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A caminho de JF com a Plebe Rude, Clemente fala à Tribuna

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Clemente e sua turma da Vila Carolina, numa noite de 1982 (Rui Mendes/Divulgação “Meninos em fúria”)

Entre o breu da lata de lixo e a claridade ofuscante do sol, nada mudou. Ou quase nada. A desolação se manteve. E a morte continua a ser companheira. O risco ronda o homem que caminha pelas sombras em “Deixe-me viver” (“Tenho medo de olhar/ nas latas de lixo/ pois dentro de uma delas/ eu posso me encontrar”), música composta para a Restos de Nada, primeira banda punk brasileira. Também ronda o homem onipresente e onipotente de “Sou como sol” (“Queimo quem tentar se aproximar/ cego todo aquele que me observar/ minha radiação pode desintegrar/ com uma grande explosão solar”), mais recente trabalho e primeiro voo solo de Clemente Tadeu Nascimento. Transformou-se em coerência a permanência do garoto – que aos 15 anos escreveu as primeiras palavras do movimento político e cultural que encontrou na cor preta a obscuridade que denunciava – no homem de 55 anos, completos no último dia 12.

Nascimento sem elo com Edson, o Pelé, ou com Milton, o Bituca, Clemente ainda na infância quis, também, ser orgulho para os seus. “Descobriu que Nascimento na verdade nem designa uma família: era como se diferenciava um escravo comprado de um nascido na senzala”, conta o escritor Marcelo Rubens Paiva em “Meninos em fúria” (Editora Alfaguara), assinado em parceria com Clemente. “No Brasil, um garoto negro, filho de uma empregada com um baiano, que se criou na Zona Norte de São Paulo, zona de gangues, decidiu partir para o confronto e liderar a causa punk. Um anarquista que acreditava que os punks formariam a vanguarda revolucionária que destruiria o capitalismo na guerra internacional, a voz do subúrbio, da revolução permanente”, destaca o livro considerado um dos principais testemunhos da geração que viu o surgimento da cena paulista.

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Agente desde o primeiro acorde, Clemente viu o tempo passar sem do palco sair. Em suas palavras, viu o rock voltar a “ser a linguagem das ruas”. Em entrevista por telefone à Tribuna, o músico retorna 40 anos para dizer: “Ficou a poesia, a visão crítica”. O mesmo ponteiro do relógio que tirou-lhe os cabelos e fez grisalhos os pelos do cavanhaque deu a ele a passagem por importantes formações. Logo que saiu da Restos de Nada, onde permaneceu por um ano, o baixista integrou a Condutores de Cadáver de 1979 a 1981. Naquele mesmo ano, formou a Inocentes, até hoje na estrada. Em 2004, assumiu o vocal da Plebe Rude, representante do punk de Brasília dos anos 1980 e que desembarca em Juiz de Fora, no dia 8 de junho, no Cultural Bar. Lançado em 2016, “Antes que seja tarde” é o primeiro trabalho de Clemente & A Fantástica Banda Sem Nome. Apresentador do “Filhos da pátria”, na paulista Rádio Kiss FM, e do canal Kazagastão, no YouTube, em parceria com o amigo Gastão Moreira, Clemente não estaciona. Faz do punk um passado presente.

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Tribuna – O que te restou da Restos de Nada?
Clemente Tadeu Nascimento – As lembranças são as melhores possíveis. A Restos de Nada foi minha primeira banda, onde aprendi a tocar e desenvolvi estilo de escrever. Eu e meu parceiro Douglas Viscaino (guitarrista) começamos juntos na escola, com 13 anos, e fomos chamando as pessoas: o Charles para a bateria e o Ariel para o vocal. Era uma época em que havia a urgência de fazer música. E fazíamos por puro prazer, porque não havia nenhuma expectativa de ganhar grana, fazer sucesso ou algo do tipo. Eu tinha 15 anos, e o Douglas, que foi a figura principal na banda, tinha 16. O Ariel tinha 18, e o Charles era o mais velho, de uma geração anterior à nossa.

