Neste domingo (22), a 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes chega ao seu terceiro dia. Sábado foi o primeiro dia de programação completa. E já a partir deste dia, foi possível começar a entender o panorama geral do cinema contemporâneo brasileiro; o que é, em prática, o cinema mutirão; bem como o trabalho que é o claro exemplo deste termo feito pela Rosza Filmes, em nome dos homenageados Ary Rosa e Glenda Nicácio. A partir de agora, começam a aparecer os nomes conhecidos por estas terras de cá: os realizadores que fizeram de Juiz de Fora lugar de criação, pesquisa, entendimento e, então, espaço fértil. E são nesses momentos de festivais que essa galera tem a oportunidade de levar o nome e a produção a outros lugares, sobretudo em contextos tão difíceis de financiamento tanto para fazer um filme quanto para distribui-lo.
Luís Rocha Melo é professor associado do Bacharelado em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Juiz de Fora. É, também, um realizador, pesquisador, escritor, inclusive tendo filme e livro sendo lançados nesta edição da mostra. Antes de falar sobre “O cangaceiro da moviola”, filme que faz sua pré-estreia nacional dentro Mostra Olhos Livres, e vai ser exibido nesta terça-feira (24), às 18h, no Cine-Tenda, com bate-papo na quarta (25), às 10h, no Cine-Teatro, Luís reforça o papel desses festivais para, também, possibilitar esse ato de assistir a filme no coletivo, em exibição público. E, além disso, aponta para uma outra percepção: “A produção audiovisual hoje é tão gigantesca que tende à invisibilidade, o que é paradoxal. Os festivais abrem janelas importantes, mas fazem parte de uma engrenagem que é bem mais complexa, e que diz respeito às condições concretas de difusão do audiovisual, o que no Brasil sempre foi algo complicado. Muito ainda precisa ser feito; apesar do digital e do streaming, isso que se chama de ‘mercado brasileiro’ ainda está longe de ser nosso”.
Uma saga
E em “O cangaceiro da moviola”, Luís, de certa forma, contribui nesse processo de entender o que é o cinema brasileiro, sobretudo na medida em que traz à tona Severino Dadá: um dos principais nomes da montagem brasileira sobretudo após os anos 1960. O documentário conta a história dele, contada por ele mesmo, que Luís define como um grande contador de histórias. Para além do montador, o filme conta com a participação especial de cineastas como Nelson Pereira dos Santos, Rosemberg Cariry, Adélia Sampaio, Luelane Corrêa e Octávio Bezerra: “O que completa o painel histórico e afetivo em torno da história de Dadá e da prática da montagem”, afirma Luís.
Luís alinha realização cinematográfica com pesquisa histórica. E, neste documentário, pontua certa afetividade já que é próximo do personagem principal, que conheceu por ser amigo do filho de Dadá, André Sampaio, no final dos anos 1990. Juntos, Luís e Dadá já fizeram uma série de realizações: “Fiz com o Dadá o roteiro do primeiro filme que ele dirigiu, ‘Geraldo José, o som sem barreira’ (2002), e o Dadá fez a montagem final de ‘O Galante rei da Boca’. E acabei tendo a felicidade e a honra de assinar com Severino Dadá a montagem do longa documental ‘Suíte Bahia, reencontro com Agnaldo Siri’ (2007), dirigido por Roman Stulbach, outro grande montador”. São esses os mestres de Luís. E é desse contato com eles, principalmente com Dadá, que parte o filme. “A ideia de fazer esse documentário surge por volta de 2004, data daí os primeiros registros que fiz para o filme. É uma saga!”
O interesse de Luís em Dadá surgiu, claro, por causa da montagem, depois de assistir ao filme “Nem tudo é verdade” (1986), de Rogério Sganzerla. “Esse filme me deixou atordoado, justamente pela inventividade da montagem.” E montar um filme de um grande montador é, para ele, uma responsabilidade e tanta. “Foi um dos desafios mais estimulantes, em termos de criação, que experimentei até hoje. Acho que ‘O Cangaceiro da Moviola’ foi o filme que mais tive trabalho em montar. O filme conta com muitas imagens de arquivo, foi um trabalho de pesquisa muito intenso. Tem cenas dos filmes que o Dadá montou, fotos de seu acervo pessoal e materiais de arquivo em imagem e som que contextualizam o momento histórico que o filme retrata.”
