Imagine toda a pateia do Teatro Paschoal Carlos Magno lotada, com seus 407 lugares ocupados, e mais 90 pessoas em pé para discutir política cultural. A cena, utópica em outros tempos, tornou-se real na virtualidade imposta pela pandemia. Criado logo no início do decreto municipal que obrigou o fechamento de casas de espetáculos, paralisando a cultura local, o Grupo Emergencial de Cultura JF, formado via Facebook, já reúne quase 500 pessoas e, nesta sexta-feira (24), ao meio-dia, dispara pelas redes sociais de seus integrantes um vídeo-manifesto lançando o Mare – Movimento Artístico Evolucionário.
Com o prelúdio da “Suíte nº 1 para violoncelo” de Johann Sebastian Bach, executado por Dudu Lima, como tema, o manifesto defende a potência das artes em todo tempo e, principalmente, neste período de isolamento social. Participam do vídeo de pouco mais de 2 minutos as atrizes Carú Rezende e Tainá Neves; os atores Adelino Benedito, Marcos Bavuso, Marcos Marinho, Marcus Amaral e Tairone Vale; o diretor teatral Hussan Fadel; a artista visual Fernanda Cruzick; as cantoras Sil Andrade e Nicolle Bello; a rapper Laura Conceição; a artista circense Deborah Lisboa; os artistas visuais Antovani Di Borotto, Lúcio Rodrigues e Petrillo; os sambistas Flavinho da Juventude e Mamão; o mestre de Folia de Reis André Brasilino; o mestre de capoeira Gláucio Cuité; a flautista Amanda Martins; a bailarina Letícia Nabuco; e o bailarino Walmor Calado.
Com direção de Rodrigo Mangal, a produção, que ocupa distintos e referenciais espaços de Juiz de Fora, como o Museu Mariano Procópio, se encerra com uma conclusão: “A arte nunca vai nos abandonar”. “Em algum momento na minha cabeça tive a sensação – principalmente no início – de que, com todo mundo lendo os livros que não liam, ouvindo músicas o dia inteiro, vendo séries que desejavam, com os artistas fazendo trabalhos de graça porque não conseguem ficar sem criar, as pessoas entenderiam que é impossível viver sem arte. Achei que o reconhecimento viria, mas hoje sei que as pessoas não aprendem e vão continuar consumindo arte sem pagar e mesmo assim demonizando o artista”, lamenta o ator Tairone Vale.
Para ele, “o artista não se valoriza tradicionalmente”, e é justamente esse cenário que merece e precisa ser revertido. “O fazer por amor é sempre muito forte no artista, e isso faz com que ele não saiba se valorizar enquanto operário da arte”, afirma o ator, pontuando como a arte movimenta uma engrenagem e participa ativamente da economia. A sugestão de Tairone é atuar na profissionalização dos agentes culturais para que saibam formatar projetos e captar recursos para além das leis de fomento, garantindo, assim, certa independência do Poder Público, que, ressalta ele, tem o dever de garantir a cultura como direito constitucional.
Como contornar o contexto
Segundo o diretor e dramaturgo Hussan Fadel, outra liderança do Mare, é necessário que o Poder Público atue promovendo políticas capazes de garantir a sustentabilidade do setor artístico. “Quanta mais estrutura (da arte), menor a dependência (do Poder Público)”, resume. “Sabemos que temos que dialogar com o Poder Público e que na cidade ele tem sido totalmente omisso. Essa ausência fez a gente rever nossa relação com as instâncias de governo e com a sociedade”, observa Hussan, pontuando a interlocução com vereadores e deputados, estaduais e federais, além de instituições como a própria UFJF, que finaliza o edital Janelas Abertas para apoiar a classe. O diálogo com a Prefeitura, segundo Hussan, também ficou mais fluido após a união dos artistas. “Ainda assim nada aconteceu concretamente. Já se passaram quatro meses e nada foi feito”, reclama, ressalvando a importância do cadastramento iniciado pela Funalfa, resposta de uma demanda de décadas da classe.
“Em tempos de tanto conflito, fazemos um exercício de conciliação, debate e democracia, recuperando o papel da cultura como força de imaginação”, celebra Rodrigo Mangal, outra liderança do Mare e responsável por algumas das ações on-line previstas pelo movimento, como o programa de artes que estreia no próximo dia 4 de agosto, no YouTube. De sua casa, Mangal irá ciceronear a noite com apresentações de outros artistas locais, cada um em seu canto, numa variedade de linguagens. “Procuramos recursos para fazer uma transmissão bacana, com vinhetas. Pode ter vídeos gravados, mas tudo será transmitido ao vivo”, conta ele, que também será o entrevistador de outra atração, ainda sem data de lançamento, cuja tônica será fazer com que os artistas comentem a própria obra e reflitam sobre a pandemia, tudo com humor e leveza. “A ideia é criar pontes para encontrar formas de como contornar esse contexto”, indica Hussan Fadel.
Ações para agora e para depois
Diariamente, a página no Facebook do Grupo Emergencial de Cultura JF recebe diferentes postagens sobre novos editais de auxílio emergencial aos artistas. As propostas feitas Brasil afora apresentam valores e critérios diversos para uma realidade que se mostra uniforme para toda a classe, aqui e acolá. “Por mais que tenha teatro no mundo inteiro, o de Juiz de Fora é o de Juiz de Fora. Por mais que haja caminhos universais, a adoção de medidas tem que ser muito voltada para o contexto”, adverte Hussan Fadel. “Por isso a necessidade de pensarmos em política pública de cultura, que vai além de garantir verba.”
De acordo com Tairone Vale, a adesão de produtores de eventos com pensamento mais pragmático contribuiu para que o movimento assumisse pautas práticas, objetivas, com prazos curtos e longos. “É possível agregar pautas dispersas por aí. Temos um histórico do artista lutando sozinho para produzir sua obra e sempre ouvimos sobre a falta do encontro em diferentes áreas”, acentua ele, que traz de sua experiência no mercado publicitário, com o Clube da Criação, no início deste século, uma certeza de que a união de um setor pode gerar resultados positivos para o coletivo. Para ele, a proposta é que o movimento se torne sustentável e auxilie outras iniciativas, tanto da sociedade civil quanto do Poder Público.
O virtual viabiliza o debate
“Temos uma cena artística forte, uma tradição de realizações muito forte. A pandemia, esse momento de dificuldades, gerou união. Talvez a classe fosse muito desarticulada, com cada um em seu quadrado, e o momento forçou o encontro”, sugere Rodrigo Mangal, que tinha acabado de concluir o doutorado em física quando chegou a pandemia. Ator do Parlapatões, de São Paulo, ele se entusiasma com a potência crescente do movimento na cidade. “O virtual viabilizou o debate, propiciou a discussão com mais pessoas, o que talvez, num momento anterior, não fossemos capaz de fazer.”