Os shows pararam, as aulas pararam, a escola fechou, as lives encheram e hoje já não sustentam. A realidade do baterista juiz-forano Hélcio Leão repete-se pela cidade e fora dela. Há dois meses, o músico viu sua fonte de renda secar, sem apresentações e com o local onde lecionava, o Espaço Compartilha, no Granbery, com as portas fechadas. “Como a oferta on-line é gigantesca, é difícil angariar os alunos. Sem contar que tenho que disputar com profissionais com muito mais nome, que abocanham a maior parte dos alunos”, lamenta Leão, um dos cerca de 30 presentes na reunião do Cultura Conecta, promovida na noite desta terça, 19, pela Funalfa, para discutir com a classe artística a situação dos espaços privados e dos professores de artes locais. Marcelo Santos, professor e coordenador da escola Moovn’, compartilha da apreensão. “Até pensamos em manter por um tempo. Fiquei semanas sem produzir. Agora estou produzindo conteúdo on-line e dando aulas virtuais. Estou, inclusive, pensando em oferecer outros produtos on-line, mas muitos alunos têm objeções com esse meio de transmissão. Muitos não se sentem confortáveis. No meu caso da dança de salão, muitos estão sozinhos. Fora que muitos entram para as aulas para socializar e não querem se tornar profissionais. Neste momento, é bem difícil conseguir alunos”, pontua.
Por mais de duas horas, Poder Público, artistas e gestores locais debateram um cenário no qual a disposição não é o bastante para fazer a roda girar. “Estou mantendo a academia, acho que vou passar por essa situação, consegui desconto com a imobiliária, mas não está sendo fácil”, conta Santos, que conseguiu manter poucos de seus alunos no ambiente virtual. “Nosso normal vai ser um novo normal e é interessante pensarmos em produzir coisas novas para essa nova realidade”, reconhece o artista e gestor, certo de que, mesmo após a retomada, seu negócio continua sofrendo o impacto da pandemia. Artista da dança e da performance e coordenadora do espaço Diversão e Arte, Letícia Nabuco também se preocupa com o presente ainda mais apreensiva com os dias que virão. “Eu dava aulas particulares e faço a preparação corporal para um grupo de capoeira. Minha aula tinha pouca gente. Este ano ainda estava começando. No primeiro mês (março), foi uma quebra geral e aconteceu o que eu já imaginava: as aulas particulares estão tendo uma procura, por ter um efeito terapêutico. Consigo aulas assim, mas com quase um quarto do valor que praticava. Em relação à capoeira, é um trabalho de coletivo. O mestre chegou a tentar aula por Zoom, não deu certo”, narra.
Para não gastar energia com um universo tão amplo, onde ganha quem mais tem alcance, Letícia não se arriscaria no ambiente virtual, mas alertada por uma amiga, reconheceu a relevância de manter a cena local e, principalmente, propor uma experiência coletiva mesmo que diante da imposição da distância. Diariamente, às 19h, na conta do centro de cultura ligado à sua casa (@diversao_e_arte_espaco_), ela e o artista Rafael Costa exibem lives intituladas “Contatos possíveis”. “Penso que a Funalfa poderia ajudar a gente na divulgação. Para nós que não estamos acostumados a trabalhar on-line é um trampo e acabamos ficando nas nossas próprias redes. Um canal ou página oferecendo serviços dos artistas da cidade já ajuda muito. A Funalfa tem um poder de chegar às pessoas muito maior do que nós”, sugere ela, diante do diretor geral na plataforma Zoom.
“Fazer um site ou outro canal é uma possibilidade relativamente simples para nós, mas depende de um trabalho de rede. Como não pagamos para os posts terem mais visibilidade, o próprio Instagram limita. Quando nossas postagens chegam a um número X, as pessoas param de ver. Temos falado na Funalfa de criar uma campanha de estímulo ao consumo da arte local, e o Corredor Cultural deve ser o espaço no qual lançaremos essa campanha. A partir disso, poderemos desdobrar conceitos e ações”, concorda o diretor geral da fundação, Zezinho Mancini, confirmando a produção do evento que celebra o aniversário de Juiz de Fora. “Um site pode ser mais complexo, mas talvez outro perfil que a Funalfa possa divulgar. Temos outros canais, YouTube, Facebook, Instagram, Twitter e a própria imprensa que podem ser favoráveis. É importante sair do lugar de suspensão e saber que não voltará a ser como era antes”, reforça Letícia, impactada tanto como gestora de um espaço cultural quanto como trabalhadora da própria cultura.
