Em uma sala de espelhos, às 20h, entramos. Os seis atores estavam com roupas indiferentes sentados em nossa posição enquanto espectador. Uma disposição de cadeiras com o público de cara um para o outro, em forma de “L”. Uma sala de jantar? Na outra extremidade, um espelho, refletindo nossas reações e os gestuais da peça que acabara de derramar: “Essa estranha sensação de família” estreia nesta sexta (24), às 21h, no Museu Ferroviário de Juiz de Fora.
Angélica Joppert, Carol Tagliati, Rodrigo Coelho, Thiago Andrade, Vívian Hauck e Zezinho Mancini se encontravam para estudos de textos de teatro, Tina Landau e Anne Bogart estão em seu repertório, se sentem inspirados também pelo “Teatro do Comum”, do Quatrolocinco de Belo Horizonte, pela ideia da direção coletiva que foi um desejo inicial do grupo de Juiz de Fora. Nesse momento, tiveram em mãos o texto “Cachorro frio”, de dois dramaturgos da capital mineira, Assis Benevenuto e Vinícius Souza, começaram a esmiuçá-lo na intenção de ser interpretado. A chegada de Diogo Liberano, que experimentou o teatro pela primeira vez nos quatros anos que aqui morou, deu mais ênfase ao processo, que de tão intenso se tornou uma nova peça em pouquíssimos meses.
Diogo se encontra nos “entres”, escorrega de lugares fixos. É diretor transversal, que garantiu autonomia para que seu texto, escrito em fragmentos de cena, fosse diversas vezes destruído, reescrito e rasurado pelo corpo de atores e atrizes. Confia mais nos atores, nas palavras e nos gestos, que nos ensaios, não que uma coisa exclua a outra, mas é um tanto não-diretor. Faz acontecer justamente porque precário e ruim são ressignificados na arte. O direito a errar e testar é a história de sua vida. “Ser precário não é em sentido negativo, é apenas característica, porque a peça está aí, ela acabou de acontecer, não foi? Então o que precisa mais para ser teatro?” indagou na discussão ao fim da pré-estreia.
“Eu sou um artista que luta contra a linguagem. Eu observo na vida e na trajetória o quanto a linguagem pode nos aprisionar. Assumir isso faria com que eu já entrasse em um novo processo de criação pré-formado, um projeto que ainda está se buscando. Comecei a suspeitar que a linguagem é uma cilada. Uma criação se faz com a disponibilidade para se perder, não se compreender, não se entender, e tentar de novo, ensaiar, conversar novamente com os atores. Eu não planejei que a peça fosse o que ela é, as questões foram aparecendo, eu a deixei dizer como ela quer ser”, indefine Diogo Liberano, da companhia Teatro Inominável e autor de “Vazio é o que não falta, Miranda”, “Sinfonia sonho” e “O narrador”.
Experienciar e experimentar
Foi em 7 de setembro quando Diogo teve o primeiro contato com o grupo de atores da peça. Pediu que enviassem relatos pessoais com histórias de família; já haviam definido, a partir de “Cachorro frio”, que a família seria uma dos nuances centrais da narrativa que queriam tocar. Neste momento, desconstrução. Permitiram-se à experiência de largar o pressuposto, aproveitando todo processo que começara com os estudos lá atrás e, junto ao diretor, criaram um novo enredo na tentativa de ser mais potente com o que tinham a dizer.
Entre o prático e o teórico, o teatro começou a se tecer por meio das palavras vindas de outros pensadores. Diogo abriu possibilidades ao diferenciar a experiência da experienciação e principalmente de potencializar a palavra como criadora de realidade e produtora de sentido. O autor trata a experiência como sendo o que nos passa, nos toca, nos atravessa, e como o excesso de informação, na verdade, é um anulador de experiências, justamente porque não nos causa nada aquele “saber”.
Enquanto os atores e diretores permitem-se experimentar, fica o convite inerente para que o espectador continue a traçar a peça a partir do próprio olhar e repertório pessoal, sendo capaz de ampliar significados, emoções, como quando está diante de qualquer obra de arte. “O meu trabalho me permite experimentar uma coisa que a vida está tentando fingir que não existe. Então para que serve o teatro? O teatro não serve para copiar a vida. Serve para escrever que outra vida poderia ser e que não foi? Que outra realidade poderíamos ter que não essa?”, reflete o diretor.
Teatro como mudança de posição
O interlúdio entre os atos da peça é metalinguístico, “Teatro é mentira?” eles perguntam à plateia. Aqui o gesto, de forma crua e deslocada da narrativa, é evidenciado, desvendando a peça como um todo: ela é um gesto para o mundo. “Porque eu acho que o teatro deve se mostrar?” “Porque fazer teatro?”, Zezinho Mancini, ator e produtor, se perguntava ao longo do processo.
Como uma quebra de “Cidades dos sonhos”, do David Lynch, “Essa estranha sensação de família” expande nosso conceito de teatro ao dizer que “teatro é verdade”, e não meramente representação. Ao se posicionar em outras peles, os atores vivem aquilo, se emocionam, o real é um pormenor de todo o resto. Utilizam “Romeu e Julieta” para criar intertextualidade e mostrar com clareza a intenção daquela cena da peça.
“Teatro é mudança de posição. É você se colocar no lugar do outro. E se eu estou me colocando no lugar do outro, eu não sou o outro, continuo sendo eu. E se eu sou eu, eu falo assim, dessa mesma maneira”, diz Zezinho, explicando sobre a atuação sutil dos atores, não lhes interessa interpretar de maneira caricata, e sim de forma crua e sem figurinos. Em instantes, ele passa a ser uma criança lidando com a morte pela primeira vez, um pai machista e uma trans combatendo os preconceitos de seu irmão.
A peça não segue linearidade e cronologia. São cenas isoladas, conduzidas apenas pela luz. É brilhantemente perturbador se deixar levar pelas provocações, que, por vezes, passam por questões urgentes de forma clara.
É como se três intenções estivessem rodando concomitantemente: é sobre o câncer e a morte, pelo que reprimimos e deixamos de colocar para fora, é sobre a família e questões políticas como homofobia, transfobia, aborto e infelicidade, mas também sobre o próprio teatro.
Essa estranha sensação de família
Com ingressos esgotados, a peça estreia temporada de 24 a 26 de novembro, às 21h, no Museu Ferroviário (Avenida Brasil 2.001 – Centro). 3690-7055. Próxima temporada de 25 a 28 de janeiro, no mesmo local.