Vamos viajar no tempo.
Em 1982, a Unidos da Tijuca apresentou no carnaval o enredo em homenagem ao escritor Lima Barreto (1881-1922). Em seus versos, o samba “Lima Barreto – Mulato, pobre, mas livre” lembra que “Mesmo sendo excelente escritor / Inocente, Barreto não sabia / Que o talento banhado pela cor / Não pisava o chão da Academia” – no caso, a Academia Brasileira de Letras. Reflexo da posição marginalizada que o negro enfrentava perante a sociedade, pouco mais de três décadas depois da Abolição da Escravatura.
Chegamos a 2018, e a situação melhorou – mas nem tanto, 135 anos foram poucos para remediar tamanha desigualdade. O negro, o preto, o afrodescendente vem conquistando gradativamente seu espaço na sociedade, seja na política, mercado de trabalho. O mesmo vale para o mundo acadêmico e a arte, inclusive quando os dois universos se encontram. Por isso, a fim de dar maior visibilidade para toda uma geração de artistas – a maioria ainda à margem -, o Coletivo Descolônia e o Laboratório Descolônia realizam a exposição “Preto ao Cubo”, que teve sua abertura na última segunda-feira (22). A mostra reúne obras de 24 artistas negros, incluindo alunos e ex-alunos dos cursos de artes e pedagogia da UFJF, pode ser visitada até 9 de novembro na Galeria Guaçui, no IAD (Instituto de Artes e Design).
Com curadoria da professora do IAD Eliane Bettochi e da aluna Karina Pereira, a exposição reúne os trabalhos de Andressa Silva, Antxnio, Augusto Gomes, Barbara Maria, Carolina Cerqueira, Crraudio, Eliane Bettocchi, Bixa Brasilis, Guilherme Borges, ocrioulo, JV Medeiros, Lucas Soares, Luís Camargo, lume, Maré, Maiara Pera, Maury Paulino, Noah Mancini, Paula Duarte, Raizza Prudêncio, Rafael Costa, D O R E A, Rômulo Pereira e Roko.
Estímulo à criação e visibilidade
As obras tratam dos mais diversos temas, não se resumindo à questão da existência negra: há espaço – e necessidade – de discutir questões de gênero, sexualidade, colorismo, colonialismo e ancestralidade, entre outros. A variedade de temas e artistas também resulta na exploração de diversas linguagens, entre elas pintura, performance, instalação, videoarte, lambe-lambe, graffiti e fotografia.
Criado a partir do Coletivo Descolônia, o Laboratório Descolônia reúne alunos e professores do IAD como consequência do questionamento da escassez das pesquisas de Arte Afrocentrada na instituição. Entre seus objetivos, estimular e difundir a produção artística dos alunos, o contato e a troca de saberes tendo em vista a Arte Afrocentrada e artistas negros que têm como estímulo criativo sua condição racial.
Para Karina Pereira, a exposição é consequência da articulação feita por meio dos professores e alunos no Coletivo Descolônia quanto a temas em comum, como a falta de docentes negros na instituição e o desaparecimento dos conhecimentos oriundos da cultura negra, que ela trata como epistemicídio – basicamente, a eliminação sistemática de conhecimentos, saberes e culturas que não foram assimiladas pela cultura branca/ocidental.
“Nós queremos problematizar essas questões, daí surgiu a necessidade de ocupar esse espaço, questionar a institucionalização da arte”, explica. “O artista negro tem que batalhar para conseguir seu espaço e trazer a rua para cá, esse cubo branco de conhecimento eurocentrado. Queremos convidar as pessoas para novos olhares, novas propostas com temáticas ligadas ao nosso dia a dia. É uma discussão saudável a fim de fazer as pessoas questionarem o que é arte, fazer provocações a partir da nossa visualidade, brigar por nosso espaço e ampliá-lo ainda mais.”
Em busca do protagonismo
Quanto aos trabalhos expostos, Karina ressalta a necessidade dos artistas negros em experimentar em suas linguagens por conta dos desafios enfrentados no cotidiano, como o racismo, que podem ser muito duros. “Nossas obras se voltam para essas questões existenciais, e fica mais difícil engolir o não protagonismo, ter outros contando a história em nosso lugar.”
Dentre os nomes que enfrentam esse cotidiano e suas dificuldades está o de Andressa Silva, nascida em Juiz de Fora e que mora no Bairro Santa Rita. Sem rodeios, ela diz que só está na universidade por conta do Pism (Programa de Ingresso Seletivo Misto) e que não acreditava que chegaria até o mundo acadêmico por mérito. “Foi uma sucessão de acontecimentos que me fez chegar até aqui. Eu sempre participava de projetos sociais na infância, pois minha mãe precisava trabalhar, e isso me fez interessar pela arte”, diz. “Estar aqui, expondo minha arte, é muito distante da minha realidade. Como quando cheguei aqui para estudar: foi um choque, pois minhas referências são muito diferentes. Por sorte minha mãe sempre me apoiou, minha família já tinha ligação com as artes, e ela acompanhava minhas apresentações de dança. Quando decidi tentar o IAD, ela sabia que era o meu caminho.”
