“Isoglossa: Composições multimídias” foi um trabalho feito pelos alunos da Escola Municipal União da Betânia, de 5º ao 9º ano do Ensino Fundamental, orientados pelo professor de dança Herbert Hischter. Eles gravaram a maior parte das imagens desse projeto com os próprios celulares, durante o auge da pandemia, em 2020. O resultado, para o professor, foi surpreendente: como um registro do período que viveram e também como obra artística. Mais de dois anos depois, o projeto tem um desdobramento que nenhum deles esperava, e vai ser exibido na galeria Gallery Spt em Madrid, na Espanha, após passar por um processo de curadoria da Eurarts, além de concorrer ao prêmio de melhor trabalho áudio visual da galeria.
Logo que as atividades presenciais da Escola Municipal União da Betânia, no Bairro Granjas Betânia, foram interrompidas, em março de 2020, o corpo docente precisou pensar em formas de se conectar com os alunos. Foi assim que Hischter buscou conseguir o número de telefone dos alunos e de suas famílias, para criar um grupo no WhatsApp em que pudessem conversar e trocar ideias. Adaptar aulas de dança no meio on-line não era fácil – e por isso precisou bolar um projeto que trabalhasse com diversos recursos. “Comecei a mandar ‘dispositores artísticos’ para que eles pensassem sobre suas vidas como um todo. Acabou que, além dos alunos, toda a comunidade começou a participar. Ex-alunos, familiares, outros professores… Virou uma febre”, explica ele. Foi mandando apresentações como “4 por 4”, de Deborah Colker, o poema “Tempo”, de Fernando Pessoa, e “O impossível vem pra ficar”, canção de Lenine, que seus alunos foram convidados a refletir e produzir.
Ele define o trabalho que construíram, em conjunto, e que resultou no processo como algo especialmente sensível, porque aborda o começo da pandemia e uma época de muitas incertezas. “O nosso objetivo era também dar afeto. Ter esse espaço para contar sobre a realidade de cada um, respeitando os limites que tinham. Foi uma troca muito rica de conhecimento”, diz. Muitos desses trabalhos foram gravados pelos celulares dos alunos e até de seus pais. Por isso, ele inclusive conta que recebia vídeos e áudios em todos os horários – e que a possibilidade de um aluno ver o trabalho do outro também colaborou com o projeto. “Também ia dando dicas sobre a iluminação e o modo de gravar. Teve um dia que pedi pra eles gravarem com a porta, e descobri que nem todos eles tinham porta em casa”, relembra.
Já havia oito anos que ele trabalhava na escola, e por isso não queria deixar que a pandemia interrompesse o trabalho que eles estavam construindo juntos. Com o apoio do corpo diretivo da escola e também seguindo as diretrizes de saúde da cidade, eles criaram um espetáculo de mais de 1h de duração, que começou a ser feito pelos alunos em abril e foi montado no final daquele ano. Há apenas algumas cenas externas, que foram feitas com todo cuidado. “Falamos, por exemplo, de uma mãe sozinha com os filhos durante a pandemia. Também há alunas dançando próximas de uma cachoeira, na lama. E uma espécie de reportagem no Centro, que relembra como era antes da pandemia”, diz.
Significado de isoglossa
O título do espetáculo surgiu por volta de agosto, enquanto eles desenvolviam o projeto. Os alunos estavam dizendo ao professor que “estavam ficando loucos” de tanto tempo dentro de casa. A partir disso, Hischter propôs um questionamento sobre o que era loucura – e eles, desde então, começaram também a trabalhar materiais que falassem sobre isso. “Ao mesmo tempo, começamos a falar sobre saúde mental e sobre depressão severa, um problema que estava atingindo as pessoas do bairro. Três pessoas já tinham, inclusive, cometido suicidio ali na região”, diz.
Quando compreendeu essa demanda dos alunos, um dos materiais que trouxe foi “La critiqué”, de Ana Carolina, para que pudessem absorver alguns dos questionamentos e montar apresentações. A música tem muitas vozes ao fundo, inclusive divagações, trazendo uma certa atmosfera de loucura – e, em uma dessas vozes, usam a palavra “isoglossa”. Quando os alunos se depararam com a palavra, perguntaram ao professor o que significava. “Eu não sabia, nunca tinha escutado essa palavra, então fui atrás para pesquisar”, explica. Com pesquisa e também consultando dois amigos linguistas, entendeu que era um termo da linguística e da geografia que usava para poder falar sobre um grupo de pessoas, seu modo de se expressar e a sua região. “Vi que aquilo se encaixava no projeto, porque a gente da escola Betânia tem uma forma diferente de se expressar, com o corpo, com as nossas ideias, que é diferente de qualquer outro lugar de Juiz de Fora. Com o nome do espetáculo, a gente queria falar que a forma com que a gente faz arte é diferente; não melhor e nem pior”, explica.
“Um tiro no escuro”
Durante o período do isolamento, ele também confessa que teve bastante medo das artes ficarem de lado. “Vários professores não tiveram liberdade e autonomia com os alunos. Meu receio era de que a dança ficasse apenas no papel”, diz. Com poucos recursos, tempo e estrutura, ele se orgulha do trabalho que criaram juntos: “Não precisamos de grandes equipamentos e grandes produções para fazer uma obra artística com valor”. A presença na mostra internacional justamente traz um reconhecimento para esse trabalho – assim como, anteriormente, o segundo espetáculo que eles montaram nesse período, que também foi indicado a um prêmio importante. https://tribunademinas.com.br/noticias/cidade/26-07-2022/projeto-da-escola-municipal-uniao-da-betania-e-finalista-do-premio-arte-na-escola-cidada.html
A ideia de fazer algo assim veio da sua experiência anterior, fazendo vídeos-dança, que permitiam que os alunos percebessem algo sobre o trabalho que desenvolviam de forma mais rápida do que nos espetáculos de fim do ano: “Eu sempre fui curioso e, desde 2015, trabalhava com dois video-danças por ano.” Assim, o projeto serviu inclusive para que os alunos pudessem experimentar cada vez mais os diferentes lugares que poderiam ocupar no mundo das artes. “Tem gente que não gosta de estar na frente da câmera, mas gerou o desejo de estar por trás ou de editar, por exemplo. Colocar os alunos em contato com essas possibilidades de arte vai despertando outros interesses”, afirma. Olhando agora, ele entende que essa aposta foi quase como um “tiro no escuro”. Não sabia mesmo o que poderia virar: mas tinha certeza que não poderia ficar parado, nem poderia deixar seus alunos parados em um momento em que tudo parecia tão estagnado. E arremata: “Eu acreditava neles e no processo que estávamos desenvolvendo”.