Era hábito abrir as cerca de 70 janelas no início do dia e fechá-las ao fim do expediente. Um funcionário da Companhia Franco-Brasileira, que por mais de cinco décadas administrou o Cine-Theatro Central, ficava encarregado do serviço. Era comum que as sessões noturnas acontecessem com as janelas e cortinas abertas. “Nunca precisou de ar-condicionado, porque o vento entrava por um lado e saía pelo outro”, recorda-se Waltencir Parizzi, nascido dois anos depois da inauguração do espaço, que ocorreu em 30 de março de 1929, há 90 anos. No local cercado por pinturas de Angelo Bigi, Waltencir passou mais de cinco décadas de sua vida. “Foi meu único emprego”, orgulha-se ele, que chegou à casa aos 14 anos. “Eu estudava e trabalhava. Comecei no escritório, como contínuo, passei a gerente do escritório, depois porteiro, gerente do cinema, gerente geral e terminei como assistente da diretoria. Tudo o que é de cinema eu conheço”, diz ele, conhecedor de cada canto do agigantado imóvel entre as ruas Halfeld e São João. “A instalação elétrica de lá é uma coisa linda.”
Os 90 exigem cuidado
Rodeado por prédios, num mundo cada vez mais quente e ar cada vez mais poluído, o Central perdeu o antigo hábito. Ainda assim, os barulhos externos, muitos, insistem em invadir o casarão, assim como o cheiro que brota das cozinhas vizinhas, de restaurante e bares das galerias laterais. A realidade é outra. O prédio, no entanto, mantém-se grandioso, fruto da longa restauração pela qual passou em 1996 e também das pequenas reformas que se sucedem desde então, como a atual. O som do trabalho da serralheria, abaixo do palco, é incessante. “Para o teatro funcionar completamente, precisamos do Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros, o que só vamos conseguir depois que satisfizermos todas as exigências. Para cumprir esse plano, a universidade assinou um TAC, Termo de Ajuste de Condutas, junto ao Ministério Público, comprometendo-se a executar essas obras, o que foi feito há dois anos”, diz Luiz Cláudio Ribeiro, diretor do teatro, referindo-se a adequações como a instalação de guarda-corpos, corrimãos e sinalizações para casos de emergência, reivindicações que fizeram o segundo e terceiro andares terem seus acessos impedidos.
Tombado como patrimônio municipal e federal – gestos que garantiram sua preservação no coração da cidade -, o prédio tem aumentada a burocracia para passar por reformas. As atuais modificações, por isso, foram licitadas e são executadas por uma empresa especializada em imóveis protegidos por lei. Reaberto para o show de Milton Nascimento, no último dia 15, o balcão nobre já conta com um guarda-corpo ao longo da mureta da plateia, corrimãos e sinalizações. As alterações na galeria, contudo, ainda estão em processo. Todo o guarda-corpo atual será reajustado, e a escada de acesso aos banheiros receberão uma plataforma e novos degraus, para conferir maior segurança aos espectadores. A previsão é que toda a adequação esteja concluída até o final de abril. O ar-condicionado, adianta o diretor, mantém-se distante da realidade. “Fazer a instalação de ar-condicionado que tenha eficiência razoável é muito caro. Só o projeto é em torno de R$ 80 mil, como já vimos. Com a execução, é mais de R$ 1,5 milhão. Fica muito custoso para o orçamento da universidade. Fazer o projeto é até possível, mas não adianta se não temos a perspectiva de execução da obra. Por isso, acaba não entrando nas prioridades atuais.”