É por isso que “O cangaceiro da moviola” conta, também, a história do filme brasileiro: “Um montador, pela própria natureza do seu trabalho, passa por processos de criação muito diferentes entre si, participa da construção de uma variedade gigantesca de obras, desde filmes autorais a comerciais de publicidade, de filmes comerciais populares a obras que possuem grande ambição estética. Dadá tanto montou filmes de Nelson Pereira dos Santos quanto de Rogério Sganzerla. Participou de filmes produzidos no Beco da Cinelândia, voltados ao público mais popular, e do cinema cultural de caráter político, montando curtas e documentários produzidos na base da guerrilha. Quando a gente desloca o foco para a trajetória de um montador como Severino Dadá, toda a possibilidade de se contar a história do cinema brasileiro se reconfigura e se amplia, pois passamos a entendê-la a partir de um outro lugar de fala”.
Uma mineiridade
Luís foi professor de Julia Gama e Ariel Rezende na UFJF, quando eles cursavam cinema pelo Bacharelado Interdisciplinar. Foi, inclusive, pelo pátio do Instituto de Artes e Design, em um desses dias de aula, que Júlia teve uma ideia exposta à Ariel: fazer um curta metragem de um garoto que encontra o pai no dia de seu aniversário. “Ela disse isso, mas a gente seguiu o baile”, brinca Ariel. Na verdade, tempos depois essa ideia continuou guardada ali, na cabeça dele. Até que ele decidiu, finalmente, desenvolver. “E eu só disse ‘bora'”, brinca Júlia. Os dois contam que entraram fundo no processo de escrever um roteiro a quatro mãos e à distância, já que isso aconteceu em momento de pandemia. “A gente ficava horas no celular. Tinha vez que depois de muitas horas eu mandava uma mensagem para Júlia de madrugada com alguma ideia que tive só para não perder”, assume Ariel. “Foi mesmo uma imersão na história”, assume Júlia. Os dois passaram quatro meses só no roteiro: “Um tempo que compensou”, confessa Ariel.
A história do menino foi expandindo, ganhando novas formas, até se transformar em “Pivete”: filme que vai ser exibido na Mostra de Cinema de Tiradentes na próxima sexta-feira (27), no Cine-Teatro, às 19h, dentro da Mostra Regional. Júlia e Ariel decidiram inscrever o roteiro no laboratório do Primeiro Plano, em 2021, que tinha mentoria com alguns profissionais da área que ajudariam a desenrolar a história e deixar tudo pronto para a filmagem. “Foi uma consultoria que os mentores deram ideias para gente, opinaram sobre as cenas. E os colegas que participaram também. A gente já era próximo de vários ali. Isso fez toda a diferença nesse processo de ‘Pivete'”, explica Júlia. Inclusive, um dos projetos inscritos no laboratório ganharia um financiamento para a gravação, fruto ainda da Lei de Incentivo Aldir Blanc. “Pivete” foi o que ganhou. Eles brincam que esperavam, mas nem tanto. Só assim entenderam que existia, sim, uma história a ser contada, e que ela era muito forte.
“Pivete” segue a ideia-primeira: a história de um menino que foi encontrar o pai no dia do aniversário. Mas é o caminho que interessa, principalmente. Pedro precisa pegar um ônibus para ir até o pai. Dentro dele, no entanto, uma outra personagem é crucial para que o menino entenda mais sobre a vida, a mineiridade, inclusive sobre colonialismo – tudo isso de maneira lúdica, transpassada através de uma animação que faz com que o filme seja mais leve, abordando um tema que, quando se vê, é profundo. O curta foi gravado em três dias: uma imersão que contou com o apoio de uma equipe que foi quase uma família. Tanto que Júlia brinca que a imersão foi também familiar, e isso foi importante para fazer com que “Pivete” saísse do papel dessa maneira. E em realidades independentes, muitos percalços acabam batendo de frente com as ideias e, nessa produção, não foi diferente. “Mas tudo confluiu para que o ‘Pivete’ desse certo”, reconhece Ariel. Esse trabalho em conjunto tudo tem a ver com o tema da mostra, que vem para confirmar que o cinema é um trabalho coletivo, e que é esse o caminho a se seguir: junto.