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O que era imperativo naquele momento?
Havia a vontade de fazer. Não pensávamos em fazer um som brasileiro, em ter referências. Pensávamos, apenas, que estávamos inseridos numa cena, sentíamos as mesmas coisas e queríamos falar também. Quando tivemos a vontade de ter banda, e começamos a nos encontrar, em 1976, só queríamos fazer rock. Mas gostávamos de umas coisas diferentes, como The Stooges, MC5, New York Dolls, Made in Brazil, bandas mais cruas, o que não estava em voga. A gente era sonhador. E quando vimos o punk chegar, percebemos que tinha gente que gostava das mesmas coisas que nós. O que me fez ouvir Ramones foram as influências que a banda tinha. E o visual, que era o mesmo que o nosso: jaqueta de couro, jeans e tênis. Estava todo mundo de saco cheio do rock vigente. E nós fazíamos do nosso jeito.

O que o rock dizia a vocês?
Era uma maneira de se expressar num momento difícil, duro. O rock tinha perdido o contato com suas origens: a rebeldia, música de dois minutos, falar o que o jovem sentia. Ele tinha virado algo pop. E a primeira geração do punk resgatou isto: fez o rock se tornar perigoso, com uma música para os adolescentes. Aquele rock voltou a ser a linguagem das ruas. E era legal ver um bando de adolescentes com jaquetas de couro, loucos por algumas bandas, com os hormônios a mil, querendo falar, gritar, fazer barulho, escrever.

De onde vinha o discurso?
Estávamos na ditadura (militar), e as bandas de que gostávamos tinham posturas muito fortes de esquerda. E a gente questionava um monte de coisas que estavam acontecendo. Líamos muito. Quando li George Orwell, ‘1984’, ‘Revolução dos bichos’, eu tinha 15 anos. Albert Camus também. E isso permeava nossa obra, que já tinha uma tendência política forte, que só foi aumentando com o tempo.

O que perseguiam quando formaram a Restos de Nada?
Quando a Restos de Nada começou não tinha nada. No primeiro show nosso com outra banda, a AI-5, só foram os amigos do bairro, como o Kid Vinil, que nem era o Kid Vinil, ainda era o Antônio Carlos, que andava com a gente e ouvia aquelas coisas novas. A Restos de Nada tinha uma personalidade muito forte e criou uma sonoridade diferente da que estava sendo feita e que, mais para frente, foi chamada de hardcore. Já tocávamos rápido, já tínhamos influências de bandas diferentes, completamente obscuras, como The Weidors. Já a AI-5 seguia a tendência de The Clash, dos Sex Pistols. O nosso som era uma doideira. Agora as pessoas ouvem e acham normal, mas para a época não era.

Baixista da Restos de Nada, primeira banda punk do país, Clemente integrou a Condutores de Cadáver e hoje é vocalista da Inocentes e da Plebe Rude, além de também seguir carreira solo, divulgando o recente trabalho “Clemente e A Fantástica Banda Sem Nome” (Foto: Tinho Souza/Divulgação)

O que a Inocentes herdou desse primeiro momento?
Quando saí da Restos de Nada, fui tocar numa outra banda, chamada Condutores de Cadáver, que também foi construindo a cena punk, organizando festivais e chamando outras bandas. Quando o Inocentes chegou, com os mesmos caras do Condutores, só mudando o vocalista, foi para abocanhar uma cena já estabelecida, com uma postura definida e lugar para tocar. Apesar de ser com as mesmas pessoas do começo, a Inocentes foi formada num cenário já desenhado e pôde logo gravar o primeiro disco, o ‘Grito suburbano’ (primeiro registro das formações punks brasileiras, lançado em 1982 e gravado ao lado das bandas Cólera e Olho Seco).

