Bel Santos Mayer, com um grupo de jovens e o Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac) que coordena, criou uma biblioteca dentro de uma unidade de saúde. A chegada de um dentista, no entanto, fez com que os livros e toda a iniciativa precisassem ser transferidos para um cemitério. “Foi a primeira vez que a saída de um serviço de saúde para um cemitério significou uma melhora”, brinca. A casa do coveiro não era uma escolha. Era o único lugar que restava naquela região de Parelheiros, distrito no extremo sul de São Paulo com o segundo pior IDH da maior cidade do país. “Aproveitamos o fato para construir uma narrativa sobre a vida, o direito à leitura e a ocupação de espaços. Não é uma defesa de que em qualquer lugar cabe uma biblioteca, mas de que nenhum lugar deixe de ter uma biblioteca”, defende a educadora social, bacharel em turismo, licenciada em ciências matemáticas e especialista em pedagogia social.
“As bibliotecas cabem onde tem gente. Há um desejo de que em cada escola tenha uma biblioteca, de cada região tenha uma biblioteca acessível à comunidade”, sugere Bel, que nesta terça, 23, às 17h, participa da live “Antirracismo nas bibliotecas comunitárias”, que integra a Primeira Semana Trama de troca de saberes em arte, cultura e criatividade, da “Revista Trama”. Nesta quarta, às 19h, Beto Martins, fundador da Viana Black Estúdio fala sobre pintura digital e, na quinta, às 17h, a artista e pesquisadora Lorraine Pinheiro Mendes conversa sobre arte e questões raciais. As conversas serão transmitidas via conta do Instagram da Bodoque (@artebodoque).
Tempos de portas fechadas, a pandemia também fez com que cerrassem as portas as bibliotecas comunitárias que Bel coordena. E permitiu que criassem, neste momento, a campanha “Pão, proteção e poesia”, para garantir comida, produtos de higiene e novos livros, além de promoverem atividades on-line para os parceiros desses espaços conseguindo remunerá-los. Os mediadores também viram os recursos para alimentação e transporte das bibliotecas serem convertidos na manutenção de internet em suas casas, permitindo-os se comunicarem durante o período de isolamento social. “Uma biblioteca que está preocupada com os livros e com as pessoas que sustentam as histórias que estão nos livros. Como garantir a vida das pessoas que estão nas áreas periféricas e esses autores e autoras que não estão em grandes editoras? Como elas podem continuar produzindo?”, indaga, em tom propositivo, a educadora, certa de que o período também tem muito a ensinar.
“Como garantir a vida das pessoas que estão nas áreas periféricas e esses autores e autoras que não estão em grandes editoras? Como elas podem continuar produzindo?” (Bel Santos Mayer)
“O que falta nesse país é mudar o governo e mais leitura, para que tenhamos condições de trazer ao nosso povo compreensão para enfrentar as fake news e todos os jogos que manipulam e destroem nossa existência. Precisamos aproveitar essa experiência que estamos tendo neste tempo, de mutar os microfones para diminuir os ruídos e ouvir os outros (nas salas de reuniões virtuais). Está passando da hora de a gente silenciar um pouco e ouvir o outro, as mulheres e homens negros, os indígenas, a comunidade LGBTQI+, ouvir de coração aberto para conseguir entender de que dores estamos falando. E como é que não sendo negro, gay, indígena, cada um pode se juntar para lutar contra todas as formas de discriminação. Não dá para adivinhar o que uma mulher negra tem a dizer, nem desqualificar todas as suas dores, sem ouvi-la. O único jeito é mutar o microfone, escutar, para seguirmos juntos buscando as saídas”, ensina Bel.
A literatura abre espaços
Ativista social desde a década de 1980, Bel Santos Mayer não para. Dá palestras, ministra cursos, desenvolve projetos, coordena espaços, sempre e tudo em defesa da literatura como direito. “Nós lemos para nos informar, para entender onde nós estamos, para poder viver outras histórias e personagens, para entender o que veio antes de nós. A importância da literatura para qualquer pessoa, a informação, o conhecimento, a construção de futuro nas casas com ausências materiais é a oportunidade que temos de abrir espaços”, define ela, citando uma de suas últimas leituras, um ensaio da argentina Graciela Montes. “Principalmente para pessoas que vivem em lugares pequenos, espremidos, sem oportunidade, às vezes com a sensação de estar dentro de uma cela, a literatura alarga o mundo, favorece rupturas, dá possibilidade de deslocar fronteiras, produz movimentos e mobilidades, dá a possibilidade de criar cisões com o destino dado”, pontua. “É possível, com esse respiro, perceber que as coisas não são, elas estão sendo”, diz, inspirada no ensaio “Do ditame ao enigma ou como ganhar espaço”.
