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A urgência de um livro guardado por quase 40 anos: conheça ‘Batendo pasto’

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Com desenho de capa de David Schiesser, livro inédito de Maria Lúcia Alvim sai pela mineira Relicário, editora de Belo Horizonte. (Reprodução)

Em “Manhã sem rusga”, escreve a poeta Maria Lúcia Alvim: “O capim é minha grande reserva interior”. Para Ricardo Domeneck, responsável pela digitação do manuscrito, desdobra-se daí tanto a estética quanto a ética de “Batendo pasto”, primeiro título inédito da escritora em 40 anos. Escrita em 1982, a obra permaneceu guardada durante quase o mesmo período. Nela, porém, reside uma urgência que o verso registra. “O capim, a coisa que a gente considera mais chã, a inferior, a menor, o que se corta, o que não se quer, o feio, é essa espécie de planta que ela chama de sua reserva interior. Essa defesa da simplicidade, da pobreza, do que é não-visto, do que é invisibilizado, porque é considerado nada. Há uma ética de não celebrar apenas o que é oficialmente bonito, lucrativo. Não é o jacarandá, é o capim. Não é nem o simbólico do Brasil, o Pau-Brasil. Tampouco é o milho ou a soja. É o capim”, explica Domeneck sobre o poema que, a partir desta segunda (24), ganha as prateleiras e faz retornar à cena uma autora apagada da historiografia literária nacional.

Editado pela também mineira Relicário, selo de Belo Horizonte, “Batendo pasto” ressoa outro livro urgente, ainda que não a tempo de sua autora celebrar. Em 2018, Domeneck colaborou para publicar “Nuvens”, livro de estreia da poeta Hilda Machado, vencedor do Jabuti no ano seguinte. Hilda, contudo, falecera em 2007. “Achei que não havia pressa”, pontua ele, referindo-se ao momento em que leu pela primeira vez os poemas da mulher à época com menos de 50 anos. “Quando descobri que a Maria Lúcia estava viva e já com muita idade, decidi que não iria esperar desta vez. É uma autora que estava sendo negligenciada. Há teses de mestrado sobre ela, na academia foi discutida, mas é, para mim, uma grande autora viva que não estava na boca do povo como deveria estar. Eu queria participar do processo de recuperação crítica enquanto ela pudesse ver”, conta, sobre um trabalho que refletia não apenas compromisso ético e estético, mas, sobretudo, humano.

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Naquele momento, quando Domeneck deparou-se com a poesia de Maria Lúcia Alvim, e ainda hoje, pouco se sabia sobre a biografia dela. Nada, nenhuma informação sobre suas criações inéditas, se existiam ou não. Natural do interior de São Paulo e radicado em Berlim, o escritor peregrinou até a poeta. “Foi necessário criar uma relação de confiança”, recorda ele, que, depois do primeiro e único encontro, produziu um evento em homenagem a Maria Lúcia no Rio de Janeiro, no qual ela esteve presente. Hoje se falam com alguma frequência. “Escrevo cartas para ela”, diz. Domeneck, ao lado do professor, pesquisador e também poeta Guilherme Gontijo Flores, espera ainda publicar outros inéditos e relançar os cinco livros da escritora: “XX sonetos” (1959), “Pose” (1968), “Coração incólume” (1968), “Romanceiro de dona Bêja” (1979) e “A rosa malvada” (1980). Antes, contudo, publicará com Gontijo Flores uma antologia da poesia de Maria Lúcia em Portugal.