“Foi muito marcante perceber que a garotada da periferia estava mais antenada com o que estava acontecendo lá fora do que a galera classe média que estudava na USP. Eles estavam na década de 1970, e a gente falou: ‘Isso já foi!’. Nós apresentamos aquela cena que chegava”

Olhando com a distância do tempo, de 40 anos, como encara o movimento?
O movimento punk foi um divisor de águas entre as décadas de 1970 e 1980. Foi muito marcante perceber que a garotada da periferia estava mais antenada com o que estava acontecendo lá fora do que a galera classe média que estudava na USP. Eles estavam na década de 1970, e a gente falou: ‘Isso já foi!’. Nós apresentamos aquela cena que chegava. Quando eles chegaram, já estávamos há cinco ou seis anos fazendo aquilo. E o punk foi o que mudou a postura, o jeito de escrever, o tipo de música mais curta, a canção.

Rapidamente vocês ganharam o exterior e o interior. Como foi isso?
O punk brasileiro cresceu muito. Ele chegou com força nos Estados Unidos, na Europa. Quando o Inocentes chegou, já nos correspondíamos com o mundo inteiro, saía matéria do punk brasileiro num fanzine chamado “Maximumrocknroll”, de São Francisco, que falava da cena mundial. Ao mesmo tempo, começamos a chegar no interior do Brasil, quando era difícil viajar. As cidades ainda tinham apenas três punks, que não enchiam nenhuma casa. Depois que chegamos à (gravadora) Warner, em 1986, viajamos bastante.

“A gente envelhece, evolui, acumula experiência. No próprio punk, as bandas hoje sabem tocar pra caramba, gravam bem, cantam afinado, sabem o que fazer na cena, onde divulgam seus materiais, em quais cidades tocar. Agora a cena está estabelecida. Quando começamos não havia nada. Era o início do universo, tudo na batalha”

O que permanece daquele período?
Tudo muda. A gente envelhece, evolui, acumula experiência. No próprio punk, as bandas hoje sabem tocar pra caramba, gravam bem, cantam afinado, sabem o que fazer na cena, onde divulgam seus materiais, em quais cidades tocar. Agora a cena está estabelecida. Quando começamos, não havia nada. Era o início do universo, tudo na batalha. Quando organizávamos um show, tínhamos que carregar o caminhão com as caixas de som, depois descarregava, montava o bar, cobrava bebida e depois ia tocar. Hoje qualquer banda punk vai para a Europa tocar em festival.

E o que foi alterado?
Aquele movimento punk como o da década de 1980 não tem mais, com aquela homogeneidade. Hoje existem várias cenas punk, que envolvem o hardcore, se misturam com o metal, até chegar às bandas punks tradicionais. É mais dispersa, mas muito mais organizada, com vários shows, selos especializados. Rola “merchan” (merchandising) das bandas, com camisetas, bótons, canecas. Hoje é muito mais uma cena musical do que um movimento que questiona o establishment, e tem os mais radicais, os que fazem um som em inglês, é mais plural.

“O que ficou marcado no punk foi a crítica ao sistema, mas não foi só isso. As bandas falavam de tudo. E houve duas gerações. A primeira, com a qual mais me identifiquei, era mais dadaísta, mais existencialista. A segunda, aquela do moicano, era mais política. Algumas bandas sequer falam de política”

Você defende que o movimente teve um alcance maior do que o discursivo…
O que ficou marcado no punk foi a crítica ao sistema, mas não foi só isso. As bandas falavam de tudo. E houve duas gerações. A primeira, com a qual mais me identifiquei, era mais dadaísta, mais existencialista. A segunda, aquela do moicano, era mais política. Algumas bandas sequer falam de política. Então, há uma pequena distorção ao falar que punk é política apenas. O lance é a postura que há perante o assunto. Na verdade, a gente questiona não só o sistema, mas o modo de vida ocidental, o jeito que a gente consome, come, se veste. A gente questiona tudo.

Em você, o que resta?
Ficou muita coisa. Ficou a poesia, a visão crítica. Sobre muitas coisas que eu via na época, que eu achava, hoje tenho certeza. (risos) Quando li “1984” fiquei completamente impactado por aquele livro. Hoje, 40 anos depois, vejo que a realidade pode ser bem pior. Continuo me impactando. Aquele garoto está aqui ainda. E ainda bem.

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