Engenheiro civil por formação, o atual diretor do Central é professor do departamento de Estatística da UFJF. Doutor em demografia, Luiz Cláudio Ribeiro pesquisa demografia estatística aplicada à saúde. Conhecido pelo apelido Cacáudio, é um multi-instrumentista, compositor e cantor, que subiu ao palco do teatro há mais de 20 anos. Em 2018, entrou em cena acompanhando a cantora Luciana D’Ávila. Este ano, prepara-se para tocar no show de Joãozinho da Percussão. “O fato de ser músico, engenheiro e trabalhar com os números contribui para essa função que exerço. As pessoas pensam no glamour do teatro, mas no dia a dia o que vale é a gestão do espaço, pensando as obras e serviços que precisam ser executados”, garante ele, que há um ano e nove meses assumiu o trabalho com três temores: o fogo, os cupins e as infiltrações. Imediatamente tratou de mobilizar a equipe de 22 funcionários para fazerem, todos, um curso de brigadista. Também solicitou toda a discupinização do prédio e, antes da temporada de chuvas, pediu uma revisão em toda a porção superior do prédio.
Uma história em muitos atos
O professor e pesquisador José Alberto Pinho Neves corre contra o tempo para emplacar ainda este ano um livro sobre os 90 anos do Cine-Theatro Central. Ele coordena a publicação, que além de textos dele tem as participações de Antônio Colchete e Marcos Olender, em projeto desenvolvido há anos pelo trio, tratando de diversos aspectos do Central em suas nove décadas de existência – e até mesmo antes.
“Uma das partes do livro, escrita por mim, é dedicada às reminiscências do teatro local, indo de meados do século XIX até a inauguração do Cine-Theatro Central, mostrando a vocação que existia para o teatro na cidade, que teve vários espaços dedicados a este fim, sendo o primeiro deles organizado pelo Barão de Bertioga, e como se dava esse movimento”, antecipa Pinho Neves. “Depois surgiram outros espaços, devido à necessidade de maior conforto para o público, e o Central é a coroação do auge econômico de Juiz de Fora.”
Além da trajetória do teatro na cidade antes de 1929, o autor também preparou para o livro uma completa linha cronológica do Cine-Theatro Central. “Ela vai mostrar as transformações do espaço, a passagem do cinema mudo para o sonoro, relembra as personalidades que se apresentaram por aqui, como Bidu Sayão, Leila Diniz, os festivais de música, as companhias de teatro. É uma cronologia ‘contada’ com outras vozes, principalmente em relação à aquisição do Central pela UFJF, graças ao Itamar Franco.”
Quanto ao prédio em si, José Alberto Pinho Neves também preparou um texto sobre o pintor italiano Angelo Bigi, responsável pela pintura decorativa no interior do Cine-Theatro Central. Marcos Olender ficou responsável por analisar a parte arquitetônica da edificação, incluindo aí o arquiteto responsável (Raphael Arcuri), e Antônio Colchete trata do espaço ocupado pelo Central no contexto urbano na área onde se localiza. De acordo com o pesquisador, a parte textual do livro está praticamente pronta; após definir a programação visual, eles pretendem negociar a edição do trabalho com a pró-reitoria de Cultura da UFJF a fim de ter o projeto impresso e distribuído ainda em 2019.
3 mil pessoas numa sessão
“Segunda e terça-feira eram dias de filmes de aventura, ação ou faroeste. Quarta-feira tinha a sessão feminina, com quatro horários das 15h30 às 21h30, quando as mulheres pagavam meia-entrada para assistirem a filmes românticos ou musicais. “Quando terminavam as sessões, dava para sentir o perfume das mulheres. Elas se arrumavam muito, como eles também, para irem ao cinema”, lembra-se Waltencir Parizzi, antigo gestor do cinema. Às quintas-feiras, ainda, repetiam-se os filmes do dia anterior, mas sem descontos. Sexta-feira, sábado e domingo eram ocupados por filmes policiais e de ação. “Lotava o cinema. Eu punha três mil pessoas numa sessão”, orgulha-se Parizzi, elencando os filmes de maior bilheteria do cinema, que na metade do século era a maior e mais prestigiada diversão do juiz-forano. “Sangue e areia”, de 1941, com Tyrone Power, Linda Darnell e Rita Hayworth, levou multidões ao cinema com a história de um filho de toureiro famoso que vive entre o amor de duas mulheres e o sonho em seguir os passos do pai. “Ben-Hur”, “Sempre no meu coração”, “Sansão e Dalila”, “O corcunda de Notre Dame” e “King Kong” também foram campeões nas quatro bilheterias do lugar.
