Cada fotógrafo faz a foto que merece. Walter Firmo, oito décadas, desde a metade da segunda já começava a fotografar com sua Rolleiflex, trazida pelo pai por navios mercantes, embrulhada para presente debutante. Em nosso encontro, no Anfiteatro João Carriço, Centro de Juiz de Fora, está de boné branco, tem a pele negra, o cabelo cinza, sem muita preocupação com a barba e bigode encaracolados, já bastante grisalhos, envolvendo o sorriso de caninos pungentes. Usa alianças de seu quarto casamento, uma relação “modernosa”, por ser à distância, com “a flor do Piauí”, como chama a namorada. Conta com precisão que foi inseminado no Irajá, e parido a 500 metros do Vasco da Gama, seu time, em São Cristóvão.
“Traduza-me. Mas, se possível, não”, disse Walter, buscando outra citação, mas achei essa tão boa quanto qualquer que seja a frase não encontrada. Foi a partir dos “nãos” que fui o conhecendo, nas contradições. “Eu não gosto de dizer o que foi melhor em minha vida. Pois enquanto eu viver eu quero fazer o melhor.” Não lhe interessa a foto, muito menos a viagem para a eternidade. “Sou jovem de alma, eu tenho 19 anos, eu sou mais jovem que você.” Walter dá aulas de fotografia, dissemina conhecimento para beber a juventude. “O que vai ser melhor para mim é o que eu vou fazer amanhã”, e, cotidianamente, enquanto dá sua primeira passada, reflete: “mais um dia em minha vida, eu espero que seja feliz e que dê tudo certo hoje”.
O fotógrafo da negritude nunca foi à África. “Eu quero ver o negro e quero me espelhar nele, sobre a felicidade de ser dessa cor. Na verdade dizem que o negro não tem cor, é a ausência das cores; é a única cor que é imbatível, ela não permite outra, ela é ela”, diz ele rememorando quando foi descrito pelo jornalista e pintor Mino Carta. Seu sonho futuro é conhecer o continente africano. Embora já tenha viajado o mundo por conta da fotografia, nunca pôs seus pés neste território.
Aos 14 anos, veja bem, um ano antes de sua primeira câmera, se tornou cantante. Se apresentava no “Clube do Guri”, programa da extinta Rádio Tupi, em auditório, com banda, violão de 7 cordas, ao lado de artistas que seguiram suas vidas como músicos. “Estava também no final de ser um guri, toda questão do homem estava nascendo comigo aos 14 anos.” Hoje não tem mais falsas modéstias, não há mais tempo para vaidades. Reconhece seu valor para o fotojornalismo e a fotografia artística, e está, neste momento, escrevendo um livro autobiográfico sobre o processo e a experiência de ser Walter Firmo.
“Depois que eu fui ficando mais idoso, eu comecei a me perguntar quem sou eu. E não é uma questão de vaidade, não, mas como eu estou em fim de vida, eu me analiso como um homem iluminado. Eu tenho uma boa iluminação de conseguir fazer com que as pessoas acreditem não só no meu trabalho, mas em mim, como homem, como ideário de vida. Eu poderia ser um malandro. Mas as pessoas não me vêem como isso.”
‘Minha droga são as cores que fotografo’
Mas, bom, ao meu ver, pode ser sim um malandro carioca, não que essa palavra seja de peso negativo, ele apenas é, assim como pode não ser também, depende do ponto de vista. Walter Firmo, em épocas de ainda mais repressão, nunca esperou tão de perto a loucura. O moralismo e o respeito com o outro são o cerne de sua vida, mas é galanteador à sua maneira. “A minha droga é a vida. A minha droga são as cores que eu fotografo, ‘cores de Almodóvar, cores Frida Khalo’. Cores de Walter Firmo”.