“Principalmente para pessoas que vivem em lugares pequenos, espremidos, sem oportunidade, às vezes com a sensação de estar dentro de uma cela, a literatura alarga o mundo, favorece rupturas, dá possibilidade de deslocar fronteiras, produz movimentos e mobilidades, dá a possibilidade de criar cisões com o destino dado” (Bel Santos Mayer)
Esse respiro, para se tornar respiração efetiva, carece da representação de um mundo que é múltiplo por natureza. “Horrível pensar que num país em que 56% da população se declara parda ou preta, tenhamos como resultado da pesquisa feita pela professora Dr. Regina Dalcastagnè, que analisa os romances publicados desde 1965 pelas grandes editoras, está ali evidenciado que quem escreve são homens brancos de classe média no eixo Rio-São Paulo com os problemas do universo desses homens brancos de classe média que criam personagens homens brancos de classe média. Chocante olhar que em 43 anos pouco se mudou nas grandes editoras. Mas nas editoras pequenas, periféricas, nós nos deparamos com autoras negras, jovens, escrevendo muito mais poesia e contos do que romances, porque são escritores trabalhadores, com outras atividades e que não podem se dedicar exclusivamente à literatura. Essa bibliodiversidade está presente em nossas bibliotecas, que privilegiam essa diversidade”, assegura, citando a convivência de clássicos, anônimos e escritores que pouco a pouco encontram o cânone, de diferentes regiões e origens no país, dos indígenas aos negros, dos livros infantis aos adultos. A desigualdade nossa de todo dia, alerta Bel, também está nas prateleiras e em todo o processo que faz um livro chegar às mãos.
“Não fazemos eventos sem colocar autores não-brancos nas mesas e rodas de conversa. Olhamos para diversidade cada vez que desenhamos um evento. E estamos conectados às pautas antirracistas. As bibliotecas comunitárias estão muito conectadas até porque nós, nossos irmãos, nossos filhos, são as principais vítimas da necropolítica”, aponta a educadora, criticando a postura de um país que negligencia um prazo que se esgota este ano: “O Brasil está atrasado para garantir bibliotecas em todas escolas”. O descuido – ou descaso – deixa de lado a noção de que a leitura pode ser um espaço íntimo, e que não está restrita ao ensino da língua, mas à possibilidade de ter ela como “casa, colo, acolhimento, cuidado”. Literatura, segundo Bel, pode ser viagem interna ou para bem longe. Para ela, é importante que a criação de relação e afeto presente na leitura para um bebê, prevaleça por toda a vida, já que ela confirma a potência da literatura para além de seu caráter disciplinar.
“As bibliotecas comunitárias estão muito conectadas até porque nós, nossos irmãos, nossos filhos, são as principais vítimas da necropolítica” (Bel Santos Mayer)
“O acesso à literatura não pode só depender da boa vontade de governos em construir equipamento, distribuir insumos, livros”, observa. “Precisamos de ações articuladas, que devem ser interinstitucionais, não podem ser só das escolas, do equipamento de cultura, cada um sozinho. A proposta dos planos municipais, estaduais e nacional de leitura e escrita é essa, de integrar os diferentes setores, a sociedade civil e o Poder Público, para planejarmos como poderemos ter uma política de cultura com raízes dentro dos territórios e com orçamento. Neste momento que vivemos, de pandemia, olha o quanto a cultura tem sido importante como companhia, como cuidado para a saúde mental das pessoas e, infelizmente, é a pasta que tem o menor recurso, que geralmente é a primeira a ter a verba cortada. É como se pudéssemos falar, em saúde, de um corpo que existe sem a cabeça. Saúde deve trabalhar junto com a cultura e com a educação”, defende a mulher que há décadas cuida de gente, em diferentes espaços, de unidades de saúde a cemitérios, receitando livros.
“Antirracismo nas bibliotecas comunitárias”
Live nesta terça, 23, às 17h, no Instagram da Bodoque (@artebodoque)