Silêncio percorre entre as duas histórias, o não dito sobressai. O curta “Ainda é cedo”, de 17 minutos, da diretora Ana Cláudia Ferreira, bem como o longa “Fala comigo”, de 92 minutos, do diretor Felipe Sholl, começam com um silêncio interrompido de um som de celular. Essas duas produções foram escolhidas para a noite de abertura do Festival Primeiro Plano, que começa nesta segunda, 23, às 20h, no Cinemais Alameda.
Os dois filmes prezam por tempos de cenas construídas de forma semelhante à realidade – enquanto um cigarro é apagado, olha-se pela janela, acontece um jantar silenciosamente constrangedor e vive-se o trivial como nós o vivemos. Tanto Ângela (Karine Teles), do “Fala comigo”, quanto Mariana (Maíra Garrido), de “Ainda é cedo”, são mulheres que estão falando pouco e parecem cansadas.
A questão política das produções é sutil, talvez se torne mais político para quem causar algum incômodo. Em “Ainda é cedo”, Ana Cláudia Ferreira convocou para o teste de elenco apenas atrizes gordas, mostrando o corpo com naturalidade e beleza, Mariana está bem com ela mesma, embora a sociedade pareça não estar. “Fala comigo” toca em um afeto entre gerações diferentes que está fazendo bem aos dois. Ângela, 43, recentemente separou do marido e passa por um momento difícil, de vazio, e relaciona-se com Diogo (Tom Karabachian), 17, que está se preparando para prestar vestibular e se vê cada vez mais distante de seus pais, que têm um casamento frio e por um fio. Embora os dois tenham em comum a vontade de estudar música, o instigante da relação é justamente a diferença e o frescor que um traz para a vida do outro.
“O filme é subversivo à sua maneira. Ele coloca em questão o machismo, que eu não imaginei que fosse acontecer tão diretamente. Quando você tem um homem mais velho com uma mulher mais nova, todo mundo aceita fácil. Quando coloca uma mulher mais velha com um homem mais novo, eu encontrei muita resistência. Não imaginei que em 2017 isso fosse acontecer. Você tem uma família tradicional desintegrando, e a única possibilidade de felicidade é um casal improvável”
(Felipe Sholl)
“Fala comigo” vem de um roteiro escrito pela primeira vez em 2005 pelo Felipe Sholl, que naquela época não tinha intenção em dirigir. Mas o roteiro se tornou tão propriamente dele, com olhar pessoal, que sugeriram que Felipe mesmo assumisse o papel de diretor. Nesse intervalo de mais de dez anos, ele dirigiu dois curtas: o “Tá”, em 2007, e o “Gisela”, em 2011, além disso foi fazendo tratamentos no roteiro, até chegar a hora de dirigir seu primeiro longa. “Fala comigo” foi premiado como melhor filme do Festival do Rio 2016 e, em julho deste ano, entrou no circuito de cinemas comercial. Recentemente, o filme estreou no Netflix. Felipe ficou feliz com o Primeiro Plano de ter lhe convidado mesmo que o longa já tenha alcançado muitas telas, e também será júri das mostras competitivas.
Nuances de autobiografia
Para Ana Cláudia, “Ainda é cedo” é seu segundo curta como diretora. “A menina que colecionava estrelas” teve lançamento no último Festival Primeiro Plano, quando levou o prêmio de incentivo para a realização de um segundo trabalho. Característica sua também é de dirigir seu próprio roteiro. O curta é uma ficção com nuances de autobiografia, mesmo que interpretada por uma atriz. A autoralidade é tanta que tudo reflete muito a Ana, e, para quem a conhece pessoalmente, como eu, a semelhança entre Ana e Mariana é notória, embora tenham suas disparidades. Para o curta, ela recriou uma cena de um preconceito que ela mesma sofre em seu cotidiano e colocou esse fato na vida de Mariana.
O processo de criação de Ana Cláudia Ferreira está todo registrado em texto, ela foi escrevendo a atmosfera do que pensava, se preocupando com a beleza das cenas e a atmosfera que queria construir. Carol Caniato é a diretora de fotografia, montadora e editora, em uma equipe somente de mulheres em todas as funções, ela e Ana, conseguiram, juntas, unir referências estéticas que lhe agradavam. “A Cidade onde envelheço” (2016), da diretora Marília Rocha, e “Lost in translation (2003)”, de Sofia Coppola, são produções que lhe serviram de inspiração.
