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Rodrigo Aragão exibe “O cemitério das almas perdidas” no Festival de Tiradentes

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Corrompido pelos poderes demoníacos, Cipriano (Renato Chocair, ao centro) leva o terror a um pedaço do Brasil colonial (Foto: Divulgação)

O cinema nacional possui tradição de décadas nos gêneros de fantasia e terror, reconhecida até mesmo no exterior, mas que muitas vezes esbarra nas dificuldades técnicas resultantes do orçamento exíguo, além da dificuldade de distribuição, apesar do sucesso que tantas franquias estrangeiras obtêm por aqui. Quando há dinheiro, entretanto, o resultado são produções como “O cemitério das almas perdidas”, de Rodrigo Aragão, selecionado para a 24ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, que este ano acontece no formato on-line devido à pandemia. A exibição será na madrugada de sábado (23) para domingo (24), na Sessão da Meia-Noite, quando também será exibido o longa “Skull: a máscara de Anhangá”, de Armando Fonseca e Kapel Furman.

O longa de Aragão, a princípio, teria sua estreia comercial no ano passado, mas a Covid-19 adiou os planos do cineasta, que então tem rodado o circuito de festivais. A primeira exibição de “O cemitério das almas perdidas” foi em setembro, no Cinefantasy, tendo participado de mais de dez festivais desde então – um deles foi o Mórbido, no México, quando teve exibição no formato drive-in, e será o único participante brasileiro no Fantasporto, de Portugal, que acontece em fevereiro.

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No caso do Festival de Tiradentes, esta será a segunda vez que Rodrigo tem uma produção selecionada para o evento, fato muito comemorado por ele. “Acredito que o terror é um gênero muito popular, e meu principal objetivo é fazer terror popular brasileiro. Faço questão que meus filmes tenham ritmo fluido, fácil compreensão, e ter uma janela como Tiradentes, para mim, é uma vitória”, anima-se, lembrando que já havia participado do festival em 2015, com “Fábulas negras”, coleção de histórias curtas e que teve na codireção ninguém menos que José Mojica Marins, o Zé do Caixão, morto em fevereiro de 2020. “Foi uma sessão maravilhosa, com sala lotada, e o público se divertiu muito. Só tenho lembranças maravilhosas de Tiradentes e adoraria estar exibindo lá novamente.”

Terror em dois séculos

A trama de “O cemitério das almas perdidas” tem início séculos atrás. Um jesuíta é corrompido pelo Livro Negro de Cipriano e consegue reunir um grupo de seguidores durante a viagem para o Brasil colonial. Chegando aqui, iniciam um reinado de terror que extermina a população indígena local e só é interrompido quando eles são amaldiçoados e obrigados a ficar confinados entre o cemitério e uma igreja em ruínas. Muito tempo depois, eles conseguem que a população de um vilarejo entregue a eles, em toda lua cheia, um sacrifício, e é então que a história chega nos dias atuais, quando uma trupe circense é a escolhida para a carnificina das criaturas corrompidas pelas forças demoníacas.

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Apesar de ser o sexto longa do diretor – que ainda tem mais cinco curtas-metragens no currículo, mais dezenas de prêmios em festivais -, o roteiro de “O cemitério das almas perdidas” tem quase 20 anos, com o primeiro esboço escrito em 2002. “Ele ficou na gaveta por muito tempo, pois sabia que precisava de um orçamento, então precisei fazer outros cinco longas para me sentir preparado”, explica. Depois de tentar a aprovação em vários editais, ele conseguiu recursos da Secretaria de Cultura do Estado do Espírito Santo através do Funcultura. Com orçamento de R$ 2,1 milhões, a produção foi filmada em 2018, na cidade capixaba de Guarapari.

Graças a esse apoio, Rodrigo Aragão pôde pela primeira vez fazer um filme de estúdio, com apenas 20% das filmagens em locação. “Por trabalhar com filmes de baixo orçamento, sempre buscava locações naturais para agregar valor aos filmes. Como o ‘Cemitério’ é um filme épico, com cenários característicos, precisamos passar por alguns editais até receber apoio oficial para um filme de gênero. Foram quatro meses de construção de cenários, de preparação de equipe; é um filme capixaba que tem o interesse de fortalecer o polo capixaba, preparando uma equipe local”, destaca.

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“O cemitério das almas perdidas” critica a violência da colonização portuguesa no que viria a se tornar o Espírito Santo (Foto: Divulgação)

Inspiração na infância e crítica à colonização

Rodrigo Aragão conta que o Livro de Cipriano já estava presente em alguns de seus filmes anteriores, mas que “O cemitério das almas perdidas” pode ser considerado o início do universo onde seus filmes se passam. Fã de cinema fantástico e de terror, seu interesse é fazer produções com lendas que tenham a cara de Guarapari, onde nasceu. “Na minha infância, no bairro onde morava, meus amigos diziam que um vizinho tinha o Livro de Cipriano em casa, e as crianças tinham medo de passar pelo quintal dele. Esse medo sempre me causou interesse. Quando tive contato com o livro, vi que seria uma ótima coisa para ter num filme”, explica. A história, todavia, não se resume à lenda do livro, acrescentando críticas ao colonialismo português, à exploração e ao massacre dos índios que viviam no que viria a ser o Espírito Santo.