Outras duas sessões especiais dinamizavam a programação da grande sala. Uma delas era a infantil, chamada Sessão Mickey, que exibia desenhos da Walt Disney durante as tardes de domingo. A outra, voltada apenas para os homens, era sempre aos sábados, à meia noite, com produções “sensuais”. “Naquela época, uma moça de maiô já era uma loucura”, ri Parizzi, responsável pela seleção das obras de todos os dias e horários. “Eles (a Companhia Franco-Brasileira) me pegavam aqui, e eu ia para o Rio (de Janeiro). Todas as empresas produtoras americanas tinham os folhetos dos filmes que estavam lançando. Eu separava os folhetos por sala de cinema. Esse vai para o Central, esse para o Palace, esse para o Glória, e assim vai. Só de ver os folhetos, eu sabia para qual cinema ele iria”, lembra-se o filho de um mecânico italiano e de uma descendente de alemães, que hoje é avô de quatro netos, criou os três filhos que teve com Tereza trabalhando no Central.
“O que você acha, Waltencir?”. A pergunta, feita pelo diretor da empresa que gerenciava mais de uma dúzia de cinemas em Juiz de Fora e mais de uma centena Brasil afora, referia-se à possível troca das poltronas do Cine-Theatro Central, em madeira. “Se mudar as cadeiras vai esquentar muito. Não vai dar para assistir a um filme de três horas com outras três mil pessoas na sala”, respondeu o juiz-forano. A ideia da Companhia Franco-Brasileira, no entanto, era sofisticar ainda mais o espaço. A sugestão de Parizzi, portanto, foi estofar apenas os assentos. Mas daria trabalho, adiantou o funcionário. Dito e feito. “Teve que abrir uma oficina só para consertar as cadeiras”, conta ele, que, anos depois, numa viagem ao Rio de Janeiro, à sede da empresa, viu uma longa fila formada na Cinelândia, para uma sessão de filme de arte. Parizzi achou arriscado trazer a ideia para Juiz de Fora, mas a direção da Franco-Brasileira não arredou pé. A saída, então, foi mudar o escritório para o Cine Palace e, no lugar, fazer uma reforma para sediar o Cine Festival. A pequena sala, no segundo andar do Central, foi inaugurada com pompa e circunstância. “Não deu certo. Passado o alvoroço do início, começou a cair a renda”, lembra o gerente, que uma vez mais enxergou uma resolução: exibir os filmes que estavam saindo de cartaz, como uma segunda chance. Deu certo.
‘A ocupação é intensa’
O palco que no passado recebeu Procópio Teixeira, Oscarito, Grande Otelo, óperas e festivais, hoje serve mais às apresentações musicais. Imponente, não perde um elogio de quem assume seu palco. “A ocupação do teatro é muito intensa. Ano passado tivemos um número de espetáculos artísticos maior do que tivemos em 2017. O teatro entrou como parceiro de algumas produções, como o show de 89 anos e o show do Stanley Jordan e Dudu Lima, além do projeto Palco Central. Para este ano, até o momento, temos menos demanda do que esperávamos”, pontua o diretor Cacáudio, apontando que os editais de chamada pública e Luz da Terra receberam 49 projetos para serem executados até abril de 2020. Ainda, a demanda espontânea possibilita a ocupação das datas restantes. “Aluguel é uma fonte importante de renda para o teatro. No entanto, os recursos que chegam não ficam aqui, por que são depositados diretamente na conta da União, por meio de uma guia de recolhimento. Tem um número de convênio, e esse dinheiro retorna para a universidade. Por meio de um acordo com o reitor, esses recursos, quando possível, retornam ao teatro”, explica o gestor, apontando, ainda, para outro importante papel do gigante. “Tenho muito cuidado ao falar de sustentabilidade, porque esse é um teatro público, e temos uma função de estimular a produção artística local, por exemplo, e não podemos pensar no teatro só para obter lucro.”
*Colaborou o repórter Júlio Black
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