“O que faz essa personagem ficar nesse lugar?”, essa é a inquietação que o curta de Ana Cláudia pode provocar em quem assiste. “Nesse roteiro, eu fui pensando e colocando as cenas e os planos, e só depois fechei a narrativa. Ele segue lento no ritmo de cada ação a ser interpretada. Mariana não é uma personagem que faz acontecer um monte de coisas ao mesmo tempo em sua vida; ela só trabalha, toma um café, pega um ônibus, recebe uma amiga em casa”, explica a diretora. “Ainda é cedo” parece ter a intenção inicial de causar mais pela estética e a forma como foi montado, do que pelo próprio enredo. Contempla a rotina de uma mulher que vive sozinha em um apartamento, trabalhando de casa, invisível nesse estado, mas que ocupa seu apartamento como espaço de resistência – ali ela é protagonista.
Tanto os figurinos quanto algumas características da atriz se tornaram a personagem. Ana não conhecia nenhuma das duas atrizes antes do teste, nem Maíra, nem Carinna Arantes, que contracenou no curta. Para a cena de interação entre as duas ficar bastante real, a diretora contou a mesma história, porém com versões diferentes, para as atrizes e acabou criando uma situação real de desencontro nesse diálogo.
Foco nas personagens
O cerne das histórias de Felipe Sholl concentra-se nas personagens. “A personagem para mim é o centro de tudo. Eu começo a pensar na personagem, e mesmo as minhas decisões estéticas, no set, na edição, desde a posição de câmera até a captação de som e edição, eu penso como isso vai ajudar a transmitir o que a personagem está passando naquele momento”, explica o diretor e roteirista.
O filme tem muito dele, mas não é nada autobiográfico. Ele passa sua personalidade, suas histórias de vida e visão de mundo para o roteiro e para os próprios personagens, que acabam ganhando outra vida na etapa de gravação, ao encontrarem-se com os atores. Felipe fala que todos os personagens acabam refletindo um lado dele, principalmente o Diogo: “ele tem muito de como eu sinto e de como eu lido com o mundo”. No teste de elenco, porém, quando decidiu pelo ator Tom Karabachian, ele preferiu trazer seu lado solar e sorridente para o personagem, que acabou mudando bastante. “O Diogo, no roteiro, era um cara bem diferente, muito mais fechado, introspectivo, fazia música eletrônica no computador em seu quarto, não tocava violão. Ele era muito mais sombrio.”
Uma curiosidade legal é que a própria música “Tudo que a vida me der”, tocada no filme por Diogo, é do trabalho autoral, como músico, do ator. O mesmo acontece no curta “Ainda é cedo”, que possui apenas uma trilha. Ana Cláudia também optou por valorizar o trabalho autoral de uma musicista mineira e convidou Sara Braga para compor a trilha da última cena, que foi escrita pela diretora e roteirista em 2013.
Já Karine Teles, que fez “Riscado” (2010) e “Que horas ela volta?” (2016), foi a primeira pessoa a fazer uma leitura informal do roteiro de “Fala comigo”, em 2006. “Eu disse a ela que tinha feito uma leitura muito boa, mas que ela ainda era muito nova para o papel. Com as voltas que o mundo dá, 11 anos depois, fui gravar, e a atriz que eu tinha na cabeça para fazer não poderia filmar. A Karine ainda era um pouco nova, mas a gente a fez ser mais velha no filme”, conta Felipe, dizendo que os atores são parceiros criativos de seu filme, que possui também Denise Fraga e Emílio de Mello, interpretando os pais de Diogo.
Na segunda-feira, os ingressos para a sessão começam a ser distribuídos uma hora antes da abertura do festival. Além disso, os diretores Felipe Sholl e Ana Cláudia Ferreira vão estar acompanhados das atrizes Karine Teles e Maíra Garrido, respectivamente.
Primeiro Plano
Abertura nesta segunda (23), às 20h, com exibição do curta “Ainda é cedo” e do longa “Fala comigo”, na sala 1 do Cinemais Alameda (Rua Morais e Castro, 300). Distribuição dos ingressos no local, uma hora antes da sessão.