Atualmente ator, bem em breve, diretor. No fim das contas não se vê como artista, mas mensageiro. As histórias relatadas aqui podem ter nuances de ficção de vida real (ou vice-versa). Vestido com camisa gola polo branca, está o premiado como melhor ator no 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, também parte do elenco de dois filmes da 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes, que aconteceu em janeiro deste ano, protagonizando Cristiano no longa-metragem “Arábia” (2017), de Affonso Uchôa e João Dumans, e interpretando Elias, no curta-metragem “Super estrela prateada” (2018), de Leonardo Branco, ambas produções mineiras. Aristides de Sousa é heterônimo de Juninho Vende-se, sua camisa anuncia com tinta roxa, em letras gigantes, seu verdadeiro nome. “VENDE-SE” vinha escrito com marcas de pincel e respingos de tinta pelas mangas. “Eu sempre fui chamado de Juninho a vida toda, e ‘Vende-se’ é a minha pichação pela cidade, mas já tem escrito ‘vende-se esta casa’, vende-se este lote’ para todo lado. Eu sou o maior pichador, sem precisar de pichar, de todos os tempos”, diz rindo enquanto assopra a fumaça do cigarro de palha.
No dia anterior à entrevista, na fila de uma das sessões noturnas da Mostra de Tiradentes, me aproximo e pergunto se está tudo combinado para amanhã. Juninho não tem celular, por isso meu contato estava sendo com Mônica, sua namorada, que gentilmente me ajudou. De prontidão, ele olha para os três bottons pregados no meu crachá de imprensa, e fala: “Me dá um desses aí!” Mas apegada às histórias que cada um me remete, preferi continuar com eles pregados aqui. Nesse instante, a fila começa a andar e ser absorvida por uma sala escura, estrutura para 700 lugares. A gente se perde para se encontrar na tarde do dia seguinte, 5 minutos antes de começar uma mostra de curtas. “Queria muito ver o primeiro curta desta sessão, é de um amigo meu [Marcus Curvelo]. O melhor curta de todos”, lamentou Juninho por estarmos na hora da entrevista. E decidi entrar imediatamente para assistirmos ao “Mamata”, de fato um dos melhores.
“Ah, meu maior sonho mesmo está muito longe. É poder viver em um lugar onde todo mundo tivesse as mesmas condições e direitos. Por isso, eu sou meio comunista, mas sem partido, sou comunista porque sou comum e defendo que todo mundo deveria receber o mesmo tratamento e ter acesso às mesmas coisas. Queria que comida e água fossem de graça, porque são coisas mínimas para sobreviver. Tem milhões de pessoas que vivem em um mundo muito pior do que eu e nunca terão condições de falar por sua própria voz. Agora que tenho ouvidos para o meu lado, tenho que falar desta realidade, não pode ficar esquecido não”
Juninho Vende-se, ator
“Por que gosta tanto do ‘Mamata’, Juninho?” Assim começamos uma conversa sobre momentos chaves de sua vida, principalmente relacionada ao cinema. Em uma quarta-feira, em Tiradentes, ficamos sentados por uma hora e meia no jardim da pousada em que eu estava hospedada, sem que uma chuva incessante deixasse a gente ir para qualquer lado.
“E como faz para eu entrar?”
Juninho está ator há quase nove anos, desde 25 de novembro de 2009, quando apertou a mão do “chefito”, como chama Affonso, e decidiu que daria seu sangue para o longa que começavam a filmar no Bairro Nacional, em Contagem. Juninho, após viver até os 17 anos na Vila Santa Rosa, em Belo Horizonte, se mudou em 2002 para a cidade vizinha e foi viver próximo ao Affonso. Se conheceram nas esquinas de bar. Até que um dia, cada um com uma Pentax, saíram para fotografar a comunidade, sempre com a vontade de levarem o nome do bairro, e os personagens que ali moram, adiante. “Tem muito artista no Nacional que não sabe que é artista”, reflete Juninho.
A participação no “Vizinhança” aconteceu tempos depois.
_ O que vocês estão arrumando? O que é isso aí? É para violão? Teclado?, indagou Juninho Vende-se.
_ É um tripé para câmera, estamos gravando um filme, respondeu Affonso.
_ Ah é? E como faz para eu entrar?
