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Entre a criatura e o criador, um vírus: como os artistas têm lidado com a crise

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Partituras e sanfona aguardam o show começar, tendo a rua como palco. (Foto: Fernando Priamo)

Em tempos de lives, o músico foi para a rua. Saiu de sua casa, empunhando o violão, e fez sua serenata para os que passavam, para os que acompanhavam das janelas e varandas, para os carros e bicicletas, para os que de longe só ouviam algumas notas. Alexandre Moraes, acompanhado pelo sanfoneiro Vitor Caffaro, fez do asfalto seu palco no projeto que intitulou “Ser-estar”. Surgido numa provocação amiga.

Queria fugir da live, do termo norte-americano e sua representação como solução moderna. “Live para nós não tem nada de vivo, aquilo que buscamos em nossa arte. Achamos fria essa forma de atuarmos como artista”, comenta ele, que questionado por um colega de profissão sobre sua adesão ao formato respondeu: “Vou ficar matutando algo”. Estava ali a centelha. “Palavra antiga, de nossos antepassados. Daí fui puxado, até chegar à forma anterior do próprio rádio. Pronto, o óbvio estava lá: a serenata! Nada contra a opção por live, mas me encontrei mais longe, mais no antes.” Há mais de uma semana Alexandre e Vitor se apresentam por ruas vazias da cidade, com a plateia distante. Na internet ou fora dela, artistas procuram, em isolamento, formas de se manterem vivos, seja na poesia, seja na dureza das contas cotidianas.

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Cada espetáculo do “Ser-estar” é contratado por um dos que irão assistir de longe. Ao longo de 30 minutos, os músicos executam oito músicas, metade delas escolhidas pelo contratante. Segundo Alexandre, o tempo é “ideal para a dedicação da escuta. Muito mais prazeroso trabalhar a música estando 100% no ouvido das pessoas”. “Acho que este é um caminho possível sempre: encontrar brechas de liberdade, para se reinventar e ao mesmo tempo não deixar de fazer o que se acredita e gosta, que no meu caso é tocar”, afirma o violonista, surpreso com a repercussão da proposta formulada, principalmente, como uma via de retomar ao menos parte do rendimento suspenso após bares e restaurantes fecharem as portas por conta da disseminação do coronavírus no país.

Atriz, Pri Helena concorda que exista, neste momento crítico, uma urgência por reinvenção para um trabalho que se mostrou fundamental em dias de isolamento. “O que vocês fazem durante a quarentena?”, questiona a artista para logo responder enumerando práticas culturais como assistir um filme, escutar música, ler um livro, dentre outras atividades. “São ‘pequenos’ e ‘grandes’ artistas que estão trazendo algum alento para as pessoas neste momento”, defende sua parceira de atuação, a também atriz Rebeca Figueiredo.

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Palco na rua e a plateia, em casa: Sanfoneiro Vitor Caffaro e violonista Alexandre Moraes se apresentam no projeto de serenata “Ser-estar” (Foto: Fernando Priamo)

“O momento é propício a uma união e engajamento da classe artística, que em situações normais talvez não fosse capaz de ser promovida. Acredito nisso porque, muito além das pessoas que produzem arte e de toda a cadeia de trabalho que envolve os profissionais da cultura, as pessoas estão em casa tendo que lidar com o tédio da superficialidade das redes sociais. Com a semelhança entre todos os dias e todos os afazeres domésticos enquanto estão confinados. Estão tendo que lidar com suas percepções mais solitárias acerca da própria existência e com as angústias e consequências psicológicas desse processo. O custo humano dessa pandemia é muito alto em um nível individual, e a arte é um mecanismo de sobrevivência nesse sentido”, avalia o artista e educador Frederico Lopes.

Essa busca por sobrevivência Alexandre Moraes vê nas janelas à sua frente. Seus espectadores parecem buscar ar. E não seria isso? “Agora que já fizemos algumas serenatas temos percebido outras coisas que não pensamos antes: o compartilhar, por exemplo. Temos recebido convites para tocar por motivos de aniversários, aniversários de casamento, isolamento de idosos e etc. Mas a apresentação não acontece num espaço privado. Então os vizinhos aparecem nas janelas, os pouco transeuntes são surpreendidos. Além do silêncio das ruas ajudar muito, temos tido poucos carros circulando. Então aparece outra capacidade da arte que é a criação de comunidade. Compartilhar é estar em comunidade”, aponta o violonista.

