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Adélia Sampaio: como se mantém atual a voz da primeira mulher negra do país a dirigir um longa

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Reconhecida como importante voz dos direitos humanos no cinema brasileiro, Adélia Sampaio também atual como diretora de produção em mais de 40 filmes. (Foto: Acervo pessoal)

“Eu quero deixar bem claro que os insultos não aderem a minha pele. Não se aprofundam no meu sangue. Eu sou uma mulher assumida.” A frase salta da boca de Fernanda diante de um advogado que a acusa de ser um “câncer que deve ser extirpado da família cristã”. Fernanda é ré no processo pela morte de sua companheira, Sueli, que, na verdade, se joga da janela. No tribunal, no entanto, o que está sendo condenado é o amor de duas mulheres. “Foi uma pedrada”, define Adélia Sampaio, a primeira mulher negra a dirigir um longa-metragem no Brasil, “Amor maldito”, que em 1984 levou para a telona o julgamento com base no real.

Mesmo que o preconceito em 2020 soe tal qual o de 1984, “Amor maldito” encontrou um novo público décadas depois, sensível às demandas por inclusão e pelos direitos humanos. “Tem uma geração que começa a ver as coisas de outra forma. A questão da negritude hoje é muito forte. A percepção que os jovens têm hoje me encanta. O que questionei e programei no set não passa desapercebido para eles. Lá atrás passou. Agora, é diferente. Estou vivendo para ver isso”, emociona-se a cineasta de 76 anos, em entrevista por telefone à Tribuna, dois dias antes de participar, nesta quarta-feira (21), às 19h, de uma live sobre sua trajetória. Com mediação da cineasta e pesquisadora Karina Orquídia, o evento virtual acontece na conta do YouTube do Museu de Arte Murilo Mendes, dentro do projeto Cinemamm.

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“Para mim é muito assustador que o filme seja tão atual”, lamenta Adélia, que também viveu para assistir a si mesma sentada num sofá com os três netos vendo “Amor maldito”. Ao longo de 2019, a artista conta ter viajado para diferentes cantos do país, encontrado plateias lotadas e encantadas com a contemporaneidade do discurso da produção protagonizada por Monique Lafond e com um ainda jovem ator Emiliano Queiroz na pele de um pastor. “É muito gratificante saber que tudo o que sofri valeu a pena”, pontua a cineasta, que encarou o desafio de estrear em longa mesmo com tantas vozes dissonantes ao seu redor. “Todo mundo foi contra”, recorda-se Adélia. “Eu vou fazer”, assegurou a todos.

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‘Tudo o que está dito é real’
Com dois outros projetos realizados com financiamento da Embrafilme, Adélia estava apta a receber um novo, mas teve como resposta a seu pedido uma carta do Governo afirmando não estar interessado em “financiar pornografia de mulher”. Não teve negociação. Diferente da forma como ocorrera com o filme anterior, em que assinava como diretora de produção e previa a contratação de atores negros para 70% do elenco. “Fui chamada lá e ouvi que ‘preto não vende!'”, recorda-se a inquieta mulher que retrucou citando o sucesso de “Xica da Silva”, de 1976, e ameaçou denunciar o caso para a imprensa. Naquela época, o Governo voltou atrás, ainda que liberando um orçamento menor do que o esperado. Com o roteiro de “Amor maldito”, no entanto, não houve conversa e Adélia rodou mesmo sem a Embrafilme.

Cena de “Amor maldito”, filme de 1984, ainda hoje atual ao mostrar o debate moral que se sobrepõe à discussão jurídica. (Reprodução)

Para a cineasta – e depois se confirmou que para o público e para a sociedade, também -, havia uma relevância e uma urgência em retratar as desigualdades da Justiça brasileira. “O filme reproduz o que aconteceu nos autos. Foi uma conquista do José Louzeiro, que, como repórter de polícia, e por ter uma relação muito boa com o judiciário, conseguiu para a gente os autos do processo. Tudo o que está dito é real”, destaca Adélia, num discurso ainda hoje indignado, contrário à atuação de Sérgio Camargo à frente da Fundação Cultural Palmares atualmente.

