Toda caça é violenta. Toda violência é brutal. Tudo bruto é bicho. “Ao jeito dos bichos caçados” (Enfermaria 6, 80 páginas), quarto livro na carreira do poeta, pesquisador e editor leopoldinense radicado em Juiz de Fora, Otávio Campos, persegue as animalidades. Da potência do instinto à crueldade mais racionalizada, o título lançado nesta terça em Portugal investiga violências. E como nada é estanque, trafega pelo sutil e pelo rude. “Todo o meu processo de escrita se desenvolve em três etapas depois da experiência. Primeiro, penso em uma narrativa, depois transformo isso em imagem e, a partir daí, começo a escrever tentando dar conta daquela imagem. Alguma coisa me diz que o que escrevo está a três pontos distante da realidade, e eu gosto muito de brincar com isso, com essa impossibilidade do real. Este livro foi pensado a partir da ideia de ‘violência’, que eu tento abordar em todos os poemas, desde as imagens até a própria linguagem, que vai se tornando no decorrer da leitura cada vez mais cruel à linearidade que muitos esperam de uma narrativa”, observa Otávio, em entrevista por e-mail, de Lisboa.
Da experiência com o cinema, da colaboração nos curtas-metragens “Marx pode sair” (2014), “O bicho que come dentro da gente” (2015) e “Laura” (2016), Otávio retira a dicção e o processo – de montagem e cortes – da sétima arte. “O livro começa com um diário de bordo de uma produção/escrita de roteiro de um filme, ‘O bicho que come dentro da gente’, que foi financiado pelo Prêmio Incentivo Primeiro Plano e apresentamos em 2015. Ficamos vivendo duas semanas em uma casa em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, escrevendo o roteiro e eu anotando essas observações que agora estão parte desse livro. Os capítulos que se seguem continuam com esse jogo de desconfiança das linguagens, todas elas, a cinematográfica, a musical e a poética, que para mim são praticamente a mesma coisa, até culminar na última seção, ‘A última experiência dos nossos tempos’, que termina em balbucios, subvertendo toda a lógica do significante/significado, construindo ‘uma cartografia absurda'”, aponta o escritor.
Estrangeiro em si mesmo
Defendendo a poesia de Otávio Campos como “uma camuflagem, uma espreita, um silêncio, suor frio e respiração compassada a meio de densa folhagem”, o também poeta Ismar Tirelli Neto, carioca, chama atenção para a força dos desvios presentes no livro. “A indeterminação que é a tônica do trabalho de Campos parece-nos fruto de cálculo – pouco tem a ver com espontaneidade ou automatismo. São versos que demandam um aproximar-se cauteloso e chamam o leitor a uma organização conjunta da experiência. É uma poesia que ‘nos implica’ com sutileza, comedimento e alguma malícia ‘nonchalant’ (casual). Trata-se, em resumo, da expressão fria, codificada e elegantemente descontínua daquele que se reconhece em fuga desde sempre e que teve, como todos nós, de tornar”, escreve Ismar, em prefácio da obra. “Sou um poeta gay, que explicito minha sexualidade de algumas formas no que escrevo, mas acima de tudo eu sou um poeta, que me preocupo com a linguagem e com os saltos que podemos operar na realidade a partir daí. A sexualidade desviante da norma é minha condição de estar no mundo, então é plausível que apareça nos meus processos de subjetivação, como são os trabalhos que faço”, acrescenta Otávio.
“A memória do corpo arrastado evoca mais presença do que o corpo a ser lembrado”, escreve o poeta em “Como disfarçar a dor em peso pluma”. Numa crueza aterradora, “Ao jeito dos bichos caçados” justifica-se editado no exterior pela própria estranheza com que o autor elabora seus escritos. “Uma maneira derrapante e irresoluta de narrar o desejo, infinita estranheza em pensar a instituição-casa e tão grande hesitação frente ao próprio idioma que Campos soa, por vezes, muito mais português do que brasileiro – seja, muito mais europeu do que sul-americano”, sustenta Ismar Tirelli Neto. “A gente fala brasileiro, e isso já é um grande indício do quanto exterior é esse país. Ao mesmo tempo, sinto uma aproximação afetiva muito grande, tanto nos motivos do que escrevo quanto à forma como penso as composições e as publicações. Virtualmente é muito interior minha relação com Portugal, mas o espanto nunca deixa de existir quando me deparo com esse país fisicamente”, concorda Otávio.
Num emaranhado de referências, de Allen Ginsberg e Frank O’Hara, partindo de epígrafe de Edimilson de Almeida Pereira, Otávio destrincha leituras, rotas particulares da “presa em potencial”. “Como autor (o que não quer dizer nada, já que o texto se realiza mesmo na recepção), a influência maior que trago é, e sempre foi, o Drummond. Desde o título deste livro novo até passagens inteiras dos poemas, tomo versos do itabirano. Entretanto é isso, os poemas só funcionam com as referências de mundo que os leitores trazem, então quem não leu Drummond, ou O’Hara, por exemplo, pode ainda ler o livro e ter percepções que eu mesmo não esperava e se transformam em algo maravilhoso e único. É isso que eu espero de um poema. É isso que eu espero de qualquer potência de arte.”
SELVA
Já me acostuma
silêncio
escrever seu nome
exercício
desleal você
acredita na palavra
desleal
CASA DE PRAIA
Nada do que nos trouxeram
do mar resistiu aos dois
últimos anos nem mesmo
pedaço de pedra crua adaga
marinha hoje que trazemos
cabelos à altura dos ombros
porque sabemos do valor
das coisas mortas da mesma
forma os meninos rasgam
caixas encontram conchas
nelas procuram metendo
ouvidos pedaço do mar
o barulho escuto cada parte
do meu corpo como fosse meu
perceba a sentença como fosse
você ouve o que te falam
as coisas mortas você pode
ouvir as coisas mortas perceba
a sentença as coisas
os meninos não ouvem
ruídos que não os próprios
ossos estalando crescimento
prematuro a curva a pausa
desenho meus cabelos até
os ombros com as mãos
como se fossem minhas