Imprimir, da forma possível, mas imprimir, palavras e sentimentos. Em sua juventude, na década de 1970, Nicolas Behr viveu a ansiedade criativa da “Geração Mimeógrafo”, da qual fez brotar títulos como “Grande circular” e “Vinde a mim as palavrinhas”. Transfigurado do ardor da expressão em tempos sombrios de silenciamentos forçados, estava um desejo que ainda persiste. “Quero a permanência”, diz o poeta cuiabano reconhecidamente brasiliense, pelas mais de quatro décadas em que vive na capital do país. “Adoro sair de Brasília, daquela racionalidade. Já tinha vindo aqui em 2011, mas foi muito rápido. Vim trazer essa antologia de 40 anos dos meus primeiros livrinhos mimeografados”, responde Behr quando questionado sobre a motivação que o trouxe a Juiz de Fora.
Convidado pelo Coletivo Vozes da Rua, Nicolas Behr desembarcou por aqui na quinta e permaneceu até domingo, quando, junto dos integrantes do coletivo, viajou até Leopoldina, também na Zona da Mata, para visitar o túmulo do poeta Augusto dos Anjos. Nos dias em que esteve na cidade, Behr foi homenageado pelos alunos da Escola Municipal de Santa Cândida e participou do 1º Slam da Perifa, além de ministrar oficina e divulgar seu “Brasilírica”, no qual revisa a produção que permaneceu. “Escrevo à mão, passo para o computador, imprimo e encaderno. Ficamos 5.000 anos na escrita manual, 500 anos no impresso e 30 anos no digital. O que estamos vivendo hoje passou a geração de Guttenberg, com a passagem do manuscrito para o impresso. Estamos numa revolução que nem nos damos conta. A máquina já nos domina”, comenta ele, em entrevista à Tribuna, defendendo o papel que é, sobretudo, presença.
Tribuna – Percebe uma semelhança entre a apreensão dos livros “Iogurte com farinha”, “Grande circular”, “Caroço de goiaba”, “Chá com porrada” e “Bagaço” durante a ditadura militar e as recentes censuras que vivemos no Brasil?
Nicolas Behr – Tudo foi apreendido, principalmente “Chá com porrada”. Estamos vivendo um retrocesso. Mas acho que o avanço não é contínuo, e o recuo também não é contínuo. O que se conquista não se perde. Não sei como funciona o tecido social, mas é interessante perceber que há um avanço, a sociedade sente medo e recua. Depois há outro avanço. Houve um grande avanço num passado recente e, agora, essa virada conservadora. Muitas conquistas, porém, se solidificaram.
Como é rever esses mimeógrafos 40 anos depois?
Na época eu tinha 20 anos, agora tenho 60. O tempo passa, ainda bem. Pensou ter 20 anos a vida toda? Espero ter mais 25 anos de vida útil. Quando revejo esse material, percebo que 30% não têm valor literário. Publiquei muito, muito jovem, aos 17. Tem coisas que me surpreendem e acho realmente interessantes. Hoje é como remover entulho literário. Escrever é tirar. E para tirar é preciso colocar. Minha visão daquele tempo é de espanto, eu estava 30 quilos atrás (risos).
O amadurecimento te deu poder de síntese?
Me deu mais certezas. Eu era muito rebelde. Não lia, não queria saber da tradição poética, não queria saber de outros poetas. Hoje já releio. Quando se é jovem, quer a ruptura, a contestação, o que é natural. O poder de síntese continua o mesmo, mas hoje tenho mais certezas do que é um bom poema. Na época tinha mais inseguranças.
O que é um bom poema?
Invenção, principalmente, e saber trabalhar a linguagem.
Intimamente, o que você traz daquela poesia marginal?
Trago o inconformismo, que é permanente. E como somos da geração rock’n’roll, trazemos a informalidade, que é uma marca. Não vamos entrar para a academia. Não quero entrar para a Academia Brasileira de Letras, ou Brasiliense. A gente tem uma visão muito crítica, somos contra a mistificação e a mitificação do escritor, contra a veneração do poeta. Isso, para mim, não cola. Essa imagem (do poeta mítico) foi muito construída no romantismo. E, na verdade, eu vou ali no boteco, jogo na Mega-Sena, faço uma palestra, lanço um livro, sem o pedestal. O pedestal te tira da percepção das coisas da vida.