É o primeiro filme de Julia e o segundo de Ariel como diretores. E, para eles, significa muito estrear em um dos maiores festivais de cinema do Brasil, ainda mais levando em conta esse trabalho que a Mostra de Tiradentes exerce de mapear os realizadores. “E a gente entrou pela Mostra Regional, ou seja, tem uma mineiridade que a gente quis passar com os personagens, mostrando os atravessamentos de Minas Gerais neles”, pontua Júlia.
Uma forma de olhar
Apesar de ter sido rodado em Juiz de Fora, Mariana Stolf teve como base sua história em Ubatuba (SP), cidade onde cresceu, para criar “Trancinhas”: curta que vai ser exibido no sábado (28), às 15h, no Cine-Tenda, dentro da Sessão Jovem. O filme, que teve sua pré-estreia em Juiz de Fora em julho do ano passado, tem como pano de fundo as transformações da adolescência: transformações essas sentidas por Mariana que, quando mais nova, convivia com uma espécie de “gangue” de meninas de sua idade que arrumam confusão constantemente, e elas usavam trancinhas. Está aí, pois, o barato da ficção: a mistura entre verdade e realidade que garantem a possibilidade de contar novas histórias.
O curta, de certa forma, trata ainda dos problemas que as meninas enfrentam em se adequar a uma realidade normativa, sobretudo nessa fase da adolescência. Mas, além disso, Mariana consegue expor as circunstâncias de uma mãe solteira que, no filme, também usa trancinhas. “A mãe, como qualquer adulto, expressa suas próprias rebeldias, incompreendidas e desaprovadas pela filha. Enquanto a filha, em uma das fases mais confusas da vida, que é a adolescência, sente-se rejeitada pela mãe, sendo incapaz de compreender as diversas formas possíveis de expressão do cuidado materno”, explica a diretora. E participar da Sessão Jovem, de acordo com ela, tem tudo a ver com o que foi pensado inicialmente para o curta: “Esse recorte é importante para o filme, pois, para além do público no geral, quando criamos o projeto, pensamos justamente no público-alvo juvenil, afinal a trama diz sobre essa fase da vida, passando sobre questões de bullying, relações interpessoais e de identidade”.
Estar, agora, no festival, para Mariana, é uma mistura de realização com frio na barriga. “Para além da minha alegria e gratificação pessoal, meus professores sempre disseram que você faz um filme para ser visto. Quando ouvi isso enquanto aluna, pensei: ‘nossa, que pretensão’. Olhei para mim mesma e ri, né, porque é verdade”, brinca. “‘Trancinhas’ rodar na Mostra de CInema de Tiradentes, um dos festivais mais importantes do cinema brasileiro, é muito significativo, pois ele nasceu de uma experimentação, de um processo muito pessoal, que eu consegui transformar em uma experiência coletiva, tanto da equipe, do elenco, quanto de quem vai assisti-lo. Dá um frio na barriga entender que cada espectador vai ter um entendimento próprio do filme, e que ele pode se transformar totalmente. Mas é muito gratificante, pois é nesse momento, através das trocas, que a gente vai aprendendo e construindo novos olhares”, completa.
“Trancinhas” também é fruto de uma lei de incentivo à cultura: uma realidade que abarca grande parte dos filmes que fazem parte da mostra como um todo, como afirma Raquel Hallak, diretora-geral do festival. O que mostra, por consequência, a importância desse tipo de lei que contribui no cenário do cinema brasileiro e na construção de uma identidade que só os filmes conseguem expor.