Saíram, em teste, filmando Juninho pela rua do Nacional. “Só não vale olhar para a câmera”, dizia Affonso, enquanto andava com ela na mão registrando o personagem em seu cenário cotidiano, cumprimentando seus conhecidos e demonstrando sua vontade em ser do elenco da forma mais natural possível. “Vamos fazer esse filme! Não te prometo que vai ficar rico ou que vai ganhar algum dinheiro, não te prometo nada. Mas a única coisa que eu prometo é que vai passar em uma telona grandona. Aí eu falei: ‘nossa, vai passar em uma telona? Então demorou e pá!'”. E foram quatro anos neste processo completamente empírico.
Sua audácia é a velocidade de seu movimento
Juninho, desde cedo, queria poder cantar, dançar, criar letras de rap. “Músicas de rap sanguinário, violento mesmo. As pessoas falam que é música de bandido, mas não é ‘fia’, é pura realidade, é o que acontece, e as pessoas têm que ouvir e saber.” No projeto Curumim, que insere cultura em escolas de periferia, teve acesso a cursos de fotografia pinhole, fez fotos na lata. Depois apareceu a oportunidade dos cursos de circo, dança, audiovisual e música, todos ao mesmo tempo, tendo que escolher um somente. Sem perder tempo, cada dia ia parar em uma sala, ou saía de um e se enfiava em outro, em um vaivém de novas informações. Em um curso ministrado por Sávio Leite, animador gráfico, foi quando viu – e foi visto – pela primeira vez pela câmera.
“Eles nos levaram na Rede Minas, enquanto a galera ficou lá viajando nas câmeras, eu já abri uma porta e entrei dentro de um programa ao vivo. Estava sendo gravado o ‘Brasil das Gerais’, e eu fiquei caladinho em um cantinho, vi como funcionava tudo. Sempre fui muito curioso.” Sua audácia é a velocidade de seu movimento. “Sempre fui ligado na arte, mas não sabia que existia o cinema cultural. Tanto que quando ganhamos, em 2014, a Mostra de Cinema de Tiradentes (pelo “Vizinhança do tigre”), eu achei que fosse falcatrua. Falei: ‘Como é que esses filmes esquisitos estão ganhando prêmio de melhor filme? Tem alguma coisa errada'”, ainda sem acreditar veementemente que se tornaria um ator. “Eu ficava pensando: ‘Esse povo do cinema cultural é tudo otário, é tudo trouxa, achando que eu sou ator de alguma coisa? Que povo lerdo’. Aí depois eu fui entendo, o Affonso foi conversando comigo. Ele disse: ‘Você é que não está ligado, mas você é bom ator’, então eu falei: ‘Se rolar outros filmes, pode me chamar que eu faço’.”
Sem história de salvação e redenção
Dentro de uma cela, escutando a Rádio Alvorada, já em busca de se conseguir notícias de viés mais cultural, ele recebe a notícia da premiação do “Vizinhança do tigre”. Havia sido preso, de forma reincidente, na época do lançamento do filme por ter cometido assalto. Juninho foi para a Febem, pela primeira vez, aos 17 anos de idade, saiu e entrou algumas vezes na cadeia, seu máximo período preso foi 1 ano e 5 meses. “Ninguém lá dentro acreditava em mim, me zoavam para caramba, ficavam me chamando de ator de filme pornô. Aí um dia, 8 horas da manhã, passa uma entrevista no Globo Horizonte sobre o filme. A galera delirou.”
Sua história está enterrada em sua pele. E não há dualidade. Não é como se houvesse um Juninho com uma bala inteira na coxa por causa de uma guerra do tráfico há 14 anos, e outro com um chuchu em traços finos tatuado no braço esquerdo pela namorada. Não. Juninho Vende-se é a fronteira, é tudo ao mesmo tempo, sem história de salvação e redenção. Olha como quem teve fome e muito medo, moleque de rua que aos 12 anos largou a escola e foi viver em caminhão de abacaxi, pelas ruas da Pampulha e Bairro Jaraguá, em Belo Horizonte, assaltando supermercado, mas ao mesmo tempo sereno com tudo o que viveu e o fez ser quem é. Depois de sair da cadeia, assistiu pela primeira vez a seu primeiro longa no “Semana”, festival de cinema no Rio. Sentou ao fim da sala e chorou para caramba ao se ver na tela.