Leia também: ‘Nunca negociei coisa alguma’: O retorno da poeta Maria Lúcia Alvim

Independência e apagamento

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Primeiro livro de Maria Lúcia Alvim, “XX Sonetos” foi lançado em 1959. (Reprodução)

Diferentes uns dos outros, os livros de Maria Lúcia Alvim publicados entre 1959 e 1980 também se distinguiam nas prateleiras, não cabiam nas caixinhas dos críticos e especialistas. “Tenho certeza de que Maria Lúcia não estava alheia ao que acontecia, às discussões mais importantes na cultura brasileira, nos momentos em que publicava seus livros. Quando pensamos nesses momentos específicos, percebemos que havia um descompasso entre o que ela estava fazendo e o que estava sendo mais discutido”, avalia Ricardo Domeneck, para em seguida explicar: “Quando ela estreia em livro, em 1959, com ‘XX sonetos’, era um tempo em que a poesia brasileira discutia a poesia concreta, a poesia neoconcreta, a poesia práxis. Era um momento de neovanguardas no Brasil e ela surge com um trabalho extremamente tradicional, ligado a um período específico. Quando a poesia dela surge com mais força, entre 1968 e 1980, numa lírica de grande exuberância, estávamos no meio das grandes discussões do tropicalismo, da contracultura e logo depois vem o desbunde.”

Considerado um de seus melhores títulos, “Romanceiro de dona Bêja”, de 1979, retrata região de Araxá, onde a poeta nasceu. (Reprodução)

“Penso que Maria Lúcia Alvim só não estava já no centro dos nossos debates sobre poesia feita no Brasil porque foi avessa às rodas da tal vida literária. Resguardada, como outro gênio _ dessa vez, Leonardo Fróes _ foi ficando de lado, porque a academia e as rodas dos contemporâneos se voltam, um tanto cega e exageradamente, para as grandes cidades, sobretudo Rio de Janeiro e São Paulo”, aponta Guilherme Gontijo Flores em texto de apresentação de “Batendo pasto”, que conta, ainda, com prefácio de Domeneck e ensaio final de Paulo Henriques Britto, com uma detalhada análise de um poema de apenas dois versos. A poética de Maria Lúcia sempre esteve além do que era possível ver. Assim, sem rótulos, foi apagada. “Ela faz uma poesia muito independente. E isso é um problema crítico nosso, de nossa historiografia literária, um vício nosso de eleger determinados estilos para os períodos. Até com data de início e fim, como se na data de fim todos os poetas morressem para surgirem outros. Na verdade, essas poéticas estão sempre ocorrendo paralelas e não são consecutivas”, defende Domeneck.

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“Vivenda”, antologia de 1989, foi editado pelo prestigiado selo Claro Enigma e reúne todas as cinco obras anteriores de Maria Lúcia Alvim. (Reprodução)

Soma-se a isso, segundo o poeta radicado em Berlim, o fato de ela ser mulher. “Tenho a impressão de que em nossa historiografia sempre escolhem uma mulher, apenas, e ignoram outras”, critica. “Existe muita exuberância no trabalho dela, tanto visual, quanto sonora”, acrescenta, citando as expressões da vida na lavoura em “Batendo pasto”, vocabulário ofuscado pelo interesse crescente da prosa brasileira com o ambiente urbano. “Não é nenhum exagero afirmar que ‘Batendo pasto’ reúne e depura o que havia de melhor na poesia dos anos 1980 e que, mesmo inédito por mais de 30 anos, sai agora com a força de um livro escrito na semana passada. Maria Lúcia Alvim está vivíssima, resta um público leitor igualmente vivo”, celebra Gontijo Flores sobre uma obra que não somente retrata a vida no campo, como filosofa sobre o estar no mundo. “Sendo interiorano, para mim, leio esse ‘bater pasto’ como a ideia de ‘bater chão’, de caminhar, andar descalço pela terra”, pontua Ricardo Domeneck e finaliza: “Vejo uma identificação da autora com todas essas espécies muito simples que vivem nesse território.”

LEIA MARIA LÚCIA ALVIM

II. Cantiga de roda

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Eu era assim no dia dos meus anos
E quando me casei, eu era assim
Eu era assim na roda dos enganos
E quando me apartei, eu era assim

Eu era assim caçula dos arcanos
E quando me sovei, eu era assim
Eu era assim na voz dos minuanos
E pela primavera, eu era assim

Enquanto fui viúva, eu era assim
Enquanto fui vadia, eu era assim
E pela cor furtiva, eu era assim

No amor que tu me deste, eu era assim
E trás da lua cheia, eu era assim
E quando fui caveira, eu era assim

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