Analisado exclusivamente como produção cinematográfica, “Green Book: O guia” é um longa-metragem excepcional e que merece a indicação ao Oscar de melhor filme, como anunciado pela Academia na última terça-feira (22), além de outras quatro categorias. Porém, o filme de Peter Farrelly que estreia nesta quinta-feira (24) no Brasil tem sobre si o peso das polêmicas que envolvem produções baseadas em fatos reais (eventos que nunca aconteceram, personagens que não existiram, troca de datas, exagero ou supressão de fatos importantes) e sem esquecer de outras que têm a ver com os envolvidos no projeto.
Quanto ao fato de ser baseada em uma história real, basta lembrar do exemplo de “Bohemian Rapsody”, também indicado a melhor filme. A cinebiografia da banda Queen recebeu muitas críticas pelas imprecisões cronológicas e uma visão “light” – e coloque “light” nisso – da vida de seus integrantes, principalmente do vocalista Freddie Mercury. No caso de “Green Book”, a família de um dos protagonistas (o pianista Don Shirley) denunciou uma série de inverdades na história – como a amizade entre Don e o motorista Tony “Lip” Vallelonga, que nunca teria existido. Neste ponto, a família pode ter razão, pois Tony – que chegou a atuar na série “Os Sopranos” – era conhecido por inventar histórias ou exagerar seus feitos, e o roteiro foi escrito a partir das memórias que contou a seu filho. Este fato fez com que o intérprete do pianista, Mahershala Ali, pedisse desculpas aos parentes de Shirley.
Polêmicas do tipo podem diminuir as chances do longa no Oscar, e outras surgidas nos bastidores ou oriundas de declarações antigas também “contribuem” para isso. Um exemplo é o próprio diretor, Peter Farrelly, conhecido por ter dirigido com o irmão Bob comédias de humor grosseiro nos anos 90, como “Debi e Loide”, que confessou ter mostrado seus órgãos genitais para Cameron Diaz durante as filmagens de “Quem vai ficar com Mary?” – fato do qual diz se arrepender profundamente.
Filho de Tony Vallelonga e um dos roteiristas de “Green Book”, Nick Vallelonga teve resgatado um antigo tweet em que apoiava declarações preconceituosas contra o Islã feitas por Donald Trump antes de se tornar presidente dos Estados Unidos – sendo que Mahershala Ali é muçulmano praticante. Viggo Mortensen, que interpreta “Lip” Vallelonga, usou a expressão “nigger” (considerada extremamente ofensiva nos EUA) durante uma entrevista com o objetivo – segundo ele – de contextualizá-la, mas mesmo assim foi duramente criticado, pedindo desculpas posteriormente. Por fim, a produção tem sido comparada negativamente com “Conduzindo Miss Daisy”, de 1990, por supostamente retratar o racismo de forma mais leve.
Drama, comédia, racismo e hipocrisia
Independente das polêmicas, Peter Farrelly contou a sua versão de uma história que realmente aconteceu, passada em um dos momentos mais vergonhosos da existência dos Estados Unidos, e sob a ótica de Tony “Lip” Vallelonga (Mortensen). O ano é 1962 e “Lip” é um ítalo-americano de pouco estudo, cultura, casca-grossa e racista como tantos que tentavam ganhar a vida em Nova York na época – no seu caso, como leão de chácara de uma boate que precisa fechar temporariamente.
Sem muitas opções para sustentar a família, ele aceita a proposta de ser o motorista e guarda-costas eventual de Don Shirley (Ali), um dos maiores pianistas de jazz do mundo, que vai fazer uma turnê pelos Estados Unidos. O (inconcebível) problema é que Shirley é negro, e a excursão inclui diversos estados do sul do país, num momento em que o racismo ainda era explícito e antes da luta pelos direitos civis.
Por isso, Tony precisa não apenas levar o artista até as cidades aonde vai se apresentar, mas também impedir que a cor de sua pele o torne vítima de agressores. Para aumentar o absurdo da situação, Villalonga recebe da gravadora do pianista o “Green Book”, guia que existiu nos Estados Unidos entre as décadas de 30 e 60 (e escrito por um afro-americano) que listava restaurantes, lanchonetes, postos de gasolina, hotéis que aceitavam clientes negros.
Opostos que se unem
Desde o início, “Green Book: O guia” deixa clara as diferenças entre a dupla. Don Shirley é um homem rico, de gosto requintado, culto, talento nato ao piano, mas que sofre por diversos motivos: não tocar a música clássica que tanto ama, “convencido” pela gravadora a enveredar pelo jazz; não ser totalmente aceito nos meios em que vive tanto pelos brancos quanto pelos negros; a solidão; o preconceito racial; e a homossexualidade reprimida. Já Vallelonga é bronco, grosseiro, racista, dado a atitudes desonestas e sem papas na língua – porém, no fundo, um brucutu de bom coração.
O longa mostra o quanto as diferenças vão se atenuando à medida em que a viagem se desenrola, e os dois passam a ter uma relação de cumplicidade com o tempo. Neste ponto, vale acentuar o quanto essa se relação se modifica à medida em que o cenário muda: quando os dois ainda não se entendem, eles estão em cidades e estados mais “amigáveis” a Don Shirley; quando chegam ao sul racista, porém, em locais em que o pianista é ao mesmo tempo ovacionado no palco mas proibido de frequentar os mesmos restaurantes, hotéis que seu público branco, Tony passa a entender melhor seu chefe e Shirley percebe o quanto precisa do apoio de seu motorista – fato que teria fortalecido a amizade contestada pela família do pianista.
“Green Book”, todavia, só funciona graças aos fatores que fazem da produção um filme tão bom, independente de imprecisões históricas ou do tom mais leve para um tema tão pesado. Conhecido pelo humor grosseiro de seus longas anteriores, Peter Farrelly sabe dosar em sua primeira aventura solo os momentos de humor e drama, além de aproveitar o elenco que tem à disposição. Vencedor do Oscar de ator coadjuvante por “Moonlight” (2016), Mahershala Ali volta a ter grande atuação e sabe dar a seu Don Shirley o poder e a fragilidade que o personagem exige; Viggo Mortensen, o eterno Aragorn de “O Senhor dos Anéis” é mais do que os 20 quilos que engordou para interpretar Tony “Lip”, entregando um personagem que em momento algum cai no estereótipo do ítalo-americano.
Por isso, as indicações da dupla a ator coadjuvante e ator, respectivamente, são mais que justas, assim como as de trilha sonora original e roteiro original. Se vai levar algum dos prêmios, assim como o de melhor filme, é questão para ser discutida depois que os vencedores forem anunciados, em 24 de fevereiro. Por enquanto, o longa é considerado o grande favorito, pois venceu o Globo de Ouro na categoria de filme cômico ou musical, e ganhou o prêmio de melhor filme do Sindicato dos Produtores (PGA) – nos últimos 29 anos, a Academia e o PGA premiaram a mesma produção em 20 oportunidades. O certo, porém, é que a história contada em “Green Book: O guia”, fiel ou não aos fatos, merece ser vista enquanto bom cinema.