Quando falamos, hoje, de filmes de super-heróis, pensamos em produções classificadas com um gênero em si, extrapolando os rótulos de ação, aventura, fantasia, até mesmo de ficção científica. São projetos que podem ultrapassar facilmente os US$ 200 milhões de orçamento, faturar mais de US$ 2 bilhões em bilheteria e ter como protagonistas e tornar ícones da cultura pop personagens então desconhecidos do público distante do mundo dos quadrinhos, como o Homem-Formiga, Doutor Estranho, Arlequina, Deadpool, Aquaman, os Guardiões da Galáxia, Homem de Ferro.
Mas nem sempre foi assim. Nas décadas de 1950, 60 e 70, alguns heróis chegavam a ultrapassar a barreira dos quadrinhos e se aventurar em outras mídias, como o rádio, a televisão (em seriados live-action ou animações) e o cinema – neste caso, em pequenos filmes exibidos em episódios semanais. Tudo isso mudou, porém, em 10 de dezembro de 1978, quando houve a exibição, em Washington (Estados Unidos), de “Superman: O filme”, primeiro filme de grande orçamento (que hoje chamamos de blockbuster) a ter um super-herói das histórias em quadrinhos como protagonista – e logo o primeiro e maior deles. A estreia oficial nos EUA aconteceu cinco dias depois, em 15 de dezembro – no Brasil, sua estreia se deu em 6 de abril de 1979.
A um custo aproximado de US$ 55 milhões (valores da época), a produção dirigida por Richard Donner e estrelada por um então desconhecido Christopher Reeve (1952-2004) encerrou sua temporada na tela grande com uma bilheteria mundial de US$ 300 milhões, que ultrapassaria o bilhão de dólares em valores atuais. Com um elenco que incluía nomes de peso, como Marlon Brando (1924-2004) no papel de Jor-El, pai do protagonista e que recebeu US$ 19 milhões entre cachê e participação nos lucros brutos da bilheteria; Gene Hackman como o vilão Lex Luthor; Margot Kidder (1948-2018); mais trilha sonora de John Williams (responsável pelo clássico tema do personagem) e primeira versão de roteiro assinada por Mario Puzo (“O poderoso chefão”), “Superman” foi indicado a três categorias do Oscar e levou um prêmio especial por seus efeitos visais – que fizeram jus à promessa do cartaz promocional, que dizia “você verá que um homem pode voar”.
Apesar do sucesso estrondoso do filme e das críticas positivas para sua sequência, ainda que com bilheteria inferior, “Superman” não conseguiu tornar produções do gênero algo rotineiro e de sucesso constante. Os terceiro e quarto filmes da franquia foram um fiasco, outras produções da época foram igualmente um fracasso (“Howard, o Pato”, “Supergirl”) ou tornaram-se, no máximo, cults (os dois “Conan”). A situação só foi melhorar mais de uma década depois, com os dois “Batman” de Tim Burton, mas logo voltou a piorar com os longas do Homem-Morcego dirigidos por Joel Schummacher. Foi o lançamento de “Blade”, em 1998, com um personagem pouco conhecido mas que se mostrou rentável, que abriu caminho para “X-Men” (2000) e “Homem-Aranha” (2002), e o resto é história e “Vingadores: Guerra Infinita”. Ironicamente, aquele que é considerado o maior dos heróis não deu as caras nos cinemas quando completaram-se os anos de sua primeira aparição nos quadrinhos (junho de 1938, na primeira edição de “Action Comics”).
Referencial e para todos
A despeito de não produzir o efeito que poderíamos imaginar a partir dos parâmetros atuais, o “Superman” de 1978 sempre será o marco e referência para o cinema de super-heróis, por todo o cuidado com a produção, a preocupação em respeitar as origens e motivações do herói nascido no planeta Krypton e ter materializado os sonhos dos fãs da nona arte, além de já atentar para os riscos de não transformar o filme em algo destinado a um nicho mais restrito de público – ponto destacado por Jota Silvestre, jornalista especializado em cultura pop, colaborador da revista “Mundo dos Super-heróis” e editor do blog Papo de Quadrinho. Para ele, fazia todo o sentido que o pioneiro do gênero nos quadrinhos se tornasse o protagonista do primeiro grande filme de super-heróis.
