“Eu, agora, vou te fazer uma pergunta: o que você está achando do mundo? Vai acabar ou não vai acabar? Não acha que o mundo está começando a acabar, não?”. Diante de uma resposta afirmativa, Maria Lúcia Alvim diz: “Então estamos de pleno acordo”. Prestes a completar 88 anos em outubro, a poeta celebrada em cinco livros publicados entre 1959 e 1980 espera o fim do mundo em Juiz de Fora.
Há quase uma década reside na cidade, após ter nascido e crescido em Araxá – de onde vêm seus dois irmãos também poetas, entre eles o reverenciado Francisco Alvim-, ter vivido por anos no Rio de Janeiro e passado uma temporada numa fazendo no interior de Minas. Foi com a vista das montanhas verdes que Maria Lúcia Alvim escreveu “Batendo pasto” (Editora Relicário), livro que artesanalmente compôs e pediu que o amigo, o poeta, professor e tradutor Paulo Henriques Britto guardasse. A publicação, segundo ela, deveria ser feita apenas depois de sua morte.
Ricardo Domeneck, incentivado por Guilherme Gontijo Flores – dois nomes da poesia contemporânea brasileira -, hoje vivendo em Berlim, viajou para encontrá-la e convencê-la do contrário. Encontrou-a vivendo numa residência terapêutica no Bairro Bom Pastor, com longos cabelos e a encantadora lucidez que transborda em “Batendo pasto”.
Na entrevista por telefone, a dias do lançamento do livro, que chega às livrarias nesta segunda (24), Maria Lúcia Alvim fala sobre o passado produtivo, a rotina pacata, a distância dos poemas e a decisão de publicar um já elogiado título, seu primeiro inédito após exatos 40 anos. Antes tarde do que mais tarde. “Quando escrevi, senti que ia viver bastante, até por ter uma família longeva. Agora resolvi abrir mão, porque está chegando a hora do bloco passar.”
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Tribuna – Por que guardar o manuscrito de “Batendo pasto” assim que acabou de escrevê-lo?
Maria Lúcia Alvim – Eu era muito moça ainda e gostava de ficar com o manuscrito, me dava segurança ter um trabalho feito por mim e perto de mim. Bobagem de pessoa inexperiente. Não tinha razão nenhuma especial. Foi um acidente, uma das falhas da minha vida profissional, que nem profissional era, para falar a verdade. De modo que não tenho uma explicação muito especial para isso. Acontecia que naquela época eu não tinha mais muita vontade de fazer as coisas, não. Gostava de ficar com elas em casa. De vez em quando mexia num livro, mexia n’outro. Se saía um ou outro, eu sentia falta. Era assim a minha vida. Agora já estou muito velha para tomar as decisões definitivas, que estão sendo tomadas pela Luciana, pelo Humberto, meu sobrinho, que vai ser o dono da minha obra. Obra! Imagina falar em obra. Tão pedante! Você me desculpe, viu?!
Naquele momento você esperava um reconhecimento maior por parte do mercado ou da crítica? Foi algo que te angustiou?
Para te dizer a verdade, a crítica, para mim, é muito relativa. Sempre fui de as pessoas gostarem dos meus livros, outros não gostarem. Mesmo dentro da família, entre os mais próximos sempre houve essa celeuma. Quando fiz o “Romanceiro de Dona Bêja”, meu irmão Chico meteu o pau, disse que aquilo era uma bobagem, escrever um romanceiro no século XX. Fui tocando e fazendo tudo o que fiz. Não me incomodava. Nesse ponto sempre fui muito independente. Achava que tinha que ser feito e fazia.
“Fui tocando e fazendo tudo o que fiz. Não me incomodava. Nesse ponto sempre fui muito independente. Achava que tinha que ser feito e fazia”
Os textos de apresentação escritos por Ricardo Domeneck e Guilherme Gontijo Flores apontam como você, durante sua trajetória, se distanciou dos clubes e grupos, sempre fora do estabelecido. Isso era intencional?
Nunca gostei de grupos. Sempre fui uma pessoa só. Nunca fiz nada em grupos, a não ser com os amigos mais íntimos possíveis. Nunca fiz negócio. Nunca negociei coisa alguma. Em todos os sentidos da minha vida, nunca negociei. É uma palavra que não cultivei e não cultivo. Com uma grande paz de espírito e uma grande tranquilidade, acho uma felicidade ter conseguido esse milagre. Num mundo em que só existe a palavra comércio. Você concorda, não é mesmo?! Espero que esteja concordando. Tudo meu foi espontâneo, natural. Foram momentos variados. Acho que me saí bem nesse ponto. Não deixei ninguém me invadir e também não invadi a vida de ninguém.
