Há exatos dois meses, a Prefeitura de Juiz de Fora publicou um decreto de emergência nº 13.897, ampliando as restrições para funcionamento do comércio e outros setores da cidade. Dois dias antes, no entanto, já estavam suspensas as aulas e as atividades esportivas e culturais. Desde então, artistas locais elaboram as próprias perdas, a escassez dos arredores e as incertezas que cercam a retomada. Em resposta ao silêncio imposto, elaboraram, coletivamente, documentos que traçam estratégias para o enfrentamento da crise e pressionam o Poder Público para que sejam garantidas a sobrevivência durante e após a pandemia.
Organizado há cerca de um mês, o Coletivo Salto surgiu entre amigos, numa conversa despretensiosa na qual enumeravam as poucas certezas e as muitas angústias. Já na primeira reunião ganhou novos corpos. “Na primeira reunião, discutimos a importância das políticas públicas, porque só as campanhas de solidariedade e não vão bastar”, destaca a artista visual Paula Duarte, chamando atenção para a importância da expressão dos artistas nesse cenário. “Os países que já iniciaram a reabertura têm os manifestos dos artistas.”
Intitulado Manifesto Salto!, o documento disponível na internet – o coletivo possui uma conta no Instagram: @saltocoletivo – dispõe sobre a potência econômica e social da cultura e elenca diretrizes para o momento, como “adaptações para a realização de eventos consolidados em nosso calendário, como o ‘Corredor Cultural’ e a ‘Semana da Consciência Negra'”, realização de editais emergenciais, democratização do acesso à informação e aos fomentos, censo cultural, disponibilização de equipamentos culturais para recolhimento de doações e, terminado o período de isolamento, para uso da classe.
“O manifesto faz uma pressão para que existam políticas públicas emergenciais para o cenário durante e após a pandemia”, observa Paula. “Não são novas questões. E de alguma forma o Salto consegue sintetizar caminhos de discussões que já estavam sendo feitas. A pandemia só tornou extremo o que já enfrentávamos muito antes. O Salto busca estratégias práticas de colocar essas possibilidades de resistência e mobilização. E ele não se restringe aos artistas, porque é importante ver quem está mais vulnerável neste momento”, acrescenta outro integrante do coletivo, o dramaturgo e diretor Felipe Moratori, gestor do espaço cultural Sala de Giz.
Segundo uma das criadoras do coletivo, a professora de capoeira e musicista Tallia Sobral, a demora da mobilização da classe se deve a uma triste constatação que antecede a pandemia: “Já não tínhamos uma organização anterior”. Ainda, Tallia ressalta o tempo que os artistas levaram para processar uma nova realidade, na qual foram brutalmente afetados, como os primeiros a parar e os últimos a retornar. “O setor artístico no geral se localiza no campo da esquerda e, hoje, nos sentimos muito abalados com o que acontece, que não é só a pandemia. A sensação é entrar num ringue lutando contra o governo, contra o vírus, e a favor de nossa sobrevivência. A sensação é de estar sendo nocauteado o tempo todo”, lamenta.
Outro golpe sentido por artistas como Tallia é a constatação de realidades muito duras, para as quais já faltam alimentos na mesa. De acordo com ela, assim estão muito de seus alunos, que sequer acessam as redes e hoje enfrentam a miséria. Para eles, o coletivo pretende formentar uma robusta campanha de doações de alimentos. “Não temos capacidade de arrecadas para todas as comunidades e vamos agir de acordo com o que conseguirmos construir. Estudamos a melhor forma de fazer isso”, pontua Tallia, certa de que as lives podem ser um instrumento, mas não o único. “Concorremos com o grande mercado, com grandes lives, financiadas por grandes empresas e é muito complicado disputar nesse espaço. Precisamos nos fortalecer como trabalhadores da arte”, propõe, demonstrando que a mobilização pode servir para a coletividade, transcendendo a classe artística.
Sensibilização política e festival
Mobilização também é a frase que norteia o Grupo Emergencial de Cultura, criado há menos de duas semanas, como resposta ao Cultura Conecta, ciclo de reuniões com a classe artística promovido pela Funalfa e cuja segunda etapa inicia-se nesta terça, 19. Heterogêneo, o grupo já criou comissões e nesta segunda, 18, publicou seu primeiro documento, uma carta aberta na qual reforça a importância da cultura na cidade e o impacto da pandemia nas atividades locais. O texto enumera sete propostas para o Poder Público, como defesa da Lei de Emergência Cultural, a ser votada este semana pela Câmara dos Deputados, e a garantia de aportes na Funalfa. Ainda defende a valorização do Conselho Municipal de Cultural, a criação de banco de dados da classe, a revisão na gestão dos espaços públicos, o apoio à manutenção dos espaços privados e editais emergenciais.
Uma das demandas que surgiu (da primeira reunião) foi a solicitação de um fundo emergencial para a cultura da cidade. Mas a ideia de mobilização passa por todas as esferas, considerando que a corrida pra aprovação do projeto de lei (da Emergência Cultural) começa essa semana, passa pela Câmara, pelo Senado e chega ao Presidente”, ressalta o diretor de teatro e um dos gestores do espaço OAndardeBaixo Hussan Fadel, integrante do grupo. “Nossas ações estão sendo construídas coletivamente, em comissões”, pontua.
Bastante estruturados num grupo no Facebook, os artistas preveem, também, a criação de um festival que pode se estender ao longo do período de isolamento. “Serão apresentações e ações que aproximem o artista do público, aqui, como forma de contornar a crise do Estado. Trabalharemos com cotas de patrocínio, um convite aos empresários da cidade pra se juntarem com os agentes culturais na defesa de uma Juiz de Fora melhor”, conclama. “Nesse movimento, trabalhamos pensando em criar meios de viabilizar a arrecadação de recursos que serão direcionados aos trabalhadores em situação de fragilidade, assim como, para oferecer presença para as pessoas em casa, conectadas via rede.”
Olhar para a frente
Segundo Paula Duarte, que integra o Coletivo Salto e também o Grupo Emergencial de Cultura, a mobilização da classe a pressão sobre o Poder Público serve, inclusive, para fortalecer artistas e a própria fundação que os representa dentro do Governo Municipal. “Tem um trabalho que é da base dos artistas e esse é um momento a mais para que a própria Funalfa possa cobrar de outras instâncias. Mobilização de base respalda esse contato. Perdemos há muito tempo, desvalorizados por diferentes esferas. Organizar-se coletivamente é uma forma de valorizar toda a classe”, sugere a artista.
Para Felipe Moratori, que também participa das duas iniciativas, é urgente garantir a manutenção do calendário municipal da cultura. “A Funalfa tem recursos mínimos, e o mínimo que existe precisa ser usado, com novas estratégias de distribuição. A esperança que a gente tem é a de lançarmos mão desse mínimo que existe”, pontua. “Temos que cobrar, porque é direito nosso e é função dos gestores responderem à situação”, acrescenta Tallia, certa de que os movimentos de agora também contribuem para a escrita de outro futuro. “Não podemos ser pegos de surpresa de novo. Temos que dar um salto no presente para o futuro”, ilustra Paula.