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Cineasta travestida de telefonista
Aos 13 anos, convidada pela irmã, que trabalhava numa distribuidora de filmes russos, Adélia entrou pela primeira vez numa sala de cinema. “Eu estava muito assustada, porque tenho horror de escuro, mas tinha ela segurando a minha mão. Quando abriu a tela, vi uma coisa fantástica: a tela iluminada”, recorda-se ela do dia em que assistiu a “Ivan, o terrível”, épico de Serguei Eisenstein. “Olhei para a minha irmã e disse: vou fazer isso!”, conta a mulher que, anos depois, viu num jornal o anúncio da oferta de uma vaga para telefonista numa empresa cinematográfica que reunia os maiores nomes do Cinema Novo. Foi contratada. O desejo de conhecer um set, surgido diante de “Ivan, o terrível” se realizava. E Adélia queria mais, ansiava participar.

Adélia em registro num set de filmagem, sonho despertado ao assistir “Ivan, o terrível” quando entrou, pela primeira vez, numa sala de cinema. (Foto: Acervo pessoal)

“Tive o prazer inenarrável de conviver com os malucos e com os bons. O Cinema Novo era tudo, de Glauber (Rocha) a Walter Lima. Tive uma relação muito querida com eles. E jamais falei que gostaria de dirigir um filme. Naquela época, mulher num set era uma coisa muito séria”, comenta, lembrando da presença feminina sempre restrita às funções de continuísta ou claquetista. Foi, então, que decidiu cursar continuidade em cinema e, assim, chegou a um set. “O Cinema Novo era muito do ‘pires na mão’. Quem estava disponível, queria fazer e podia fazer, abdicava-se. Eu estava sempre à disposição”, narra a cineasta. Adélia fez amizade com assistentes de direção e começou a reunir pontas de rolos de filmes. Juntava o material, guardava na geladeira e acabou filmando, em 1979, o curta-metragem “Denúncia vazia”, sobre um casal de idosos que decide se suicidar ao receber um aviso de despejo.

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Adélia rompia, então, não apenas o preconceito de gênero, mas também de raça, por ser uma mulher negra num ambiente dominado por homens brancos. Os negros, conta, ocupavam os sets de filmagens, mas em posições que exigiam força física e inexistiam nas funções intelectuais. Como diretora de produção, então, Adélia demonstrava empatia e conseguia êxito em todas as suas empreitadas. Assinou mais de 40 direções de produção ao longo da carreira. “Fiz isso tudo sobrevivendo. Tinha dois filhos para criar e um marido preso político. Tive que correr atrás, fazendo algo que me desse uma grana. E direção de produção me viabilizava”, pontua ela, que costumava fazer uma dobradinha com a irmã, Eliana Cobett, primeira produtora executiva de relevo no país.

Hoje aos 76, Adélia mantém projetos, como o de um longa sobre famílias de presos políticos da ditadura. (Foto: Acervo pessoal)

Cinema é denúncia, o resto é detalhe barroco
Adélia Sampaio viu o público se transformar, ganhando em consciência; os espaços de exibição se alterarem, saindo das ruas e entrando nos shoppings centers; a política pública audiovisual se modificar, com o sucateamento da Embrafilme nos anos 1990, um posterior fortalecimento e o atual cenário de caos; e o cinema nacional mudar, com novas temáticas e frentes estéticas. “Agora tem uma meninada fazendo coisas interessantes. Tenho assistido muitos trabalhos bons, inclusive o de uma cineasta novinha, a Yasmin Thayná. Incrível, ela! Tem também uma geração meio perdida, sem saber onde atacar. Acredito no cinema como denúncia. Em meu cinema, todo ele, está no YouTube para quem quiser assistir (exceto três curtas-metragens cujos originais se perderam na cinemateca carioca), estou sempre denunciando alguma coisa. Para mim, cinema é isso. O resto é um detalhe meramente barroco”, define Adélia, cujo último trabalho foi sobre sua geração na década de 1960. No próximo, espera retratar, num longa-metragem, a trajetória de famílias de presos políticos em 1968. “Tenho um projeto pronto. E se não bater a caçoleta até lá, vou fazer esse filme”, diz, resignada, obstinada, decidida e, sobretudo, política.

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