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Formas de estar junto quando se está isolado

Ainda que o espectador seja parte essencial no processo, não foi o mote do trabalho que as atrizes Giul Abreu, Pri Helena e Rebeca Figueiredo resolveram apresentar na plataforma Grilla, cujas contas no Instagram e no YouTube reúnem trabalhos desenvolvidos durante e para o período de isolamento. Havia uma pressa em dizer o que parecia indizível. “Lançamos o desafio ‘Isolamento in’verso’ que consiste na postagem de um texto, de assuntos gerais, e na gravação do desafiado lendo/ recitando esse texto que foi escrito. O objetivo é que possamos manifestar nossas inquietações através da escrita, incentivar a produção de textos autorais e, principalmente, ativar a mente e o coração durante essa dura quarentena, de tantos medos e incertezas. Compartilhar os desejos e as angústias, acredito eu, é terapêutico e aproxima as pessoas. Se não podemos nos abraçar, que tal a gente dividir palavras bonitas? Quando a rede começa a se formar, vemos todo mundo junto de alguma forma: artistas, aspirantes a poetas, pessoas que nunca se aventuraram na escrita. É lindo e surpreendente. Tenho pensado na quarentena como um recomeço. É importante manter a esperança para não pirar”, brinca a juiz-forana radicada no Rio de Janeiro Pri Helena, que viu na capital fluminense um espetáculo ser cancelado minutos antes das portas se abrirem, com todo o público à espera e atores prontos para entrar em cena. Viu também colegas de profissão se desesperarem diante da escassez. Na angústia, retornou para a casa mineira e começou a produzir.

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Atrizes Rebeca Figueiredo, Pri Helena e Giul Abreu formam a Grilla, plataforma com trabalhos cênicos e poéticos para os dias de isolamento (Foto: Divulgação)

Em parceria com o Corpo Coletivo e os artistas d’OAndarDeBaixo, Pri também participa do projeto TeatroAntivírus, no formato de uma websérie feita por aplicativo de videoconferência. “Fazemos um metateatro em parceria com essa galera que sempre foi pra mim um exemplo gigantesco de reinvenção do teatro e suas possibilidades. Estamos fazendo lives sobre a cultura, compartilhando nosso processo do próximo espetáculo com o público. Estamos experimentando essa nova linguagem, esse mundo que é bem novo pra gente”, conta ela, certa de que o momento evoca rompimentos, transfigurações e rearranjos. O que faz é teatro? Ou seria audiovisual? Ou, ainda, o que ainda não foi nomeado? “Não temos o calor presencial do público, a troca de energia que acontece dentro do espaço de encenação. Também não temos o recurso do ‘corta’ ou ‘grava em outro plano’, encontrado nas produções cinematográficas. Não tem uma direção muito direta porque estamos sozinhos, isolados uns dos outros. Não tem toque, não tem abraço. Muitas vezes apresentamos ao vivo, sozinhos, com recursos precários, uma internet não tão boa. São inúmeras dificuldades desconhecidas que vão surgindo ali, no momento. Não temos domínio sobre essa tecnologia. É uma aventura”, pontua ela.

“Vivemos em constante movimento, buscando inovar. Seja por nossas inquietações, seja pelas condições precárias da cultura na nossa sociedade. Acho que esse momento só reforça um ciclo histórico de modernização do teatro. Com o passar dos anos e com os adventos da tecnologia, sempre se especulou a finitude do teatro e, ainda sim, seguimos fazendo teatro, subindo em palcos, em pleno século XXI. Acredito que esse é mais um momento em que a leitura de contexto pode vir a transformar o fazer teatral nos próximos anos e que a tecnologia pode ser uma importante aliada, em conjunção e não exclusão”, aponta Rebeca Figueiredo, com quem divide o trabalho na Grilla.

A tela que media agora e já mediava antes

Num sistema que privilegia a indústria hollywoodiana em detrimento do cinema nacional, o momento também pode ser propício para a formação de novos olhares. Excluídos os distribuidores e tomando a internet como a grande tela, produções que antes sequer chegavam ao circuito estão a um clique dos espectadores. Contínuo e crescente, o movimento de disponibilização on-line de obras autorais do audiovisual brasileiro cresceu bastante nas últimas semanas, seja por iniciativa de serviços de streaming, seja pelos próprios cineastas, como a mineira de Cataguases radicada em Juiz de Fora Bruna Schelb Corrêa. A roteirista e cineasta lançou este mês, no ambiente virtual, seu último curta-metragem, “Mái áis”, que começava a rodar festivais quando a pandemia se alastrou pelo mundo. Integralmente gravado no Bairro São Mateus, o filme oportunamente trata da colonização que determina gostos e hábitos. O que é genuíno e o que é fruto de influência?, pergunta-se a obra de menos de dez minutos.

Cena de “Mái áis”, filme de Bruna Schelb que ganhou as redes após ter trajetória em festivais paralisada por conta da Covid-19 (Foto: Luis Bocchino/Divulgação)

“Antes disso tudo acontecer, o isolamento, a quarentena, muitos de nós já estávamos isolados em nós mesmos. Com a conectividade que nosso tempo oferece, muitas vezes acreditamos estar ligados, em constante interação, mas por vezes noto que estamos mais fechados do que nunca dentro daquilo que já conhecemos. Revemos filmes que já conhecemos, lemos trechos de livros, notícias em portais com posicionamentos com os quais concordamos. Acho que perdemos muito a capacidade do diálogo com o diferente, o encontro com o novo e isso não é culpa de ninguém. Assim como dentro do filme as interações da menina com o mundo estavam sendo mediadas pela TV, nossas interações com o mundo estão muito baseadas nas telas, no celular”, observa Bruna, que vê como única solução para tal problema a disposição para o debate. “(É preciso) procurar se desvencilhar do hábito, de se isolar em si mesmo e em tudo aquilo que nos é confortável (opiniões, referências, rotinas).”

