dia, e acho que a TV brasileira pode se tornar incrível. Mas os editais começam a te fazer passar por uma determinada consultoria. E é massa uma consultoria se o outro é uma pessoa próxima ou se é alguém que eu considero importante mostrar um roteiro. O problema é haver uma formatalização. Eu adoro o roteirista Syd Field, mas não tem que ser só isso. Aquele é um caminho que podemos iniciar, um modelo pragmático, mas que precisa ser desmontado. Como tudo na vida. A gente aprende, se envolve e a vontade é que a gente desmonte e construa algo novo. Penso muito sobre o que a gente faz em relação a isso. Se a gente tem essa liberdade, porque a gente não afunda nela? Por exemplo, a violência de um corpo na periferia ou a de uma travesti apanhando na rua, se a gente não cria uma outra forma para contar essa violência, a Globo faz aquilo também, não vai haver diferença nenhuma em relação ao que nós fazemos. Enquanto construtores do filme, precisamos criar uma narrativa diferente.

 

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