Força coletiva
Independente dos materiais e linguagens utilizados, a exposição deixa evidente a necessidade dos artistas afirmarem sua presença e marcar posição, buscar espaço, sentirem-se representados e – por quê não? – serem resistência e mostrarem coletivamente sua força, sua arte e seu valor. É o caso da obra de Rafael Costa, em que um singelo balão branco determina: “Ponha-se no seu lugar”.
Quem quer se colocar no lugar que acredita ser seu, por exemplo, é Maré, com a série “Bixas”, que reflete a respeito de questões de gênero e raça a partir de figuras híbridas criadas a partir do Paint (sim, aquele programa do Windows que ninguém leva a sério) e objetos que ele acumulou durante suas andanças. “Ela fala sobre minha identidade de gênero, sexualidade. Eu me considero uma bicha preta periférica, e essas figuras híbridas servem para ilustrar o que é ser bicha”, explica. “É uma ‘bixaria’ (bruxaria bicha) que questiona a binariedade, o pudor sobre nossos corpos, e tem essa precariedade intencional porque são os recursos que tenho à mão, serve para as pessoas pensarem a respeito do que é ‘bem visto’ na arte. Por que as pessoas pensam que o precário não é arte?”
Algumas dessas questões também são trabalhadas na instalação de Bixa Brasilis, que mistura elementos como graffiti, fotografia e tridimensionalidade. “É uma reflexão a respeito do gênero e sexualidade das pessoas negras, em que acrescento elementos religiosos para servir como um altar de proteção a comunidades marginalizadas, como a negra e a LGBT”, diz Bixa Brasilis, para quem não é preciso ser literal em suas interpretações. “A partir do momento em que me exponho como artista e ativista, já estou dizendo algo, afirmando a minha vida e de outras pessoas. É importante, aliás, falar de vida num momento em que se fala tanto de morte”, acredita.
Vistos e (re)conhecidos
Outra artista a destacar a questão da visibilidade é Maiara Pera. “Nós vivemos um momento muito complicado, por isso é importante ter esse espaço para quem nunca teve visibilidade até hoje. Se não nos unirmos, quem vai se unir pela gente?” Essa questão também é refletida por Barbara Maria, que apresenta na exposição um trabalho feito a partir de – como ela mesma diz – “coisas que estavam esquecidas na gaveta e que trazem boas lembranças”. “A academia não abre muito espaço para a arte negra, nossas referências acabam sendo de pessoas próximas, apenas. Fui a uma exposição com artistas negros em São Paulo, por exemplo, e não conhecia quase ninguém. Aqui temos enfim uma visibilidade, e se um avançar os outros vão junto.”
Por outro lado, Paula Duarte propõe a visão de que Juiz de Fora, historicamente, sempre teve uma enorme produção cultural negra, porém muitas vezes invisibilizada pelas instituições. “Eles (artistas) ficam de fora dos circuitos e deixam de receber recursos que são dessas pessoas por direito. Essa mostra inverte um pouco essa lógica, e aí você tem essa produção totalmente diferente, muito rica mas que sempre e existiu e continua resistindo no cenário da cidade”, argumenta. Penso que essa geração que está ocupando a Galeria Guaçui é de continuidade, e que, por fatores políticos, hoje acessa espaços onde antes foi silenciada. Os termos ‘silenciada’ e ‘invisibilizada’ são importantes por isso: produção artística negra sempre existiu.”
A afirmação da presença da arte negra na cidade pode ser reforçada por meio da instalação realizada em trio por Crraudio, ocrioulo e JV Medeiros, que reúne arte digital, audiovisual e fotografia a partir da festa Makoomba, realizada há cerca de dois anos no Café Muzik. A ideia, ali, é mostrar um ponto de encontro para a galera “dançar todos esses ritmos da periferia e se sentir bem”, como diz Crraudio. “A gente não se identificava com a maioria das festas que rolavam por aí, e então fizemos a nossa. Queremos mostrar como as pessoas se sentem felizes ali, sejam negras, LGBT. É uma oportunidade para dar visibilidade a esse mundo, a relação especial que existe ali”, explica, citando como exemplo a festa especial do Dia das Mães, em que filhos e suas digníssimas puderam dividir o mesmo espaço.
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PRETO AO CUBO
Segunda a sexta-feira, das 8h às 22h, na Galeria Guaçui (Instituto de Artes e Design – Campus da UFJF). Até 9 de novembro.