Como lê “Batendo pasto” hoje? É um livro que te toca da mesma forma que tocava na década de 1980?
Para falar a verdade, é meu filho distante. Chamo meus livros de meus filhos. Não vejo ele há muito tempo. Faço meus livros manuais e, quando vou publicar, apresento. Esse é um livro que sempre me acompanhou, mas nunca tive a pretensão de mostrá-lo, andando com ele embaixo do braço. Ele estava perto. De vez em quando eu dava uma lidinha, achava engraçado, bonitinho.
O que essa imagem do campo, esse pasto, representa para você hoje?
É o único lugar onde eu, estando em pé, não estando deitada como fico, sinto meus pés. É onde eu me sentia segura. A terra é o chão. Eu me sinto segura no chão dos matos, da natureza, não no chão das cidades.
“A terra é o chão. Eu me sinto segura no chão dos matos, da natureza, não no chão das cidades”
Como é estar longe desse chão? Ou ele não está distante?
É como se eu estivesse sozinha, comigo mesma. Ele, então, passa a ser eu. E eu sou ele. Não está distante, porque eu sou esse chão. É como se fosse uma parte de mim. Uma parte física de mim.
O Paulo Henriques Britto faz uma análise de um de seus poemas, mostrando como som e imagem são valores tão importantes na sua poesia. Existe, na sua criação, essa preocupação?
Nunca tive uma preocupação especial, não. Quando eu estava fazendo alguma coisa, era o que saía.
E em sua vida, quais eram suas preocupações depois da escrita de “Batendo pasto”?
Foi uma trajetória de um mundo diferente. Eu estava morando no Rio, como sempre morei. A parte da minha vida de roça, de campo, de fazendas já estava distante, acabou com “Batendo pasto”. Saí de uma zona de vida para a outra, tranquila. Comecei a escrever outro livro. Foram dois livros opostos um do outro, absolutamente opostos. Depois escrevi alguns poemas que estão soltos, não estão nem intitulados. São poemas avulsos que estou juntando para fazer um livro diverso.
Hoje a escrita faz parte de sua rotina?
Não, ao contrário. É, justamente, a única coisa que não faz parte da minha vida (risos). O ritmo de vida que estou levando é mais próximo do de uma cigana, absolutamente livre, completamente desfeita de programações sérias de vida. Vou fazer isso, vou fazer aquilo outro, não. Vivo o dia presente e me sinto muito sem responsabilidade com coisa alguma. Não tenho nenhuma responsabilidade com a minha vida, que está dependendo da pandemia (risos). Infelizmente, né?!
“O ritmo de vida que estou levando é mais próximo do de uma cigana, absolutamente livre, completamente desfeita de programações sérias de vida. Vou fazer isso, vou fazer aquilo outro, não. Vivo o dia presente e me sinto muito sem responsabilidade com coisa alguma”
Quando se mudou para Juiz de Fora?
Vim fazer uma operação de catarata. Vim para cá em 2011 e estou aqui até hoje. Vim para ficar três meses, fazer a catarata, ter alta e voltar. Conheci a Luciana, que veio a ser minha cuidadora, e gostei muito de Juiz de Fora, um lugar onde tenho muitos contraparentes longínquos, uma cidade que tem ainda aquele cheiro de barroco. Fiquei num hotel adorável, o São Luiz (na Rua Halfeld, próximo à Praça da Estação), todo em art nouveau, muito bonito. Me apaixonei por aquele lugar e fui ficando, passei cinco anos lá. Depois, meu irmão, que estava me bancando, achou que eu estava folgada demais (risos) e, então, aluguei uma casa. Fui morar e não gostei. Aí estou agora numa residência terapêutica vai fazer dois anos.
E gosta de viver aí?
A gente mora onde encontra um recanto, onde possa gostar de ficar num canto. Aqui não é ruim, nem bom. É mezzo a mezzo (meio a meio). É inexplicável.
Tem contato com seu irmão Chico Alvim?
