A máquina de escrever está numa fazenda hoje localizada num bairro popular de Barbacena. Absolutamente analógica, foi ela quem registrou senão a totalidade, ao menos grande parte de “La France contre les robots” (“A França contra os robôs”), manifesto profético de Georges Bernanos que, muito distante dos computadores e da evolução tecnológica iniciada nos anos finais do século XX e testemunhada no século XXI, foi capaz de alertar para um domínio hoje expresso em cabeças que se iluminam pelas telas de celulares, se guiam, se relacionam e existem apenas por aplicativos. “O perigo não está nas máquinas, senão teríamos de sonhar o absurdo: destruí-las pela força, à maneira dos iconoclastas que, ao quebrar as imagens, se vangloriavam de aniquilar também as crenças. O perigo não está na multiplicação das máquinas, mas no número crescente de homens habituados desde a infância a desejar apenas o que as máquinas podem dar”, escreveu o francês Bernanos, no livro publicado em 1947 em sua terra de origem, para onde havia retornado após um exílio por terras brasileiras, incluindo Juiz de Fora e a vizinha Barbacena, onde hoje está o museu que carrega o seu nome e preserva sua máquina de escrever.
No ano em que sua tradução chega ao Brasil, “Le France contre les robots” desembarca numa turnê por teatros do país, em projeto da Aliança Francesa. Em adaptação do ator Jean-Baptiste Sastre e do neto Gilles Bernanos, o espetáculo com direção de Hiam Abbass, atriz palestina de “Blade Runner 2049” e “O visitante”, tem apresentação com legenda em português nesta terça, 25, às 17h, no auditório da Faculdade de Letras da UFJF. Projetando o pensamento do escritor para o século que ele não conheceu, ainda que tenha antevisto, a peça revela a atualidade e de um homem pleno de sentidos, que saiu de seu país para refletir sobre ele, e o fez em Minas Gerais, onde chegou pouco depois de lançar “Os grandes cemitérios sob a Lua”, no qual registra: “É verdade que a cólera dos imbecis inunda o mundo todo. Podem rir, se quiserem, ela não poupará ninguém, nada, ninguém, é incapaz de perdoar. Evidentemente, os doutrinários de direita ou de esquerda, cujo ofício é esse, continuarão a classificar os imbecis, enumerarão suas espécies e gêneros, definirão cada grupo segundo as paixões e os interesses dos indivíduos que o compõem, sua ideologia particular”. Bernanos vive.
O profeta da guerra escolheu o paraíso
Com seis filhos pequenos e a esposa, Georges Bernanos fez uma pequena parada no porto do Rio de Janeiro, antes de, finalmente, desembarcar no Paraguai, onde esperava fixar-se. Não imaginava, porém, a comoção que sua rápida passagem por terras brasileiras faria. A intelectualidade carioca aguardava-lhe com entusiasmo, num calor diametralmente oposto ao frio que deixara para trás numa França de amarguras. “Ele veio para o Brasil porque estava desgostoso com a política da França. Segundo ele, o governo se deixava levar na conversa de Hitler, e mesmo a opinião pública ia nesse sentido. Bernanos era muito conhecido pelo livro ‘Journal d’un curé de campagne’ (‘Diário de um pároco de aldeia), que era muito lido pelo clero. Em 1932, o governo não via ameaça de guerra, mas Bernanos acreditava, e deixou seu país porque não conseguia viver nesse ambiente de certeza da guerra”, conta Bernard Marcel Crochet, professor aposentado de língua e literaturas francesas da Faculdade de Letras da UFJF, estudioso da obra do conterrâneo.
“Ele ia para o Paraguai, porque o sonho de infância que tinha era indo para lá. Mas quando chegou se deparou com uma descrição que desfazia totalmente as ideias que ele tinha sobre aquele país. O desejo dele era se instalar lá e fazer, junto de outros franceses, um tipo de colônia”, aponta Crochet, indicando que a mudança de planos se deu, justamente, pela acolhida na parada. Da capital, então, Bernanos partiu para Itaipava, até que o bispo Dom Justino convidou-lhe para conhecer Juiz de Fora, onde imediatamente instalou-se, morando numa propriedade no Bairro Retiro. “Ele vinha sempre ao Centro escrever num bar que ficava na esquina em frente à praça do Cine-Theatro Central. Aqui ele chegou a redigir um livro pequeno que se chama ‘Scandale de la vérité’ (‘Escândalo da verdade’), onde assina ‘Juiz de Fora, janeiro, 1939’. Daqui ele foi para Vassouras. Lá ainda existe a casa, e a dona uma vez contou para mim que quando ele saiu, deixou uma banheira cheia de livros. E ela guarda, em homenagem a Bernanos, a banheira cheia de livros ainda”, ilustra o professor.
