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Lei perde validade ao recusar conselho

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“Baú de ossos”, “Balão cativo”, “Chão de ferro”, “Beira-mar”, “Galo das trevas”, “O círio perfeito” e “Cera das almas” não apenas configuram coleção fundamental para o memorialismo brasileiro como também representam a paisagem literária de um juiz-forano que, 33 anos depois de sua morte, mantém-se imponente na cena brasileira e retoma espaço de prestígio desde que a reedição de suas obras, feitas de 2012 a 2014, reverberou fresco nas prateleiras do país por iniciativa de um gigante grupo editorial. Alvo de um imbróglio entre os poderes Legislativo e Executivo em Juiz de Fora, os livros são protagonistas de debate que se firma, justamente, acerca do que lhe serve como tema: a memória.

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Numa noite em que seis projetos de lei tiveram rejeitados os vetos do prefeito Bruno Siqueira (PMDB), a Câmara aprovou a publicação da lei de número 127/2016, o que deve ser feito no início desta semana. De autoria do vereador Wanderson Castelar (PT), a proposta registra como bem imaterial os sete títulos de Nava. O prefeito, contudo, justificou seu veto considerando ser de “competência do Chefe do Poder Executivo, após regular processamento do requerimento no Comppac (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural), o registro de bens culturais de natureza imaterial”. A justifica inclui, ainda, parecer do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que afirma que “não se atribui ao Poder Legislativo competência para estabelecer, mediante lei, o tombamento de determinado bem, sob pena de violação ao princípio constitucional de independência e separação dos Poderes”.

Terceiro projeto do vereador que também determinou como bem imaterial o carnaval local e a canção “Tristeza pé no chão”, de Mamão, o atual registro desconsidera o conselho criado em 2004 e joga luzes sobre a importância da formação que dá lugar de destaque a Juiz de Fora na cena da preservação em Minas Gerais, já que poucas cidades alcançaram tal nível de organização e sistematização em suas políticas públicas preservacionistas. “Há uma discussão aí sobre se nós podemos ou não tomar esse tipo de iniciativa. No meu modo de ver, sim. Quem é mais legítimo para fazer uma proposta dessa natureza senão um dos representantes da população legitimamente eleito?”, questiona Castelar.

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Deferência pela deferência

Presidente do Comppac e superintendente da Funalfa, Rômulo Veiga aponta para o valor do mecanismo, que não é autosuficiente para proteger o bem imaterial . “O registro não é um fim em si mesmo. Não é apenas a deferência, mas uma forma para que o bem seja pertencente a inúmeras políticas de preservação”, afirma, chamando a atenção para a Lei do ICMS, que desconsidera tombamentos realizados sem que tenham passado por procedimentos padrões, como as reuniões de conselhos. “Sugiro que o pedido seja feito pelos vereadores e que ele possa ser o defensor da proposta nas reuniões, mas se não seguir os critérios necessários, com a redação correta, isso vai ser inócuo.”

“Sou um dos que lutam para que Poder Legislativo tenha suas prerrogativas asseguradas. Não podemos ficar aqui restritos a apenas votar nome de logradouro, até porque somos criticados por isso”, comenta Castelar. “Faz parte da nossa ração à crítica de que o vereador não vale para nada, buscar a ampliação do nosso espaço de atuação. Um deles no campo da cultura e discussão relativa ao patrimônio. O Comppac faz mal quando nega esse direito à Câmara Municipal, porque, de certa forma, acaba perdendo um parceiro importante no processo de defesa do patrimônio cultural. Ao mesmo tempo, reconheço a importância do Comppac e sei que essa lei vai tramitar no âmbito do Comppac, como vem avaliando as outras iniciativas aprovadas pela casa. Ou seja, na prática, continua valendo a palavra do Comppac sobre bens tombados. Mas reivindico para o Poder Legislativo esse tema.”

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Alerta: precedente!

O que está em jogo (de braço), no entanto, é um possível precedente para tombamentos de bens imateriais, ainda não pleiteado na Câmara Municipal. “Eu, por exemplo, tenho vontade de tombar, não casarões, mas espaços públicos que hoje são utilizados para determinadas finalidades. É uma maneira de protegê-los contra a especulação imobiliária. Mas reconheço que é um terreno um pouco mais espinhoso e temos que fazer uma análise criteriosa. Quero me aconselhar com gente mais informada que eu sobre esse tema”, assume Castelar. “O tombamento de bem edificado gera vedações à iniciativa privada, então deve ser feito com muita responsabilidade. Além de o proprietário perder o potencial do terreno, ele é responsabilizado pela preservação desse bem. É muito importante, até para não trazer insegurança jurídica, seguir todos os ritos. Senão, quem perde é o patrimônio”, argumenta Rômulo Veiga.

