Britas são pequenos fragmento de pedra, quebrada manual ou mecanicamente, bastante utilizadas na construção civil, no calçamento de rodovias e na pavimentação de ferrovias. Também são chão a representar ruínas, metonímia para rochas e ruído para o incômodo. Em “As crianças”, peça em cartaz no Teatro Poeira, no Rio de Janeiro, até o dia 31 de março, as britas são presença incontornável. E são representação da divergência com a montagem inglesa do espetáculo, indicado ao Tony em 2018. Enquanto a encenação europeia aproveitou-se da verossimilhança sugerida pelo texto da londrina Lucy Kirkwood, com a cenografia realística de uma cozinha, o diretor Rodrigo Portella fez sua leitura poética e profunda para a apresentação brasileira, construindo um palco com uma tonelada de britas e sobre eles móveis toscos feitos em madeira de reflorestamento.
“Em um primeiro momento me veio a ideia de construir uma espécie de playground. As crianças são os próprios personagens e também as próximas gerações. Queria evocar esse lugar do infantil, do lúdico, do jogo. A princípio pensei em areia. Depois, eu e a Júlia (Deccache), que divide a cenografia comigo, pensamos que poderíamos traduzir a erosão daquele lugar e daquelas pessoas nesses fragmentos de pedra. O resultado é bem legal porque tem uma sonoridade e evoca muita coisa para o espectador. Ele transcende o realismo e propõe outras camadas de leitura”, comenta Portella, invariavelmente aplaudido nos espetáculos pela universalidade que conferiu ao texto sobre um casal de físicos aposentados que recebem a visita de uma velha amiga física em sua residência em uma região inóspita, assolada por um acidente nuclear. Ao resgatarem a amizade de 40 anos, o trio também discute sobre a responsabilidade que tiveram para um imenso cenário de devastação.
Sensível, a trama que envolve os sexagenários lança olhares para passado e futuro, apontando a potência de um presente comprometido. “A minha geração aprendeu, e as que vieram antes também, que descartar o lixo era se livrar, apenas. Tínhamos a ideia de que ao jogar algo na lixeira ou no vaso estaríamos nos livrando para sempre. E não é assim. Usamos água e outros recursos naturais sem nos darmos conta de que eles são finitos. Não nos damos conta de que tem alguém perdendo, e é o nosso planeta. O texto faz uma reflexão: daqui a pouco tempo todos estaremos mortos, e o que deixamos para as futuras gerações?”, sugere o diretor, convidado pelos atores Analu Prestes e Mario Borges (que interpretam o casal) para a nova empreitada. Para completar o trio em cena, pensaram em Kelzy Ecard, que atuou com Portella em “Tom na fazenda”, no papel que Analu substituiu durante uma temporada. Com a agenda cheia de apresentações de “Tom na fazenda”, Kelzy não pode. Então, cogitaram, a carioca radicada paulista Denise Weinberg, que também precisou recusar o convite.
Uma amizade de 40 anos
Entre conversas, Rodrigo Portella citou o nome de uma atriz com a qual havia esbarrado rapidamente, mas cujo trabalho lhe encantava: Stela Freitas. Imediatamente Analu e Mario se emocionaram, afinal, Stela também integrou o elenco da histórica montagem de “Aurora da minha vida”, de Naum Alves de Sousa, em 1981. “As crianças”, portanto, encena e encarna uma amizade de 40 anos. “O grande barato desse encontro foi o movimento de troca que aconteceu. A história do teatro que eles fizeram me foi contada pelos livros, na faculdade. Eles trabalharam com grandes diretores e diretoras, como Gabriel Villela, Bia Lessa, Zé Celso Martinez, Aderbal Freire-Filho, os maiores do último meio século no país. Ao mesmo tempo eles estavam muito disponíveis para o que eu trazia, que vem de um teatro um pouco menos convencional”, comenta.
Não somente o texto contemporâneo como também as próprias trajetórias de Analu, Mario e Stela justificavam a entrega a uma forma ousada de fazer teatral. Apesar de terem passagem pela TV (Stela principalmente) e pelo cinema, os três são, sobretudo, filhos do teatro moderno brasileiro. “Eles trabalharam com Zé Celso, romperam todas as barreiras. Transgrediram tudo o que podiam. O que eu trouxe, talvez, foi a possibilidade de juntarem pontas, do teatro do texto, da tradição, com um teatro mais evocativo. Nesse lugar nos encontramos. O bacana é que os três têm um compromisso com a verdade, com uma relação honesta com o público, sem truques, sem fingimentos”, aponta Portella, um dos mais prestigiados e premiados diretores de sua geração. A verdade, explica, não tem a ver com o documental, mas com um não-alheamento da cena. “Um artista não precisa viver tudo para falar sobre tudo. Não preciso morrer para falar sobre a morte. É uma perspectiva. Fazer arte tem a ver com sensibilidade e uma capacidade de transcendência, ir além de onde pode ir.”
