“Desenhos | Tiços”, logo vou ao dicionário, sem o cedilha torna-se “tico”, pedacinho de qualquer coisa, a palavra completa é um toco de lenha que ainda não virou carvão, apesar da cor preta e aspecto chamuscado. Se este é um material abrasivo e de fácil combustão, vê-se e pensa em fogo, chama, iluminação; foi também o que acendeu em Neysa Campos a vontade de criar sua primeira exposição ocupando o lugar de “artista”.
É comum que soe estranho a ela ser chamada dessa forma categórica. Como ela mesma disse, as obras são terapia, relaxamento e brincadeira – no sentido de se dar ao direito de poder testar, fazer o que nunca fez e ter prazer com essa descoberta um tanto despretensiosa. Foram os amigos que a convenceram de tirar os objetos – tiços, desenhos, pinturas – de sua casa, tão cheia de “pedacinho de qualquer coisa” que ela recolhe na rua ao ver alguma beleza ou potencial que mereça ser guardado para se transformar em outro.
Algumas obras possuem objetos de ferro, pregos e marcações na madeira, todos encontrados na rua e mantidos exatamente como quando foram recolhidos, apenas com interferência de tinta: nanquim e Ecoline. Não que ela tenha as escolhido por algum motivo técnico, até porque isso não lhe pertence. Trabalha com o repertório que tem em mãos e o que busca de material, algumas vezes descartado e inutilizado.
Neysa Campos é médica por formação, professora aposentada da UFJF. Desde 1971, quando conheceu Arlindo Daibert, seu caminho para as atividades artísticas foi ampliado. Já experimentou cinema, teatro, mas, sobretudo, Neysa é uma figura importante para as artes plásticas de Juiz de Fora.
Quando abriu a Casa de Papel, ela trouxe para cá a possibilidade da exposição de arte fora do convencional “arte sobre tela”, e até hoje é amante do papel, recebendo, inclusive, de presente das viagens dos amigos. Também foi coordenadora do Centro de Estudos Murilo Mendes, responsável pelo centenário de Murilo Mendes, que gerou muitas conexões e trocas com galerias nacionais e internacionais. Além disso, esteve à frente do espaço Janelas Verdes, onde Arnaldo Baptista, que aqui reside, já expôs. Amilcar de Castro, Celso Renato, Mário Azevedo, Amador Perez e uma lista extensa de pintores e escultores já vieram a Juiz de Fora através de seu convite e curadoria.
“Eu, questionada uma vez por uma amiga porque não pintava e desenhava devido a esse convívio com artistas, disse a ela que de fato nunca tinha sentido vontade. Ela me questionou como isso é possível se eu tinha convivido com Arlindo Daibert, Leonino Leão, Dnar Rocha, Carlos Bracher, então eu também devia criar. Expliquei que sempre gostei de organizar, mas mesmo assim ela me deu de presente um monte de tintas de papel. Para agradar, pintei aquelas coisas sem saber nada. Tive a percepção de como aquilo me relaxava, descansava. A partir daí, ao voltar para casa e olhar em cima da minha mesa materiais que eu tinha, me deu vontade de fazer.”
Os tiços, ela os viu pela primeira vez, na varanda da casa de sua irmã. Um vídeo de arte-documentário feito por Pedro Salim, por meio da fala de Neysa Campos, conta a história do motivo de este material ter se tornado potente em seu trabalho. “Eu estava em Santos Dumont, na casa da minha família, vi um dos tocos e não parava de olhar. Até interrompi a conversa, e um dos meus sobrinhos, que trabalha com queima de carvão na Mantiqueira, me explicou sobre o tiço.” Ronald Polito, curador da mostra, explica, poeticamente, a escolha do material como um resíduo que não completa seu ciclo de desaparecimento, não é consumido integralmente, guardando o que ainda vive antes de se desintegrar e morrer.
A mescla da medicina com as artes plásticas também está em seus desenhos e pinturas, por vezes atravessados por agulhas, agulhas de acupuntura e bisturis. Além disso, reaproveita cartões-postais, amostras de tecidos, onde faz rabiscos, croquis e interferências à sua maneira.
Desenhos | Tiços
Mostra de Neysa Campos. Abertura nesta sexta-feira (24), às 20h. Visitação de segunda a sexta-feira, das 15h às 19h, na Casa Vinteum (Rua 21 de Abril 25 – São Mateus). Até 13 de dezembro