“Minha maior preocupação é porque a gente não caminha junto? Não entendo a celeuma. Tanto a Câmara quanto a Funalfa parecem se interessar pela preservação, então podem fazer isso de maneira solidária”, indaga o superintendente, destacando, inclusive, a atual formação do conselho, onde uma das 12 cadeiras é destinada à casa do legislativo, representado pelo vereador José Marcio Lopes Guedes (PV). Questionado por um desequilíbrio de ocupantes que dominou seus últimos anos, o Comppac, cujas reuniões acontecem às primeiras segundas-feiras de cada mês, acaba de fechar nova configuração, com maior ocupação de profissionais de notório saber no ramo da preservação, dentre eles a arquiteta Marcela Gonçalves, representando o Instituto dos Arquitetos do Brasil em Juiz de Fora e o professor Frederico Braida, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFJF.

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Primeira ferramenta que o Estado criou para proteger determinados bens, o tombamento surgiu no Brasil na década de 1930. A década do Estado Novo, da ditadura de Vargas e do autoritarismo, impregnou, então, o mecanismo. “Tem características autoritárias, no sentido de que partia de cima para baixo, de decisões de determinadas figuras ditando o que seria um legado para a população”, afirma a pesquisadora Luciana Christina Cruz e Souza, doutoranda pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) no Programa de Pós Graduação em Museologia e Patrimônio (UNIRIO/MAST), há anos estudando o papel dos conselhos na esfera da cultura. “O conselho muda essa configuração ao oferecer a possibilidade de outras pessoas dividirem o exercício de poder. Eles são extremamente relevantes, e, inclusive, temos trajetórias de pesquisadores, especialistas e gestores dedicados à cultura pensando em formas de institucionalizar a cultura no país e refletindo sobre os conselhos nesse processo. Eles estão pensando sobre a importância de construir mecanismos que cada vez mais democratizem decisões sobre orçamento, ações, fomento, ou seja, tudo o que diz respeito às políticas de cultura.”

Conselhos são evolução da política pública

Para o professor associado do Programa de Pós Graduação em Museologia e Patrimônio na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Nilson Alves de Moraes, a preservação, como a cultura e mesmo a saúde, deve ser gerida por ferramentas de controle social, em “níveis local, estadual e federal”, capazes de gerar mobilização. Segundo Marta Procópio de Oliveira, pesquisadora do Centro de Estudos de Políticas Públicas Paulo Camillo de Oliveira Penna da Fundação João Pinheiro, os atores culturais e patrimoniais conferem a força motriz dos conselhos, exigindo diretrizes e também a aplicação de leis como a do ICMS cultural, desviado para outros setores públicos em diferentes cidades mineiras. “Do ponto de vista metodológico, o Sistema Nacional de Cultura é muito claro de como devemos fazer política”, defende Marta.

Nesse sentido, conforme Luciana Souza, o tombamento, como instrumento de força jurídica, é um mecanismo do Poder Público. “Aos poucos, compreendemos que a decisão sobre a preservação e sobre a memória deveria partir da população, que vê naquele determinado bem cultural (o tangível e o intangível) a representação da sua identidade. O conselho, portanto, poderia exercer esse papel. Como estaria formado por diferentes figuras que transitam em diferentes searas da comunidade, poderia participar dessa decisão. A gestão patrimonial não deve se dissociar das questões políticas. Uma gestão patrimonial comunitária é um exercício político. A gente tem que sempre pensar em termos de democratização. O patrimônio não existe se não houver ressonância, não é uma imposição. É aquilo que representa uma comunidade”, reflete a pesquisadora. “As leis definem a quem cabem determinadas ações. Quando há interferência entre os poderes, acabam sendo fragilizados os processos”, comenta Rômulo Veiga. A ausência de limites claros entre competências, segundo Marta Oliveira, define um momento (infeliz) da contemporaneidade, capaz de retroagir diante de conquistas históricas, como é o caso do conselho local: “Vivemos um momento autoritário.”

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