Os gestos de reparar e reparar-se
Demasiadamente humanos, os personagens de “As crianças” não permitem que o cenário e assunto da peça, as usinas nucleares, afastem o espectador brasileiro do texto. “Nós só temos duas usinas nucleares no país, nossa energia vem mais de hidrelétricas, que também é uma forma de produção de energia muito predatória. Mas a energia nuclear é considerada uma energia limpa. Se tudo der certo, ela não causa danos ao meio ambiente, não causa custos. Mas se alguma coisa dá errado, como foi o caso em Fukushima, inspiração para esse texto, temos um grande problema, com pessoas e ambiente contaminados. Não vivemos isso como o europeu. De toda forma, esse uso é uma questão para a gente”, comenta Rodrigo Portella, que potencializou a metáfora sugerida na obra. “O acidente nuclear, que é também um acidente ambiental, é uma representação metafórica dos diversos acidentes que acontecem com a gente durante a vida. Passamos por diversas catástrofes internas, erosões, e tentamos continuar. A peça é um inventário de perdas e danos. São três personagens próximos da morte passando a limpo tudo o que viveram juntos.”
Escrito em 2016, quando sua autora tinha apenas 32 anos, o texto, segundo Portella, usa do bom humor para tratar de complexos sentimentos. “A peça me encanta e me emociona em todas as sessões e ensaios. Para mim ela fala de reparação. Tem a ver com isso, porque eles se encontram depois de tantos anos para passar a limpo suas histórias, memórias, interessados em reparar o dano que, como cientistas nucleares, causaram na construção dessa usina. O processo de reparação está no íntimo e em uma questão macroecológica dos personagens”, diz. “Eles têm algo de jovial, apesar de estarem todos beirando 70 anos. Há um vigor que vem dessa autora agora com 35 anos. Talvez, se fosse uma pessoa de 70 escrevendo sobre essas pessoas, passaria por outro lugar, trazendo muito do cansaço ou do esgotamento, uma certa dureza. Ela fala desses personagens com muita poesia e lirismo”, avalia o diretor.
‘Nunca senti tanto medo’
Já apontada pela crítica especializada como uma das melhores produções do ano que se inicia, “As crianças” retoma em grande medida o espetáculo que mais visibilidade rendeu a Rodrigo Portella, natural de Três Rios e bastante influente em Juiz de Fora, onde fez montagens prestigiadas, como a recente “Floriano Parte Baixa”. Das comparações, no entanto, Portella tenta se desvencilhar. “Isso gera uma expectativa enorme, como se eu tivesse sempre que corresponder. Uma vez ouvi alguém falando sobre como o sucesso é capaz de te apresentar ao paraíso e ao inferno ao mesmo tempo. Uma coisa que tenho tentado fazer é me recriar, me experimentar. Tanto que depois do ‘Tom na fazenda’ fui dirigir ‘Insetos’, com a Cia dos Atores. Depois teve o ‘Nerium Park’, uma coisa meio noir, meio suspense. Agora, ‘As crianças’ tem um pouco a ver com o ‘Tom’, por conta da situação limite desses personagens”, comenta ele, que em abril estreia “Versão Demo”, solo do juiz-forano Tairone Vale. Meses depois, em julho, chega à Rede Globo a minissérie “Aruanas”, para a qual prestou assessoria de interpretação no set de filmagem.
“Também estou fazendo mestrado em teatro e flertando com algumas produções internacionais. Tenho muita vontade de fazer carreira fora do Brasil. Estou estudando possibilidades”, indica o diretor, que acabou de ter cancelados projetos aprovados em editais estatais, mas segue em cartaz com “Tom na fazenda”. “A peça tem apresentações marcadas até setembro de 2020, incluindo Canadá, Portugal, Bélgica, em São Paulo o ano inteiro. As perspectivas são boas, apesar de tudo. Mas a qualquer momento tudo pode cair tão rápido. Nunca senti tanto medo como senti agora”, afirma ele, para logo concluir: “O teatro que faço não é agressivo, não bota a faca no pescoço. De alguma maneira tento chegar no fundo das pessoas e das questões por uma via indireta. Faço um jogo meio sinuoso. ‘As crianças’ tem críticas contundentes sobre a forma como pensamos o meio ambiente, que vai de encontro ao que discutimos no atual governo. Tenho a impressão de que quem vai sofrer mais neste momento são os performers, pessoas que fazem trabalhos mais transgressores, mais agressivos. Eu não tenho esse dom e esse tom em meu trabalho. O que acho é que nós, artistas, precisamos fazer um movimento de resistência. Apesar de o mundo todo passar por uma onda conservadora, a arte é o que se opõe a isso.”
AS CRIANÇAS
Apresentações de quinta a sábado, às 21h, e aos domingos, às 19h, no Teatro Poeira (Rua São João Batista 104 – Botafogo – Rio de Janeiro). Até 31 de março.
Leia mais:
Confira a crítica de “As crianças” segundo a crítica e professora Tânia Brandão
Acesse a página do Teatro Poeira e conheça o espaço onde a peça está em cartaz