Nem mesmo a ficção daria conta de representar os dias que correm. Nos quatro cantos tornou-se frequente a afirmação de que o real cruzou uma fronteira de criatividade desde a descoberta do coronavírus e com o alastramento da pandemia pelo mundo. Apostando na certeza do universo ilimitado da ficção e como ela possibilita a construção de novas realidades, a coletânea “Beijo sem máscara”, e-book que chega à plataforma Amazon nesta quinta (21), reúne 16 contos e outros 16 minicontos de autores de diferentes pontos do Brasil, numa diversidade que busca também a variedade de cenários que a crise sanitária provocou país afora. “Temos participantes do Amazonas, Bahia, Ceará, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Mato Grosso. Também procuramos trazer um equilíbrio de autoras e autores, brancos e negros. Tudo isso trouxe uma pluralidade muito potente para o livro, demonstrando as diferenças sociais, o racismo estrutural e questões de gênero”, destaca a jornalista e pesquisadora Isabella Gonçalves, que assina a organização da obra com Janaina Brasil.
“Como escrevi algures, toda ficção é cética por definição, porque suspeita da realidade e busca pôr outra no lugar. A ficção é o lugar por excelência de proteção da dúvida — por extensão, de proteção do pensamento. Quem não duvida não pensa, disse Descartes há muitos anos”, ressalta, no prefácio do e-book, o professor e pesquisador Gustavo Bernardo, professor de Janaina na faculdade de letras. Ela, por sua vez, foi professora de escrita literária de Isabella durante o ensino médio. “É como se fossem três gerações distintas de professores-alunos”, observa Isabella, atualmente vivendo na Alemanha. No início da pandemia, no entanto, morava em Covilhã, na região central de Portugal, e cursava o doutorado. “Naquele momento, eu não tinha bolsa, então dependia da conversão do real para euro para custear meus estudos. O primeiro impacto que eu senti foi o financeiro. O início da pandemia significou a desvalorização da moeda, e o euro subiu muito”, conta.
Com uma população de cerca de 50 mil habitantes, Covilhã não contabilizou muitos casos. “Portugal conseguiu contornar bem a primeira onda, foi exemplo, e em maio já pudemos lentamente voltar à normalidade”, recorda-se ela, que em outubro fez a mudança para terras germânicas. “Beijo sem máscara” ganha o mundo justamente no momento em que Isabella vive um dos mais rigorosos confinamentos da Europa. “Só saio para ir ao mercado e para fazer exercícios físicos aos finais de semana”, diz ela sobre uma quarentena prevista para durar até março. O livro, segundo a jornalista graduada na UFJF, foi a forma que encontrou de driblar sua impotência diante do caos que o Brasil atravessa. “Como sou pesquisadora, foi muito difícil assistir à distância a desvalorização da ciência e a emergência de discursos negacionistas. O gesto de doar todo o lucro para o Fiocruz foi uma decisão política”, observa, referindo-se à conversão dos recursos oriundos da venda dos exemplares digitais para a fundação de pesquisa responsável hoje pela fabricação da vacina da Universidade de Oxford em parceria com a farmacêutica AstraZeneca.
‘A arte pode provocar rupturas’
Inéditos, os contos e minicontos de “Beijo sem máscara” retratam a pandemia, seus múltiplos reflexos e também fazem um retrato do país marcado por injustiças e desigualdades. Para Isabella Gonçalves, a ficção pode ser aliada na construção de um novo real. “Sempre gostei muito de ficção e acho que, em momentos de crise, a arte ganha um protagonismo ainda mais forte, porque ela pode provocar rupturas. Ela é também mais fácil de ser consumida”, defende a organizadora, que no convite enviado aos autores provocou: “Quais são os seus sentimentos, diante do cenário atual, nos quais nos isolamos? Mais do que tudo, o que você, pessoa que escreve, tem produzido acerca do mundo? Quais histórias conta?”. Isabella afirma não ter se preocupado com a possibilidade de que os contos se tornassem muito literais. “Eu já conhecia o trabalho das autoras e dos autores convidados, e todos tinham uma proximidade com a literatura, uma veia literária. Alguns já tinham livros ou contos publicados, mas outros, mesmo sem publicações, já tinham a literatura enquanto hobby”, aponta, certa de que a escrita literária dispõe das ferramentas para fazer pensar, agir e transformar. “Nem todos gostam de ler ensaios, por ser um gênero muito acadêmico e, em alguns casos, áspero. A literatura, por outro lado, aproxima por seus personagens e enredos e pode dizer muito por meio das entrelinhas.”