Os planos de se tornar fazendeiro levaram, meses depois, o escritor e sua família até Pirapora, na região Norte de Minas Gerais. O negócio naufragou. Na memória dos filhos, o dom do patriarca era mesmo a escrita. E Barbacena foi o destino seguinte do homem, que, ao conhecer o imóvel numa região empobrecida da cidade na Zona da Mata, não gostou, até perguntar o nome do imóvel. Cruz das Almas, responderam-lhe. “Ele ficou por causa do nome”, conta Crochet, sobre o lugar onde hoje funciona um museu que reúne acervo fotográfico e mobiliário da época de seu ilustre morador. Por quatro anos, Bernanos manteve-se no município vizinho, esporadicamente visitando Juiz de Fora. “Ele vinha, sobretudo, para encontrar pessoas como os escritores Henrique José Hargreaves e Maria Madalena Ribeiro de Oliveira, também vinha fazer compras e se atualizar dos acontecimentos da França”, observa o professor, acrescentando que em terras juiz-foranas o escritor encontrava, ainda, o profissional que lhe fazia as botas ortopédicas que precisou usar depois de uma queda de moto. No fim da Segunda Guerra Mundial, Georges Bernanos recebeu um telegrama do ex-primeiro ministro general Charles de Gaulle. O recado era curto: “Seu lugar está aqui, na França”. Bernanos concordou e se foi.
‘Os pobres salvariam o mundo’
Crítico mordaz, Georges Bernanos, hoje com oito títulos traduzidos no Brasil pelo selo É Realizações, não era afeito às concessões. “O livro ‘Journal d’un curé de campagne’ (‘Diário de um pároco de aldeia) ganhou o prêmio de melhor romance francês em 1936 e foi muito difundido no alto clero. Esse livro deveria servir de modelo para todos os padres. Ele criticou muito, nos primeiros anos da guerra, como os católicos, padres e bispos, acompanhavam o movimento apoiando a direita muito mais do que as pessoas que precisavam. Ele tinha palavras duras para esses religiosos que se deixavam levar sem perceber que a teoria da raça pura invadia a Europa toda”, comenta o professor Bernard Marcel Crochet, demarcando outro olhar atual para os dias que correm. Ainda que prezasse pela coerência, Bernanos voltou atrás em algumas ocasiões, como em sua defesa da monarquia, que seguiu até ele deparar-se com um mundo de crueldades perpetradas por Hitler, horrores que via no distanciamento geográfico e numa aproximação ideológica.
“Desde 1942, ele se comunicava com De Gaulle, envolvido com os boletins da resistência na França. Ele se mobilizou espiritual e intelectualmente. Quando a família voltou para a França, alguns filhos dele colaboraram com a defesa do país, por uma França Livre”, pontua Crochet, citando que Bernanos chegou a lutar na primeira guerra e, após seu regresso do exílio, recusou títulos e até mesmo o convite para ser ministro da educação. “Não combinava com a personalidade dele”, pontua o professor juiz-forano, cujo mestrado investiga a obra “Les enfants humiliés”, ainda sem tradução no Brasil, mesmo sendo considerada como o mais brasileiro de seus escritos.
“Nesse livro que estudei ele é muito voltado para o tema da pobreza. Ele dizia que os ‘enfants’ são os pobres, que iriam salvar o mundo. Ele escreve que os pobres sofrem, mas aguentam com paciência o sofrimento e sonhando em um dia estarem melhores, por isso, seriam eles quem salvariam o mundo”, ressalta Crochet, apontando, ainda, para a própria condição de Bernanos. “Ele tinha uma família numerosa, de seis filhos, e sempre viveu na pobreza, porque o que ganhava era gasto em casa”, explica, referindo-se a um intelectual capaz de anos antes prever a Segunda Guerra Mundial e, também cercado pelas tristes coincidências, como a que dá conta de sua morte, experiência próxima à do protagonista de “Diário de um pároco de aldeia”, vitimado por um câncer como o escritor, morto em 1948, três anos após seu retorno à França.
