Fictício denota ausência de realidade. Não se enquadra, portanto, como adjetivo para a exposição “Vertigens”, de Dalton Carvalho. “Ela existe de fato, mas não no nosso campo. Prefiro chamar de virtual”, pontua o artista gráfico sobre a mostra hospedada num site de realidade virtual. Com exatidão, o espaço reproduz a Galeria Retratos-Relâmpago do Museu de Arte Murilo Mendes. As 27 telas da mostra também existem e se encontram no ateliê do artista. O que não encontra paralelo no palpável é a montagem e a instalação criada no centro da exposição, com seixos e madeira fixados num pilar do museu da Rua Benjamin Constant. Tal qual a experiência física, “Vertigens” permite o passeio pelas obras e a identificação de cada uma, ao som da trilha sonora criada pelo artista e músico Guilherme Melich.
“Já havia fotografado todos os trabalhos e, dentro do software, consegui colocar a escala. Consegui criar o simulacro da realidade. Para essa exposição tinha pensado em fazer um site-specific, o único elemento que não foi executado e funciona como um projeto”, diz Carvalho, referindo-se à obra intitulada “Convergências”, uma espécie de árvore com as raízes de pedras e as folhas feitas com sarrafos de madeira, nos moldes das cidades caóticas que o artista retrata em seu trabalho. Como uma retrospectiva da trajetória iniciada em 2014, a exposição virtual passa por diferentes fases (coerentes, sobretudo) de uma produção que reflete sobre as cidades sob ângulos absurdos.
“Comecei a minha produção artística trabalhando com o digital”, conta. “Sou arquiteto de formação e trabalho com essa parte de maquetes eletrônicas e, a partir dos programas que já utilizava no dia a dia, comecei a explorar maneiras mais artísticas, criando composições. O primeiro trabalho que teve alguma relevância chamo de ‘Hipercities’, uma espécie de cidade distópica, um amontoado de blocos e estruturas que lembravam um centro urbano. A partir daí fui ampliando a escala”, narra Carvalho, que passou a montar cenários no computador e pintar a partir deles.
Se em sua primeira série Dalton Carvalho questiona as hipérboles das cidades contemporâneas, na segunda, “Psicogeografias”, parece implodir o espaço urbano, conferindo ainda mais abstração às suas imagens, já em sua maioria feitas em acrílica sobre tela. “Fico tentando retratar um percurso específico e vou mapeando-o, criando um ponto de vista específico”, comenta, subvertendo a noção do ponto de fuga. “Tudo isso está baseado no trabalho de uma galera que sempre gostei muito, os pensadores dos anos 1960 e 1970, que pensavam no papel que a gente desempenha na cidade, os situacionistas”, explica, apontando para o movimento de vanguarda em defesa de uma arte crítica e revolucionária.
‘Nada do que faço é figurativo, as coisas são insinuações’
Em criações mais recentes, Dalton Carvalho confere organicidade às cenas antes preenchidas apenas por linhas retas. O gesto é resultado da mentoria que fez com o artista paulistano Stephan Doitschinoff durante a quarentena, conta. O ponto de partida, no entanto, continua sendo o mesmo. E atualmente o artista já utiliza imagens geradas por satélites, estudos da Nasa ou o próprio Google Earth como referenciais iniciais. Na tela “Psicogeografias #’9”, por exemplo, entre o que seriam prédios brancos e azuis surge uma interferência com formas arredondadas na cor vermelha. Uma rua, um túnel ou um bicho? “Nada do que faço é figurativo, as coisas são insinuações”, diz, preciso.
“O tema pode ser o mesmo, as cidades, as derivas, esse caminhar perdido para encontrar coisas novas. Minha temática não mudou. Mas as coisas estão diferentes, tanto tecnicamente – tenho trabalhado com nanquim e aquarela – e percebo uma evolução. Tento fazer as séries para entender melhor essa transição. Agora tenho feito trabalhos mais orgânicos, com muito mais elementos fluídos”, avalia o artista natural de Nepomuceno, no Sul de Minas e há 15 anos vivendo em Juiz de Fora, para onde se mudou para cursar arquitetura.
São de Nepomuceno, inclusive, suas raízes na pintura. Coisa de casa, lembra. A mãe pintava e transmitiu ao filho a prática. “Foi sempre um hobbie, algo que eu mesmo não levava muito a sério”, pontua ele, que, por conta da faculdade e da carga de atividades, acabou deixando a pintura de lado. Já atuando profissionalmente como arquiteto, lentamente retomou. Quando percebeu que encontrava uma linguagem e um discurso que lhe interessavam, assumiu os pincéis de vez. “Entendi que poderia ser um caminho e quis expandir isso e não ficar apenas no digital. O computador é só mais uma ferramenta, mas as pessoas acham que, pela automatização, vira uma coisa menor para a arte. Eu precisava transpor para uma mídia mais tradicional, não para provar que eu podia fazer, mas para sair mesmo do digital.”
Um trabalho, uma estreia
“Vertigens”, a exposição virtual, é sua estreia em um museu. E sua segunda individual. Há dois anos Dalton Carvalho fez sua primeira e única individual num shopping da cidade. “Sou usuário assíduo do Museu de Arte Murilo Mendes e, como ele está fechado, pensei que seria interessante propor a exposição neste momento”, observa o artista, contemplado pelo edital Janelas Abertas, que deve divulgar a mostra nas redes sociais da Pró-Reitoria de Cultura da UFJF nos próximos dias. “Vertigens” também é resultado de um curso de expografia e montagem de exposições feito por Carvalho em 2019. Como trabalho final eram exigidas planilhas e estratégias, que o artista utilizou em sua recriação da galeria juiz-forana. Juntou, portanto, seu conhecimento cotidiano com o saber recém-adquirido e ergueu sua própria mostra em tempos em que o virtual parece mais real do que a rua.