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A saudade que a baiana tem

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Há mais de 40 anos Dione escolheu Juiz de Fora, a cidade que lhe ofereceu “uma redinha para deitar” (Crédito: Marcelo Ribeiro)

Um acarajé comum é recheado de vatapá e camarão seco. O acarajé da Dione é recheado de vatapá, moqueca de bacalhau, caruru, salada, camarão seco, mais as lembranças de sua Vitória da Conquista, da mãe Dió, do pai Pedro, dos 13 irmãos e de um vento sudoeste que sentiu ao pisar em Juiz de Fora, há mais de quatro décadas. O acarajé de Dione tem sabor de saudade. “Até a temperatura daqui faz lembrar a de Conquista. Lá também faz muito calor de dia e, na parte da noite, começa a mudar, e esfria. Não é só isso. O que me cativou foi a acolhida também. Não é dizendo que o baiano é descansado, mas se der uma redinha para ele deitar é muito gostoso, e essa cidade me ofereceu um cantinho para ficar sossegada”, diz a mulher vestida de baiana, diante das panelas com os recheios da iguaria que vende, às quintas, numa padaria na esquina das ruas Santos Dumont e Ambrósio Braga, no Granbery, e, às sextas, num posto de gasolina localizado na junção da Rua Padre Café com a Avenida Itamar Franco. Sua barraca, contudo, só funciona no período noturno. Ainda que se assemelhem, Juiz de Fora não é Vitória da Conquista. “Acarajé lá é toda hora. O pessoal, de manhã, se não tomou café, come acarajé. O café é acarajé. Almoço é acarajé. Lanche, janta, qualquer momento tem acarajé”, sorri, sem revelar a idade, a mulher que, de Minas, viu o casamento dar quatro frutos e acabar, para um novo se iniciar. De Minas, viu nascerem seus nove netos, os pais irem embora, a família se espalhar, e o sotaque resistir ao tempo. “Tem jeito não. Tem que ver quando estou nervoso. Aí a baiana chega forte em mim”, brinca. “A baiana é meio apimentada, mas dá certo”, acrescenta o marido Ronaldo, com quem Dione está casada há 13 anos.

A mãe da baiana

Quando pequena, ouvia: “Hoje quem vai quebrar é você, menina!”. E Dionília Silva de Oliveira pegava no batente. “A gente chegava do colégio, e meu pai falava isso. Havia uma escala para cada um ir para a máquina quebrar uma saca de 60 quilos de feijão fradinho. Desde pequenos sabemos cozinhar. A gente ficava na barraca e também fazia tudo. Meu pai era daquele tipo durão”, recorda-se ela. “Minha mãe criou 14 filhos com acarajé. Meu pai ajudava ela e fazia quebra-queixo. Ele também tinha uma frota com 20 carrinhos de pipoca na Bahia. Minha mãe trabalhou com acarajé por mais de 60 anos, começou cedo, morreu aos 76, há quatro anos. Eu saía do colégio, tomava banho e ia para a barraca. Meu pai também trabalhava na feira, onde tinha um depósito de frutas, e eu o ajudava. Ficava lá, pequenininha, no meio da feira, atrás de um monte de laranjas, vendendo o cento de frutas. Desde cedo ajudava muito meus pais e sempre estive próxima das pessoas”, conta a filha da conhecida Dona Dió do Acarajé, a primeira baiana do acarajé de Vitória da Conquista, cuja barraca, hoje, é tocada por alguns dos 13 irmãos, entre adotados e biológicos, de Dione. Descendente de quilombolas, a matriarca Dionízia tornou-se uma das mulheres mais importantes para a cultura da cidade, justamente por reafirmar e defender suas raízes negras, seja fundando a principal escola de samba de Conquista, seja vestindo-se de baiana e vendendo o prato típico ou, ainda, comandando um terreiro de candomblé onde era mãe de santo. “Já tentei muitas vezes ir à igreja, mas nosso meio é difícil sair daqui (mostra o braço). Todo mundo é espírita. Temos um respeito muito grande por todas as religiões, mas nossa religião está no sangue”, emociona-se Dione.

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O suor da baiana

Quando saiu da Bahia, Dione era muito jovem e faltavam-lhe apenas dois anos para completar a formação de professora. Mas não queria dar aulas. Queria ser artista. “Trabalhava na Feira de Ipanema, no Rio, vendendo artesanato. Conheci um fuzileiro naval de Pernambuco e, como toda família tradicional, tive que voltar para minha terra para me casar. Éramos humildes mas gostávamos de tudo certinho. Antes do casamento conhecemos um pessoal de Juiz de Fora. Vim visitar e foi paixão na hora. Depois que me casei, então, vim direto morar aqui. Já morei na Rua Luiz Detsi, na Rua Luiz Perry e hoje moro para os lados do Cruzeiro do Sul. Aqui continuei com o artesanato. Quando uns engenheiros de uma grande empresa vieram e conheceram meu trabalho, resolveram levar para Miami, e aí despontou”, lembra. “Trabalhei 30 anos com artesanato e exportação. Vendia bolsas e outras peças no Parque Halfeld e também enviava para Alemanha, Espanha e outros países”, completa a mulher que, em uma semana, fazia três feiras em cidades diferentes. A Bahia, porém, era apenas um retrato na parede. “Gosto da linha indiana. Faço um trabalho lindíssimo. Fui independente por muito tempo, mas tive uma loja, a primeira de roupa indiana de Juiz de Fora, na galeria Dr. João Beraldo”, diz ela, que abandonou o artesanato e, há cerca de dois anos, retomou as raízes. “Minha vida sempre foi o trabalho.” E haja trabalho para tanta massa e tanto recheio. “Fazer a massa gasta água pra caramba. A gente vai esfregando o feijão com a mão. Olha minha mão! (mostra) A gente esfrega e bota água até sair a casca toda.”

O tempero da baiana

Quando tropeçou, Dione escolheu permanecer no lugar que lhe acolheu. “Nunca pensei em descasar. Sempre achei que meu casamento fosse para a vida inteira. Mas segui. Nunca fui de ter muitos amigos, para sair, ir a festas. Ninguém nunca me encontrou bebendo em mesa de bar. Nunca fui disso. Saio mais com meu marido e meus filhos. Não tenho o hábito da bebida. Tenho o hábito do trabalho. Construí uma casa para meus filhos, no Jardim América, e estou construindo outra onde moro hoje, em cima da casa da minha sogra. Comprei um terreno muito grande na Rua Ibitiguaia, no Santa Luzia, com o dinheiro da venda de dois terrenos que tinha na Bahia. Nele eu quero fazer meu restaurante”, conta, entre os bolinhos que parte e recheia. Em casa faz comida baiana? “Vou te contar: muito pouco. É muito difícil. E quando faço, faço para mim. Mas meus temperos não deixo de fazer. Meus filhos, apesar de não serem baianos, também não conseguem ficar sem. Faço os pirões muito comuns por lá. Em setembro vou buscar carne-seca. Meu sonho é mostrar tudo o que sei fazer. O tempero da Bahia é diferente.”

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