Juiz de Fora, como diversas cidades que cresceram entre o final do século XIX e o início do século XX, faz parte da lista de localidades que receberam inúmeros estrangeiros em busca de uma nova vida, seja trabalhando na indústria, no comércio, no setor rural, e que influenciaram diretamente a forma de ser e pensar do juiz-forano com seus costumes, culturas, hábitos, religiões, sua língua. A maioria cidadãos anônimos, que ganham espaço no livro “Outras memórias possíveis”, projeto da Funalfa que terá lançamento nesta terça-feira, às 20h, no Clube Sírio e Libanês, com distribuição gratuita. Em suas páginas, o livro busca resgatar as histórias das etnias que ajudaram na formação da cidade, por meio dos depoimentos tanto de imigrantes quanto de seus descendentes, acrescentados de registros históricos como fotografias e documentos. Algumas famílias possuem variado material de seus antepassados, enquanto outros se resumem a poucas fotos, mas de qualquer forma ajudam a ilustrar essa característica marcante da formação da cidade.
O projeto foi concebido e organizado pelo superintendente da Funalfa Toninho Dutra, como desdobramento de projetos ligados à memória que já vinham sendo realizados pela Funalfa, e que passaram a ter temáticas específicas com os livros “De todos os cheiros e sabores que fizeram Juiz de Fora” (2010, sobre culinária), “Amores” (2011, sobres os amores construídos ou deixados para trás devido à mudança do exterior para o Brasil), e a revista “Aspectos religiosos” (2014). “Depois dos encontros que geraram essas publicações, imaginei que era hora de questionarmos o que levou tantas pessoas a virem para o Brasil, o ‘por que viemos?’. Tivemos o caso dos negros, que vieram contra sua vontade, escravizados, aqueles que fugiam das guerras e os que vieram por desejo próprio, com o objetivo de fazer suas vidas aqui”, explica Toninho. “Surgiu o desejo de valorizar o cidadão comum, pois a cidade não é feita apenas de (Henrique) Halfeld e (Bernardo) Mascarenhas, que têm papel decisivo na construção e pioneirismo de Juiz de Fora, mas temos essas pessoas que sustentam a cidade no dia a dia e a colocam para funcionar, que muitas vezes têm suas memórias esquecidas, seja pelas casas que são demolidas, acervos perdidos. Resolvemos fazer um livro que contasse simbolicamente a história dessas etnias.”
Fim de um ciclo
O projeto de “Outras memórias possíveis” é o último de Toninho Dutra à frente da Funalfa. Após mais de oito anos como superintendente da instituição, ele deixa o cargo no próximo dia 31. Para ele, nada melhor que encerrar o ciclo com um projeto ao qual se dedicou profundamente. “Eu vibro, e muito, quando consigo tirar uma ideia do chão e transformá-la em algo concreto. Este foi um processo desafiador, com mais de 40 pessoas, e mostra que devemos continuar buscando essas memórias que vão se perdendo se não conversarmos com esses imigrantes e seus descendentes.”
“Sou apaixonado por esse projeto; não por ele em si, mas por poder apresentar pistas para conhecer a cidade, sua cultura, sua memória e as pessoas”, continua. “Fechar o meu período na Funalfa com esse trabalho é muito legal, pois tentamos fazer algo diferente pela cultura. Foram anos muito felizes, tentando construir com os setores culturais uma produção a partir daquilo que eles também procuravam.”
Caminhos que constroem uma cidade
Uma equipe da Funalfa iniciou a série de entrevistas em outubro de 2015, que durou até agosto de 2016. As sessões, realizadas tanto na Funalfa quanto em outros pontos da cidade, foram feitas por funcionários da instituição e também por convidados, entre jornalistas, historiadores e psicólogos que tivessem relações profissionais ou afetivas em relação a cada etnia. Todas as conversas foram registradas em áudio e vídeo e transcritas integralmente para o livro. A partir dessas transcrições foram escritos textos que acompanham cada entrevista, sob responsabilidade dos jornalistas Wilson Cid, Jacqueline Silva, Carú Rezende, Mauro Morais, Rodrigo Gomes Pereira, Tamires Fortuna Pennisi e Luiz Fernando Priamo, além das historiadoras Eridan Leão e Giovana Castro e a mestre em psicologia social Gilmara Mariosa.
Cada etnia teve dois entrevistados, entre imigrantes e seus descendentes. De acordo com Toninho Dutra, o convite foi feito tanto por indicação de representantes de cada grupo ou por pessoas que se ofereceram para o projeto por necessidade de contar as próprias histórias e de suas etnias.
Cada grupo étnico possui suas particularidades, além de uma visão diferente sobre a vinda para a cidade e o que aqui se conquistou. No caso dos imigrantes portugueses, é particularmente interessante a história de Adérito Anibal Rodrigues. Nascido em uma pequena vila do Alentejo, passou pela cidade do Porto antes de chegar a Juiz de Fora e reencontrar seus familiares. Tendo atuado em diversos ramos do comércio local, ele dispensa saudosismos. “Me impressiona que ele não manifeste nenhuma nostalgia. É um homem do tempo atual, que vive o momento como fez em todas as fases de sua vida, ainda ativo e disposto a continuar construindo”, diz Toninho.
Descendente de alemães, José Roberto Dilly recebeu da avó fotos e objetos da família que marcam a presença europeia em terras juiz-foranas. Desde então, ele vem ampliando o acervo de seus antepassados, sejam eles parentes ou não.
Nascida em Mercês, Geralda Caetano da Silva ajuda a preservar a história dos negros em Juiz de Fora. É considerada testemunha viva da transformação pela qual passou a região da Cachoeirinha, atualmente o Bairro Santa Luzia.
Isabela Serpa é uma das imigrantes italianas que escolheram Juiz de Fora como lar. Foi a parada definitiva após uma passagem pelo Rio de Janeiro. Sem jamais ter retornado à terra natal, Isabela guarda na lembrança o cheiro das frutas que nunca encontrou no país e a imagem de seu pai pastoreando carneiros.
Libanês de nascimento, Mohamad Ali Beydoun resolveu seguir os passos do irmão e veio para o Brasil, a contragosto de sua família. Os dois tentaram se estabelecer em São Paulo, mas o destino os levou ao interior do Rio de Janeiro até decidirem fincar novas raízes em Juiz de Fora.
“O grande ponto em comum que vejo nessas histórias é o orgulho com que consideram Juiz de Fora a casa de todos, onde construíram suas vidas”, diz Toninho. “Há uma sensação de pertencimento. Eles podem dizer que gostam do país de origem, que sonham com ele, mas sempre dizem ‘aqui é o meu lugar, meu espaço, o local onde tive a oportunidade de construir’. Isso é quase unânime, com graduações de sentimentos, alguns mais ligados ao passado, outros menos.”
OUTRAS MEMÓRIAS POSSÍVEIS
Lançamento do livro nesta terça-feira, às 20h, no Clube Sírio e Libanês (Avenida Barão do Rio Branco 3.480)
RETIFICAÇÃO: ao contrário do publicado originalmente, a família Dilly é de descendência alemã e austríaca, e não italiana, como aparecia na legenda da fotografia. A informação foi retificada às 13h01.