Isenção de IPTU não é viável para PJF
Alternativa proposta pela classe para os proprietários de espaços culturais locais seria a isenção de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), como já pleiteado por empresários do comércio e da hotelaria e negado pela Prefeitura. “Não há, pelo menos neste momento, a possibilidade de isenção de IPTU, mas temos a lei que deu um prazo maior para o pagamento sem juros e sem multa de tributos municipais. Foi um avanço normativo para dar um respiro para quem tem dificuldades de receita”, explica a assessora de programação e acompanhamento da Funalfa, a advogada Flávia Iasbeck, chamando atenção para o efeito cascata que implicaria uma isenção para uma única classe.
De acordo com Zezinho Mancini, a arrecadação municipal se modificou de maneira drástica, e a Prefeitura não dispõe de recursos para repasses diretos para a classe. “Juiz de Fora tem um orçamento de R$ 2 bilhões em questões normais. A parte que vem para cultura é infinitamente menor que isso. O que hoje temos em caixa é R$ 100 mil, que é o que economizamos no carnaval. O prefeito me autorizou a utilizar o recurso, e o Corredor Cultural deve sair deste montante”, indica o diretor geral da fundação.
“O valor que o município dispõe para fazer um aporte na classe artística não contempla a demanda dos espaços. Qual é o curso de manutenção de um espaço? Não temos essa noção, mas pensamos em algo entre R$ 3 mil e R$ 5 mil. Quantos espaços temos na cidade? Por quantos meses esse valor deveria ser destinado para que não fechassem? Pegando o histórico recente da Funalfa, um evento nosso tem um custo de R$ 180 mil, que divido por seis meses dá R$ 30 mil por mês. Quantos espaços conseguiríamos manter se deixássemos de fazer um evento na cidade?”, questiona, retoricamente, Mancini, revelando as contas da pasta.
Repasse de fundo federal é saída para a cidade
O repasse do projeto de lei de auxílio emergencial da cultura, que tramita na Câmara dos Deputados e deve ser votado na próxima semana, segundo Zezinho Mancini, é a grande esperança para a classe artística em Juiz de Fora. De acordo com o diretor geral da Funalfa, o documento prevê a disponibilização de cerca de R$ 3,6 bilhões do Fundo Nacional de Cultura, e existe a expectativa de que a cidade, por seu tamanho, receba uma fatia considerável do montante, já que o dado demográfico é o principal critério para a distribuição do orçamento.
No texto, apresentado pela própria Funalfa, espaços privados, empresas e organizações que tiveram suas atividades culturais paralisadas podem receber entre R$ 3 mil e R$ 10 mil mensais, desde que sejam pessoas jurídicas responsáveis pelas entidades ou espaços. O documento lista mais de 20 tipos a que se voltam esses repasses, incluindo livrarias, estúdios fotográficos, ateliers, galerias de arte, coletivos de teatro de rua e a cadeia produtiva do carnaval.
O projeto, que precisa ser aprovado, sancionado e regulamentado, também define ser vedado o corte de água, gás e internet, além de definir a implementação, em instituições bancárias, de linhas de créditos e condições especiais para renegociação de débitos. “Temos um caminho longo até que esse texto se concretize. O que acho interessante é já procurar se regularizar e alinhar com ela, afim de que tudo esteja na maior regularidade possível, para que quando o recurso estiver liberado, todos tenham acesso”, sugere Flavia Iasbeck , defendendo que flexibilizar normas para atender um quadro emergencial não é uma saída segura. “Alterações normativas feitas agora têm a perspectiva de perdurar. Quando a gente tem uma ação de burocracia, estamos protegendo nosso patrimônio de uma dilapidação que não queremos que ocorra.”
Pensar agora e além é desafio diante das urgências
Para os artistas locais – sejam gestores ou professores -, o desafio maior parece ser o de traçar soluções que sirvam para o agora e, também para depois, já que o quadro crítico deve permanecer mesmo após o fim do isolamento social. Gestor do Balliamo Espaço de Dança, Julio Cezar Franco, que tem muitos alunos idosos em suas turmas, reconhece que as perspectivas de retomada são longínquas. “A dança de salão trabalha muito com o afetivo. Então, nosso problema continuará mesmo quando acabar o isolamento. Levará um tempo até que as pessoas voltem ao seu normal”, observa.
“Sinto que muitas pessoas que procuram uma atividade artística, procuram como um respiro e quando isso passa para o on-line, deixa de ser um respiro e se torna uma obrigação. Chegamos a propor exercícios para os alunos, mas eles mostraram que estavam em outro clima”, acrescenta Bruno Quiossa, um dos coordenadores do Sala de Giz. “Estamos passando por uma atuação muito limitada no Programa Gente em Primeiro Lugar, que é plural e presencial e estamos tendo que nos reinventar neste momento”, compartilha Mancini, que propôs à Acav aulas virtuais vistas em loop. “A pessoa pode aprender e depois praticar a atividade. Não são todas as atividades que podem fazer isso, mas podemos aplicar nas que derem.”