Ele vem aqui muito pouco e nos falamos por telefone pouquíssimo. Detesto ficar naquelas conversas banais. Não dá. Ele fica lá e eu aqui. De vez em quando ele faz umas brincadeiras comigo. Assim vamos levando. Somos os dois únicos que sobraram da família. O (Carlos) Drummond dizia: nós somos os sobrantes. Eu também vim como Drummond, eu sou a sobrante. Acabou tudo. Agora só tenho Luciana, que está aqui ao meu lado, uma pessoa maravilhosa.
“Eu também vim como Drummond, eu sou a sobrante. Acabou tudo”
Você viveu num meio social agitado. O que mais te marcou?
Os anos 1950, para mim, foram os dourados. Amei os anos 1950. Depois, nos anos 1960 achei que a vida deteriorou muito, tanto o Rio de Janeiro, quanto as pessoas. Os 1950 foram tão fantásticos que deixou um espaço muito pequeno para que outras coisas pudessem aparecer.
E com quem travava o maior diálogo?
Eu convivia a maior parte do tempo com estrangeiros. Trabalhava numa galeria de arte, a Petit Galerie, que era o Montparnasse (bairro da elite intelectual de Paris) de Copacabana. Era na Avenida Atlântica, em frente ao mar. Trabalhei lá por muito tempo, com exposições de pintores célebres. Depois trabalhei com meu pai, quando foi presidente de uma companhia hidrelétrica. Fora disso não trabalhei mais fora, a não ser numa galeria ou outra, coisa rara.
Algum amigo daquele tempo resistiu ao tempo e à distância?
Alguns resistiram, mas o que estou notando é que meu entourage diminuiu muito. As pessoas não estão vivendo muito. Os amigos íntimos que estão vivos ou estão doentes, ou estão de cama, ou não andam mais. Estou muito sozinha nessa parte. Eles foram pessoas muito machucadas. A pessoa com quem convivo mais nos últimos anos é a Luciana (cuidadora).
“Os amigos íntimos que estão vivos ou estão doentes, ou estão de cama, ou não andam mais. Estou muito sozinha nessa parte”
A leitura faz parte da sua vida hoje?
Não mais. O último livro que li com atenção e interesse foi “L’idiot de la famille”, a biografia que o (Jean-Paul) Sartre fez sobre o meu querido (Gustave) Flaubert. A paixão da minha vida como escritor foi ele. Meu irmão comprou esse livro e me emprestou. Está na minha cabeceira. Fiquei muito interessada com certos aspectos da vida do Flaubert. Sou muito parecida com o Flaubert, viu?!
Seu livro “Batendo pasto” já chama atenção de uma geração mais jovem. Como é ser lida pelos jovens?
Estou adorando. Depois que você fica velho, fica se odiando. É horrível. Ninguém imagina que coisa terrível é a velhice. Nem vale a pena explicar. E estou adorando que os jovens se aproximem de mim e de minhas coisas. Quero que cheguem cada vez mais perto, a um palmo de distância de mim, para a gente poder se entender um pouquinho.
“Estou adorando que os jovens se aproximem de mim e de minhas coisas. Quero que cheguem cada vez mais perto, a um palmo de distância de mim, para a gente poder se entender um pouquinho”
Ainda preserva uma alma jovem?
Muito ranzinza (risos). Mas preservo. Gosto desse lado meu.
E esse livro te cria expectativas quanto aos dias que ainda vão vir?
Se tenho expectativas, finjo que não tenho. Qualquer perspectiva para o futuro é absolutamente um faz de conta, de modo que eu finjo que não estou vivendo essa fase, não. Finjo que está tudo bem, que os dias são eternos, que a pandemia vai sumir e vai voltar tudo a ser como era. Vou tapeando, vou tapeando. Não posso me deixar levar pela vidinha. A vida é madrasta, então, tem que ter cuidado.
LEIA MARIA LÚCIA ALVIM
Coluna
Era uma tarde frese, empelicada.
Eu vinha fria e fétida, mas vinha.
Não tinha resto meu, se tudo eu tinha
Não era nome ou rosto, de onde eu vinha.
Ele me viu da branca paliçada
E veio ao meu encontro, já que eu vinha
Na mesma direção, pois que não tinha
Nenhuma outra saída, de onde eu vinha.
Paramos sobre a ponte. Promulgada
Intimava os atalhos, mais não tinha.
Ele cercava o fogo até o cerne.
E fui ganhando brilho, por um nada.
Sem que nunca soubesse de onde vinha
A ressurgir no tempo em minha carne.