“O combustível para o roteiro talvez seja a própria história do Espírito Santo, que teve uma colonização extremamente violenta, pois era a ‘muralha verde’ para proteger os tesouros de Minas Gerais. Era um estado que não deveria prosperar, para onde eram enviados os bandidos, os condenados”, pontua. “O filme é uma alegoria sobre a colonização do estado, e é atual porque as mesmas mazelas do passado continuam extremamente presentes na sociedade atual. É interessante ver que a história se passa em dois tempos, mas as mazelas são as mesmas.”

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“Filme para o cinema”

Com pouco mais de 90 minutos de duração, é possível ver na tela todo o investimento feito para o longa, como a construção dos cenários, a fotografia, os efeitos práticos, trilha sonora, edição de som e os litros de sangue que brotam na tela. “O orçamento nos traz uma dignidade na produção. A grande dificuldade em filmes de pouco orçamento é que você acumula muitas funções, e às vezes a estrutura não te permite chegar aonde precisa. Com o ‘Cemitério’, estávamos preocupados que o valor gasto estivesse na tela, ainda mais que essa deve ter sido a maior produção já feita no estado, mas um valor ridículo para o mercado internacional. Acho que isso mostra que o esforço valeu a pena, é um filme que entra em festivais como o Fantasporto competindo com produções maiores”, defende Aragão.

Ao mesmo tempo, ele lamenta que tamanho investimento não tenha ganhado as salas de cinema, ainda que veja o lado positivo dos festivais on-line. “Precisamos nos adaptar a esse momento único, mesmo não sendo fácil. É muito frustrante, por um lado, porque esse é o meu maior projeto, o primeiro realmente feito para salas de cinema, que teve som preparado para o cinema, e não tivemos a oportunidade de ver no cinema, o que é frustrante. Por outro, (os festivais on-line) democratizaram o público, pois festivais têm público muito restrito, com salas pequenas, e no on-line pessoas de todo o brasil podem assistir, o que é interessante. O que mais pesou em decidir exibir o filme ainda em 2020 foi o fato de as pessoas, mais que nunca, precisarem de entretenimento. O cinema de fantasia tem essa função, que para mim é importante, de tirar pessoa de nossa realidade por um momento.”

Espaço para o terror “made in Brazil”

O cinema de terror brasileiro está presente há décadas, mas quase sempre em posição periférica em relação a outros gêneros produzidos por aqui. Tendo iniciado as gravações de seu primeiro longa, “Mangue negro”, em 2005, para lançá-lo apenas três anos depois, Rodrigo Aragão acredita que o panorama mudou – e muito.

“O ano de 2008 foi muito importante, porque o Mojica estava lançando seu último filme, ‘Encarnação do demônio’, que demorou 30 anos para ser lançado, e também foi lançado o filme de zumbi ‘Capital dos mortos’. Foram apenas três filmes de terror, e quando falava que estava fazendo filme desse gênero, ouvia que não se fazia filme de terror no Brasil, só o Mojica. E em 2018 foram 37 longas-metragens feitos, o que mostra um crescimento inacreditável”, argumenta.

“Agora, o mercado inteiro tem que enfrentar um novo desafio, que é a pandemia, além do desmonte cultural no Brasil”, reflete o diretor. “Mas acredito que, como muitos personagens de filmes de terror, o cinema nacional vai ressurgir, e o terror vai seguir fazendo parte do cinema brasileiro, pois é muito amado pelo público, que em sua maioria ainda não descobriu o terror nacional. Acho que isso vai acontecer com o tempo, temos realizadores que são pessoas inventivas e vão encontrar novos meios para produzir de forma independente. Por isso, a seleção para um festival como o de Tiradentes é muito importante.”

Enquanto “O cemitério das almas perdidas” não pode entrar no circuito comercial de cinemas, Rodrigo Aragão segue com outros planos. Um deles é para a internet. “Estou me preparado para fazer a websérie ‘Assombrações’, sobre lendas brasileiras, os chamados ‘causos’, que é um grande desafio por fazer com orçamento pequeno e numa realidade pandêmica. As filmagens devem começar em fevereiro, com todos os cuidados, e deve estar ainda no final do mesmo mês no meu canal no YouTube, o ‘Monstrólogo’, apelido que ganhei do lendário Pedro de Lara.”

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