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Artista obsessiva-compulsiva

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Logo após o portão, uma roleta de ônibus antiga. Na entrada da casa, uma balança de teto envelhecida, servindo como suporte para um vaso de planta. Na sala de jantar, uma coleção de filtros de louça em diferentes cores. Na sala de estar, estantes guardam coleções de cabeças de manequins, ferros de passar movidos a carvão, conchas, relógios e palhaços. Na área externa, um conjunto de bonitas gaiolas vazias se espalham pela parede. A casa de Valéria Faria reflete a artista, que, por consequência, retrata em seus trabalhos a vida como esse amontoado de afetos e lembranças. Enorme e repleto de objetos e cores, o ateliê, no segundo andar da residência na Rua Guaçuí, no Bairro São Mateus, preserva uma estrada que a todo momento esteve aliada à universidade.

Nova pró-reitora de Cultura, anunciada para o cargo na última quarta, após a aposentadoria do também artista e professor Gerson Guedes, Valéria assume, agora, um dos maiores desafios de sua carreira. Num momento, segundo ela, de mais tranquilidade e estabilidade, o papel lhe parece instigante. Tanto que fala e fala, à vontade. Em sua mesa de trabalho no ateliê, em meio a um aparente caos, a artista recorda sua trajetória e mostra-se confortável e organizada. Aos 45 anos, com batom, brinco e unhas na cor roxa, a mulher de longos cabelos louros, mãe de Sofia, 18 anos, Nina, 15, e Lucas, 10, sorri repetidas vezes. Como se sente?, pergunto. “Agora estou ressuscitando. Vou fazer 25 anos de carreira no próximo ano e quero muito fazer uma exposição, por isso estou catapultando tudo o que fiz. Meu trabalho é um só, mudo poucas coisas”, diz.

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No lugar de Arlindo

Aluna do Colégio Academia, Valéria Faria fez o curso de artes industriais no Centro de Ensino Superior (CES/JF) e começou a dar aulas em escolas públicas, quando decidiu entrar para o curso de educação artística, no qual se formou em 1992. No ano seguinte, um de seus maiores mestres e referência ainda latente, Arlindo Daibert, despediu-se precocemente. Em 1994 ela foi aprovada para ocupar a cadeira dele na universidade. “Foi o Arlindo que me introduziu no universo da literatura com as artes visuais. Com ele fui gostando de trabalhar a palavra e a imagem. Logo que entrei para dar aulas, foi difícil, porque lecionava para os meus amigos”, recorda-se. Dois anos depois, foi para a Universidade de Brasília fazer o mestrado em tecnologia da imagem.

Quando voltava da capital federal, encontrou a então reitora Margarida Salomão num aeroporto, e pouco tempo depois foi convidada para assumir a Gestão Cultural, pasta que antecedeu a Pró-reitoria de Cultura. “Dos meus 20 anos de UFJF, passei mais da metade ligada às questões administrativas. Sempre fiz coisas das quais gostei muito, mas também aceitei trabalhos para fazer fluir o que era necessário”, comenta ela, que em 2001 entrou como diretora do Centro de Estudos Murilo Mendes, onde ficou até que a instituição se transformasse em Museu de Arte Murilo Mendes, no prédio onde funcionou a antiga reitoria. Numa agenda de pelo preto com corações rosas, Valéria mostra as anotações que fez para uma de suas reuniões com a reitora: “Em uma pauta, estava escrito ‘Espaço reitoria – transferência do centro de estudos para a reitoria’. Foi ali que pensei na criação do museu”, conta.

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A sugestão foi recebida com entusiasmo. “A grande dificuldade foi convencer as pessoas de que era importante que a reitoria fosse para o Campus. Quando elas saíram, montamos o museu em 45 dias”, lembra, apontando os restauradores Aloísio Nunes Castro, Valtencir Almeida, Lauro Bohnenberger, o artista e professor Ricardo Cristofaro e o curador Paulo Alvarez como os companheiros na empreitada de erguer o museu. “Peguei a planta do que era a reitoria e fui desenhando, com lápis de cor de criancinha, mostrando o que funcionaria em cada espaço. Do jeito que organizamos, o arquiteto deixou. Fiz as plaquinhas do banheiro, tinha o código das cores das paredes, pensei em cada detalhe. Para mim, é um filho meu”, afirma. O museu foi inaugurado em 20 de dezembro de 2005, e, em 10 de fevereiro de 2006, Valéria foi embora para Paris fazer seu doutorado.

Rastreando o tempo

Ao longo de todo o tempo, Valéria produziu com constância e entrega. Em seu norte, as questões da memória. “O gosto pelo antigo adquiri com o Ricardo (Cristofaro), mas ele não é descomedido, é centrado e organizado. Eu não, se vou na feira, volto com ela inteira na mochila. Essa relação com a memória também vem de família, porque meu pai é um colecionador, mas é um acumulador desses que têm coisas até o teto”, ri, citando Cristofaro, diretor do Instituto de Artes e Design, com quem foi casada por 14 anos e de quem fala com muito respeito, admiração e carinho. Da pintura, aprendida com Cristofaro, ao objetos, a artista criou uma narrativa emocionante sobre o tempo.

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Em “Vou rastreando o tempo para exumar alguma coisa do limbo”, série ainda inédita, registra frutas, folhas e flores, recolhidas no seu jardim e manipuladas à mão (com costuras) e digitalmente. O trabalho remete a “Para sempre Singer”, mostra de 2003, na qual apresentava objetos familiares numa ode à própria casa. Leitora e amante do memorialista Pedro Nava, escritor que lhe rendeu uma elogiada exposição em comemoração ao centenário, em 2003, Valéria, mesmo atenta ao presente, não consegue deixar de olhar para trás. Nesse sentido, assume uma função dentro da universidade se comprometendo a não recusar os passos já dados.

“Ainda preciso entender qual é a perspectiva da gestão atual em relação a esses equipamentos. Todos os espaços da UFJF são públicos, e precisamos oferecer à comunidade essa noção. Precisamos acabar com um certo distanciamento das pessoas. É necessário ir aos museus como atividade corriqueira, e não como um evento”, discursa. De acordo com ela, falta há muito tempo a integração do Instituto de Artes e Design com a cultura. “Quero que os cursos, estudantes e professores tenham mais entrada e visibilidade.” Em relação ao museu do qual foi uma das principais incentivadoras, surpreende: “Acho que o Memorial e o Mamm podem se tornar um complexo cultural”. Sem projetos concretos, Valéria confia no tempo, seu parceiro de trabalho. E, com ele, quer produzir mais e mais. A colecionadora, que fez de sua arte o acúmulo sem se deixar excessiva, ainda tem espaços na casa para preencher.

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