“Eu sou igual a todo mundo, minha vida que foi um pouco diferente. É difícil escolher um momento marcante para contar, porque, no fim de tudo, o que sobra mesmo é a lembrança do que a gente passou”, narra seu personagem em “Arábia”, mesclando-se o tempo inteiro com ele mesmo, ou não. Pode ser tudo ficção, como pode ser a verdade de muita gente. O segundo filme de Uchôa é quase como um capítulo explorado de “Vizinhança do tigre” (2014), quando o personagem de Juninho Vende-se (ou Aristides de Sousa) some. Em “Arábia”, é como se ele aparecesse em outro lugar, sem conhecer ninguém, sendo chamado por outro nome, tentando a vida novamente. Aristides recebeu um caderno dos diretores, e ali começou a escrever histórias de vidas pessoais. O roteiro foi construído coletivamente a partir de relatos, e, inclusive, o diário-caderno é objeto fundamental na cenografia, como um fio condutor da narração em off com a voz do próprio ator.
Nada amedronta Juninho: “Eu não tenho medo de nada. Nada. Nem de Deus, nem do Diabo”. Também não se dá o direito de dizer que não é feliz. “Ah, eu sou feliz demais, eu não tenho motivo para ser triste não. Com tanta desgraça que aconteceu em minha vida, eu vou ficar triste? Passou tudo mesmo, e eu sei que virão outras, eu estou de peito aberto para a vida. Estou em um momento bom”, diz ele, agradecendo o amor que está vivendo, após conhecê-la em uma sessão no Cinema CentoeQuatro.
Se atira na vida, como uma bala perdida, sem medo do que vai atingir. E nem de longe se arriscou em tudo que queria. Ainda não andou de montanha-russa, pulou de bungee jumping e saltou de paraquedas com avião em queda livre. Vive em rebeldia com qualquer obrigação civil. “Sem lenço, sem documento”, prefere explorar mais o Brasil do que topar viagens para o exterior, embora esteja sendo visto por telas de todo o mundo pela atuação de “Arábia”, que entra no circuito nacional de cinemas em 5 de abril. “Talvez na Argentina eu vá, porque quero conhecer um pé de maçã, e acho que só tem lá. Na Colômbia também, para ficar correndo pelado naquelas plantações de maconha, aquelas maluquices todas.”
De ator, Juninho tem feito pesquisas e começado a buscar financiamento para sua estreia como diretor. Ele pretende lançar seu filme em dois formatos: três curtas independentes e um longa unindo as partes. A narrativa é sobre a ocupação em uma linha de trem em Bela Vista, Contagem, onde uma comunidade vive em barracos em torno do espaço. “A galera lá é muito massa e são meus amigos. Queria relembrar as pessoas que morreram. O roteiro é muito ficcional, mas tem umas paradas meio documentais também, de coisas que aconteceram. Conta muito sobre violência policial, por exemplo.”
Juninho está codirigindo junto a um psicólogo-cineasta. Um dia, caminhando, foi reconhecido pela atuação no “Vizinhança do tigre”. O rapaz o parou na rua, pediu seu contato e enviou um de seus filmes para Juninho. Era sobre a vivência em cadeias, com o olhar das mães de filhos que estão presos. Muito emocionado, Juninho respondeu ao psicólogo sobre o filme, quando recebeu a proposta de começarem a dirigir um novo trabalho juntos.
Mesmo com o horário de verão, a cor do céu ameaçava a cair. É nesta hora, próximo às sete da noite, que a cidade de Tiradentes, e suas ruas de paralelepípedo, vão ficando douradas, como se ganhassem as nuances do ouro garimpado em Minas Gerais. A chuva cai mais lenta, fazendo-se quase desnecessário o uso de guarda-chuva. Juninho fala sobre estar com fome, havia passado o dia sem almoçar. Levantamos da mesma forma que começamos, sem ensaios e de maneira espontânea. Ele pede meu celular, por obséquio, para ligar para a namorada, enquanto saímos devagar como se nossa cabeça continuasse a conversar. Aproveito a luz da cidade e faço fotos do personagem enquanto a gente se despede, agora na promessa de que não sairia em uma telona, mas em uma página do jornal.