“O ‘Superman’ de 1978 foi o primeiro do gênero de super-heróis a receber tratamento destinado a um público mais amplo, e não só às crianças. Os produtores investiram uma fortuna em efeitos especiais para suspender a descrença desse público adulto e não leitor de quadrinhos, e convencê-lo de que ‘o homem pode voar'”, pontua. “Importante lembrar que, embora o filme não tenha desencadeado uma ‘supermania’ (como aconteceu com Batman na época do seriado de 1966 e do filme de 1989) e nem provocou aumento nas vendas das HQs do personagem, Superman era o herói mais popular dos anos 40 e 50 graças ao programa de rádio e ao seriado estrelado por George Reeves. No meu modo de ver, Superman continua sendo – e sempre será – o pilar da DC Comics e do gênero de super-heróis.”
Como é regra em Hollywood, o sucesso de “Superman” impulsionou algumas produções inspiradas nas HQs, dentre as quais Jota Silvestre lista “Monstro do Pântano”, “Supergirl” e as próprias continuações de Superman. “Mas os estúdios não estavam mais dispostos a investir o mesmo valor e o que se viu foi uma enxurrada de pastiches, fazendo com que a fórmula se esgotasse rapidamente. Todo mundo queria fazer um filme igual ao do Superman de 1978, mas ninguém teve a competência ou a coragem de investir, e o que se viu foram cópias malfeitas.”
Na visão do jornalista, isso mudou apenas em 1989, graças principalmente ao sucesso que Batman vinha fazendo nos quadrinhos em HQs como ‘O retorno do Cavaleiro das Trevas’ e ‘Ano Um’, ambas de Frank Miller. “O Homem-Morcego ganhou novo impulso, reconquistou fãs antigos e trouxe novos, virou um best-seller, e isso encorajou a Warner a voltar a investir numa superprodução do Batman – haja visto o elenco de estrelas, como Jack Nicholson e Kim Basinger (a mulher mais desejada daquela época), a trilha sonora de Prince e os efeitos especiais.”
Os fãs de ontem, hoje (e amanhã)
Para Larissa Becko, mestranda em ciências da comunicação pela Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos, localizada na gaúcha São Leopoldo) e pesquisadora de fãs de super-heróis, os consumidores do universo de vigilantes fantasiados atualmente estão rodeados de novas formas de viver a experiência de fã e encaram de forma positiva a popularização desses personagens, pois é o que incentiva a indústria do entretenimento a lançar novos produtos.
“Os heróis das HQs conquistaram espaço além das prateleiras de bancas, livrarias e lojas. O ‘Superman’ de 1978 é visto atualmente como o primeiro blockbuster do gênero. Com o sucesso das adaptações cinematográficas dos quadrinhos, a indústria começou a colocar os super-heróis como protagonistas em vários outros produtos, como séries de TV, jogos de videogame, acessórios de vestimenta e decoração etc., e o crescimento de consumo conferiu a este universo o status de mainstream.”
‘Sem defeitos’, 40 anos depois
Jota Silvestre considera difícil estabelecer a influência que o “Superman” de 40 anos atrás possa ter no cenário atual. Ele acredita ter havido uma construção ao longo desse caminho, com mais erros que acertos, até a consolidação da fórmula iniciada com “Blade” e que se tornou uma das marcas do Universo Cinematográfico Marvel. Por isso, mesmo quando comparado com os produtos atuais, que lidam com histórias conectadas e uma linguagem mais ágil para contar as histórias, efeitos especiais inimagináveis no passado ou o polêmico “sombrio/realista” de algumas tramas, “Superman” nada fica a dever ao que se vê nas telas hoje.