Vários especialistas e pesquisadores vêem uma relação entre essa poesia marginal e a poesia produzida hoje nas periferias. Percebe isso?
Naquela época, éramos marginais ao mercado editorial. Hoje eles são marginais aos serviços sociais, não têm escola, não têm posto de saúde. A gente não tinha editora. Era uma coisa de classe média. Hoje estão à margem de tudo, de educação, segurança, saneamento, numa ausência completa do estado. Há um paralelo entre o que fazíamos e esses saraus, essa atitude de hoje. Há uma continuidade.
Quando fala do inconformismo, o que te traz esse sentimento hoje?
No passado, o inconformismo era mais visível. Hoje ele é mais enraizado numa questão existencial. Era mais à flor da pele, hoje é mais interiorizado. Acho que o anti-academicismo continua. Não contra a universidade, mas contra as academias de letras, contra a institucionalização da literatura via entidades associativas e “clubísticas”, que limitam a poesia e tentam cooptar. Não me atrai esse lugar, essa tentativa de institucionalização que tira força.
A ecologia entra também nesse inconformismo?
A ecologia, hoje, é o meu meio de vida. Tenho um viveiro de plantas e vivo do comércio disso. Sou ecologista, mas não sou tão militante. O inconformismo resiste. Essa região aqui, por exemplo, era tudo mata. E hoje está tudo pelado. Primeiro tiraram a mata para fazer lenha para o trem, plantaram café, depois ele foi para outras regiões e ficou assim. No futuro, vai ser reflorestado, porque as mudanças climáticas vão impor isso. Hoje o desespero é ganhar dinheiro. No futuro vai ser plantar árvore e segurar água. A consciência ecológica vai chegar pela água. Em Brasília já chegou.
E o que te leva a ver o túmulo do Augusto dos Anjos em Leopoldina?
É o poeta mais popular do Brasil. Drummond é o maior, é um grande poeta, mas o mais popular é Augusto dos Anjos. É interessante que ele é inclassificável, nem parnasiano nem simbolista. A linguagem dele é supercriativa, com termos químicos.
Está, de alguma maneira, na poesia que você faz?
Está, mas não visível. Todos estão. E é bom que todos estejam e que ninguém perceba. O Mario Quintana falava que não são influências, mas confluências. Acredito nisso. Mas acho que tenho mais do Leminski do que do Augusto dos Anjos, Drummond, João Cabral (de Mello Neto). Tenho mais dos meus contemporâneos, Chacal, Cacaso e Francisco Alvim.
Como é sua relação, hoje, com esses seus contemporâneos?
Leio e gosto de ler. Alguns deles já estão virando canônicos. Existem “ene” teses sobre Leminski e Chacal. Os livros de segundo grau estão cheios de poemas deles. É um novo academicismo? Não sei. Outro dia li um artigo na internet de um cara dizendo que os poemas da poesia marginal são que nem fósforos riscados. Muito boa essa imagem. Você lê uma vez e ele não te dá outra leitura. Quando você lê um poema do Murilo Mendes você fica ali três, cinco dias. Estava lendo hoje (tira um papel do bolso) esse “Metade pássaro”. Essa crítica que li dizia que a poesia marginal, com os poemas trocadilhescos, de sacada, não tem a profundidade filosófica de outros poemas, de outros poetas. Me fez pensar. E gostei dessa história do fósforo riscado.
E te agrada produzir fósforos riscados?
Gosto, porque os fósforos iluminam as pessoas. Aderem à memória. São sacadas, são poemas como flash, querem e precisam de um retorno rápido. Foram feitos para impactar, não para pensar muito. Leminski era o gênio nisso.
E como lê a nossa poesia contemporânea hoje?
É muito diversa. A internet chegou e bagunçou tudo. Ninguém sabe o que está acontecendo e o que é bom. E todo mundo quer classificar, entender ou dominar tudo. O acesso à poesia ficou muito maior, com YouTube e Facebook. Na minha época a gente fazia tudo por carta e levava 15 dias para chegar. Hoje a cena está efervescente. Tem muita gente nova chegando, muitos poemas bons. Essa coisa da atitude, a gente acreditava que era parte do poema. Sobretudo na linguagem. Hoje, cada vez mais, e não sei se é caretice, penso que vale o que está escrito. O livro é importante. Tudo o que está na rede pode ser perdido. O livro, não. Podem queimar, mas uns cinco vão sobrar.