As poucas vezes que experimentou fumar maconha se pegou dormindo com o jazz do Coltrane tocando em sua cabeça. Mas guarda em sua vivacidade, algumas vontades. “Eu já pensei muitas vezes em colocar minha cabeça em uma lata de piche. Você imagina um latão daquela massa, e eu botar a minha cabeça no meio daquilo. Isso é um ato de loucura, porque eu vou ficar totalmente transtornado, pintado de preto. Isso me transformaria em um ser que eu poderia fazer de tudo em termos de experimentação.”
Mas por agora, o que lhe interessa é dormir menos, ao todo cinco horas de sono por noite, para poder viver e viajar mais. Mora na Tijuca (Rio), mas ama Tiradentes, Mariana, Sabará, Ouro Preto. Gosta das cidades barrocas, e sobretudo, de fotografá-las – além de uma boa cachaça mineira.
Asahi Pentax, Nikon, Leica, Rolleiflex, Hasselblad, Speed Graphic já passaram em seus olhos, mas não é um colecionador de máquinas, e sim de imagens. Contradizendo McLuhan, ao menos na fotografia, para Walter o meio não é a mensagem. “Quando você fotografa como antigamente ou como agora, no digital, é como se existissem dois cavalos disparados em paralelo, e como nos filmes de velho oeste americano, eu pulo para o outro e continuo a correr. Quem vai dar a direção sou eu. Quem vai trabalhar na questão do clique sou eu e não a máquina. A imagem que vai se traduzir poderia ser feita pelas duas, quem faz a imagem não é a máquina, é o homem, a máquina é apenas o meio.”
Atravessando do preto e branco para a cor em destaque saturado, Walter continua achando a luz de dias nublados sua preferida. “O preto e branco induz ao raciocínio, ao psicológico, celebra o cérebro. A cor é uma banda de música, é o coração, é um rompante. É o jorro. Essas são as diferenças que eu faço.”
As pessoas comuns são mais atraentes
Chora à toa, inclusive embaçando o visor da câmera enquanto fotografa. Gosta de gente, preferencialmente os comuns, humilhados e ofendidos. A primeira vez que se acabou em lágrimas enquanto fazia um registro foi nos seus primeiros anos como fotojornalista, em um desastre de choque de trens, corpos, morte, nada que combine com ele. Foi também a primeira vez que tomou cachaça, para se dopar após o trauma. “Chorar fotografando fica embaçado para os olhos de quem fotografa, mas para quem vê, não.”
Outro choro foi bastante singelo. “Uma menina, uma criança, com compostura de uma pintura, envolvida em agasalhos de pobretã, com sapatinhos de ir à missa. Ela estava tão delicadamente linda, que, quando a fotografei, eu chorei. A pobreza tem essas divindades de ser, de trabalhar com o simples. As pessoas que são aparentemente destituídas de nenhum valor me emocionam muito, porque elas são muito verdadeiras.”
Como fotojornalista, trabalhando com o real, sempre se permitiu criar. “Trabalhei a minha visão estética sobre as pessoas. Era como se eu fosse um homem ligado ao cinema, fazendo a fotografia, faltava só a claquete: ‘gravando, silêncio no estúdio!'” Colocou Pixinguinha sentado na cadeira de balanço, Clementina de Jesus recostada em uma árvore com as flores e o verde da grama, registrou Moreira da Silva enquanto uma criança levava uma “corbelha” de flores para ele. Paulinho da Viola, Dona Ivone Lara, e, principalmente, Cartola, com quem teve ainda mais tempo para capturar momentos íntimos, em casa.
“Imagina o Cartola ligando para mim e dizendo: ‘Waltinho, vem comer uma feijoada hoje aqui, a Zica está fazendo’. Nesse dia, eu falei, ‘posso levar a máquina?’ Ele falou: ‘pode levar o que você quiser!’ Então eu fiquei pertencendo à família dessas pessoas. Eu fotografei o Cartola durante 12 anos e tivemos uma amizade profissional. Eu queria fotografá-lo, e ele nunca disse não para mim.” Até mesmo João Cabral de Melo Neto cedeu a seus pedidos. “Tudo é como você se dirige a eles”, disse Walter sobre a personalidade reservada e mais “durona” do autor de “Vida e Morte Severina”.