Francês, sobretudo
Diferentemente da identificação com o Brasil que não foi capaz de suplantar sua relação com a França, diferentes gerações se formaram ou se deslocaram para as terras de cá. Há Bernanos por todos os cantos. “Ele veio para o Brasil exilado voluntariamente, mas sem o desejo de se tornar brasileiro, de se aculturar. Ele continuava um francês, gostava muito do Brasil e só foi embora porque o De Gaulle pediu. De lá ele manteve correspondência com os escritores brasileiros até morrer, quando uma delegação brasileira foi enviada para o funeral”, pontua Bernard Marcel Crochet, que nascido na França escolheu criar novas raízes em solo brasileiro. “Vim para me aculturar. Comecei a fazer um curso de língua portuguesa em Petrópolis. Não me exilei. Escolhi, diferente de Bernanos, viver aqui”, comenta Crochet, aos 86 anos, mais de 50 deles vividos na terra por onde, anos antes, passou seu ilustre conterrâneo. “Escolhi trabalhar esse texto justamente para mostrar a personalidade de um escritor francês que viveu em Juiz de Fora”, diz Crochet, que para o trabalho recebeu a ajuda de Hubert Sarrazin, autor de “Bernanos no Brasil” e considerado um dos maiores especialistas na obra do escritor francês. Subliminarmente, Bernard Marcel Crochet, na sua pesquisa, falava também de si.
“Vim como padre. O Papa Paulo VI havia pedido aos bispos da França para tentarem mandar padres para o Brasil, porque por aqui faltavam padres. Propus vir e fiquei por dez anos aqui na arquidiocese. Encontrei Gabriela e trabalhamos muito juntos. Éramos muito amigos, muito ligados. E da amizade passou ao amor. E o amor foi mais forte. Casamos na igreja, com a autorização de Roma, e de certo modo continuei o trabalho na igreja, não para dar os sacramentos, mas acompanhando movimentos. O pároco de Santa Luzia nos acolheu muito bem, pediu a Gabi como catequista, o que ela já era, e me deu as obras sociais. Doloroso foi tomar a decisão, mas não foi difícil nos adaptarmos. Até hoje continuo ajudando, tanto no movimento operário quanto no da classe média”, emociona-se o professor aposentado, que no ano passado despediu-se de sua Gabi, com quem tem seis filhos, 12 netos e sete bisnetos.
‘Decepcionado e desconfiadíssimo’
Influente nas altas rodas francesas, Georges Bernanos também frequentou círculos socialmente privilegiados no Brasil. Tinha como amigo o jornalista Assis Chateaubriand, que logo lhe ofereceu páginas para que colaborasse. Também recebeu em sua fazenda em Barbacena o escritor Stefan Zweig, que poucos dias depois suicidou-se. Acolhidas que determinam a escolha de Bernanos pelo Brasil, mas que, não por isso, foram capazes de aquecer o homem de temperamento forte. “Bernanos era uma figura complicadíssima, dominada pelo travo profundo da amargura. Era um ser inconformado, e só a sua pena lhe dava oportunidade para fugir deste mundo e abrigar-se dentro de si mesmo, já desesperançado e atormentado! Foi sobre este aspecto que eu o vi sempre, com altos e baixos, decepcionado e desconfiadíssimo”, escreveu o educador e imortal Geraldo França de Lima em seu célebre “Com Bernanos no Brasil”, publicado integralmente pela série “Guardados da memória”, da Academia Brasileira de Letras.
“Lembro-me bem de Bernanos. Tínhamos o hábito de passar, todos os anos, parte das férias escolares na fazenda de Virgílio. Quando este e Afonso Arinos lá se encontravam, Bernanos vinha visitá-los com freqüência. Chegava montado num belo animal, chamado Osvaldo pelo escritor, por ser presente de Osvaldo Aranha, muito ligado a Virgílio (de Mello Franco, político e jornalista), que lhe recomendara o amigo. Mas o porte ereto que mantinha ao cavalgar se desfazia quando apeava. Era como um centauro se desintegrando, apoiado em duas bengalas para sustentar a perna defeituosa, a subir, com dificuldade, os poucos degraus da varanda que circundava a casa. Sentava-se então, e desandava a falar alto, apaixonadamente, como escrevia, os olhos azuis chamejantes, num monólogo poucas vezes interrompi Bernanos, Virgílio e Afonso do pelos amigos”, recorda-se o diplomata e político Afonso Arinos de Mello Franco, filho do jurista e historiador Afonso Arinos de Melo Franco, contemporâneo de Bernanos, em texto para a 43ª edição da “Revista Brasileira”, editada pela Academia Brasileira de Letras, no qual mostra uma das tantas marcas que o escritor francês deixou no Brasil: “Eu circulava por ali, menino, sem fazer idéia da importância do escritor. Só bem mais tarde veio ele a ser um dos autores que mais me marcaram, sobretudo através da obra-prima ‘Le Journal d’un curé de campagne’, e de boa parte dos seus escritos de combate.”
LA FRANCE CONTRE LES ROBOTS
Espetáculo com Jean-Baptiste Sastre, nesta terça, 25, às 17h, no auditório da Faculdade de Letras da UFJF, no Campus Universitário