Making of de “Mái áis”, curta-metragem de Bruna Schelb todo gravado no Bairro São Mateus, em Juiz de Fora (Foto: Luis Bocchino/Divulgação)

Levar um trabalho para a heterogeneidade e amplitude da internet também representa essa abertura ao debate. Logo que disponibilizou “Mái áis”, Bruna recebeu mensagens propondo a discussão da narrativa e interpretações distintas da sua. “Isso, então, me impulsionou a colocar em streaming mais dois filmes da minha produtora, a Filmes do Mato, logo em seguida: o curta-metragem de 2019 ‘A vida é coisa que segue’ e meu longa-metragem ‘Imo’, de 2018”, conta. De acordo com ela, existe uma potência ainda pouco explorada no acesso amplo às obras nacionais. “Para o espectador faz uma grande falta se ver em uma tela de cinema, ouvir histórias que são nossas. Isso tudo faria parte de uma construção de identidade que atualmente é deixada na mão dos ‘Vingadores’, esses filmes que podem ser ótimos entretenimentos mas que não são nossos e não querem ser nossos, mas querem nossas salas e nosso dinheiro”, analisa a cineasta, que se encontrou no cinema marginal e nas chanchadas. “Entender que nossas questões, as do brasileiro, são particulares, e que vemos o mundo com outros olhos influencia demais a criação”, diz, como a corroborar o discurso do próprio filme.

A rede dentro da rede e fora dela

Senão na rede, ao menos em rede. O período prescinde de uma união entre artistas tanto para que seja possível a retomada, quanto para que o enfrentamento à crise tenha o menor impacto possível, sugere o artista e educador Frederico Lopes, um dos coordenadores da Bodoque – Artes e Ofícios, que produz a Revista Trama. Na publicação virtual, Frederico propõe não apenas a reflexão sobre o momento, mas, a divulgação de trabalhos de artistas locais. “Pensamos em criar uma abordagem que oferecesse uma oportunidade segmentada para empresas e pessoas que precisam de trabalhos de ilustração, design, escrita criativa, revisão etc. Assim, essas demandas poderiam encontrar artistas e trabalhadores da cultura qualificados para executar os serviços. O único papel da Trama nessa interação é tentar conectar esses artistas com essas possíveis demandas de trabalho criativo, aumentando a visibilidade dos artistas e tentando abrir oportunidade de vender seus trabalhos ou prestar serviços criativos para outras pessoas ou empresas”, explica ele, apontando para uma imediata inviabilização das estruturas e metodologias de trabalho dos artistas.

Artista e educador, Frederico Lopes criou a iniciativa de divulgar o trabalho de artistas locais em sua revista virtual Trama (Foto: Brenda Marques/Divulgação)

“Com base nos contatos que estamos recebendo, é possível observar reações diferentes com relação ao custo psicológico de uma quarentena para os artistas. Alguns colegas, apesar da relação solitária com sua obra no momento do ato criador, estão enfrentando um lapso criativo, com dificuldade para aguçar sua inquietação e produzir. Outros colegas se mostram um pouco mais resilientes e tentam encontrar alternativas para escoar sua produção, como apresentações em lives nas redes sociais, vendas de vouchers para adquirir suas obras após a quarentena ou criando conteúdo com o objetivo de engajar uma audiência capaz de financiar seu trabalho artístico”, ressalta o artista e educador, surpreendido com o volume de artistas que procuraram a iniciativa.

O cenário diferente, com lojas fechadas e movimento reduzido não é o que de imediato estimula a cineasta Bruna Schelb Corrêa à criação. “O que tem despertado meu ímpeto criativo, no entanto, são as pessoas. Como estão reagindo a isso tudo, quais as narrativas estão sendo criadas como negação ou um mecanismo de defesa, como mudam as interações em um momento como este. Me emociono com micronarrativas que às vezes vejo no jornal ou escuto de alguém, me enfureço com outras”, observa ela. Para Frederico Lopes, “os substratos artísticos que alimentam a inquietação do artista, se encontram precisamente nas suas vivências, experiências (estéticas ou não), e na busca por elementos que atendam às suas potencialidades de experimentação. Nesse sentido, o isolamento não afasta só o artista e a sua obra de seu fruidor, mas também o afasta de um universo de possibilidades de encontrar esse substrato para sua criação.” O ineditismo imposto à cena cultural pelo coronavírus, portanto, forma novas criaturas e também novos criadores.

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