“Pode me chamar de fanboy (termo utilizado para fãs mais radicais), mas não consigo ver defeitos no filme de 1978. O personagem, na época, tinha quatro décadas de publicação, e muitas mudanças e retcons (alterações em fatos passados) foram feitas nesse período nos quadrinhos, deixando o cânone confuso. As mudanças que o filme fez na cronologia – muitas delas incorporadas depois nas HQs – são insignificantes perto da forma como os produtores (e o diretor Richard Donner, em especial) captaram a essência do personagem. Aquele era o verdadeiro Superman que todos nós amamos: corajoso, altruísta, levemente bem-humorado, um exemplo de bondade.”
Por isso mesmo, ele é um dos (poucos?) defensores de “Superman – O retorno” (2006), em que o diretor Bryan Singer buscou resgatar o espírito do primeiro longa. “Este é um filme mal compreendido. No meu modo de ver, é um filme-homenagem, que se mantém fiel ao espírito da produção de 1978 e dá um passo além, da mesma forma que ‘O despertar da Força’ faz em relação a ‘Uma nova esperança’ na franquia ‘Star Wars’. Eu até hoje não consigo entender por que o filme naufragou, mas não acredito que seja pelo fato de que os conceitos que Superman representa estejam ultrapassados. Prefiro pensar que o fracasso se deve a problemas intrínsecos do filme enquanto produtor.”
Idealista versus ‘sombrio/realista’
Por conta dessa questão e pela memória que muitos guardam do Super visto há quatro décadas, outro ponto que o jornalista reflete diz respeito à tão falada dificuldade que haveria em levar o Superman de volta ao cinema por conta do desafio em levar para uma outra mídia alguém com poderes imensamente superiores aos dos demais heróis e pela sua própria personalidade (que muitos, maldosamente, rotulam como um “super escoteiro”). Essa necessidade em tentar apresentar um personagem mais conectado às audiências atuais fez com que o herói fosse apresentado de uma forma mais “sombria/realista” – alguns diriam carrancudo, mal-humorado e totalmente descaracterizado – em “O Homem de Aço, “Batman vs. Superman” e
“Liga da Justiça”.
“Alguém decidiu que o bom mocismo do Superman não tem mais lugar entre os leitores e fãs. Eu discordo. Snyder tentou adaptar o herói para uma nova geração de leitores e chegou ao cúmulo de fazê-lo cometer um assassinato logo em seu longa-metragem de estreia (com o personagem). Não estou dizendo que um personagem não possa progredir e refletir o momento em que ele se encontra – pelo contrário! É importante que os quadrinhos, como produto de cultura de massa, interajam com as demandas e pautas da sociedade em que ele se insere”, analisa.
“Mas isso não quer dizer que não exista mais lugar para valores elevados, de bondade, altruísmo. Acredito fortemente que o mundo caminha cada vez mais para a tolerância, o respeito, o amor ao próximo, a busca pela paz (apesar de alguns tropeços). E não imagino um herói melhor para personificar esse atual estado da sociedade do que o Superman”, afirma o jornalista, para quem basta aparecerem roteiristas e diretores “com competência para lembrarem aos fãs que ele sempre foi um símbolo dessa nova ordem.”
Sobre essa questão, a polêmica surgida com a versão do kryptoniano vista nos filmes mais recentes pôde ser observada por Larissa Becko com a comparação entre o “descaracterizado Superman de Zack Snyder” contra o “Superman idealista de Richard Donner”. “Sem dúvida, a questão do ‘ser fã’ para eles é justamente a busca por mais informações sobre o personagem. Então, para a grande maioria deles, o exercício de fã se consolida quando vão buscar diferentes narrativas nas mais diversas mídias para poder ter o maior conhecimento possível sobre o personagem.”