O Google Street View precisa voltar e percorrer aquele pedaço da Rua Diva Garcia, no Linhares, onde está a Escola Estadual Dilermando Costa Cruz. Precisa voltar e registrar o colorido que agora tomou conta do extenso muro de um já esquecido e monótono verde claro. Precisa voltar e fotografar em detalhes a rua invadida pelo grafite. A rua dominada por uma expressão que, pouco a pouco, faz da cidade uma galeria a céu aberto, democrática na fruição dos mais diversos públicos e também no acolhimento de seus artistas criados e formados numa periferia que prescinde da resistência.
Democrática, a arte do spray espalha-se de Norte a Sul pela cidade. Está na Avenida Brasil, no painel que colore o muro de acesso à Ponte Wandenkolk Moreira, no Ladeira, e também no Bairro Vina Del Mar, próximo ao Centro de Futebol Zico, onde o grupo Underground Crew desenvolveu um impactante mural com referência ao clássico game Mario Bros. Está no preciso trabalho de André Aneg na Avenida Itamar Franco entre a Getúlio Vargas e a Batista de Oliveira, e também no delicado desenho de Davidson Lopes (Bula Temporária) numa casa abandonada na Rua Monsenhor Gustavo Freire. A Tribuna percorreu 14 pontos pela cidade para confirmar a silenciosa, porém expressiva, formatação de uma verdadeira cartografia elaborada no colorido dos sprays.
A cartografia do spray
Desde a infância, o moleque desenhava. E o irmão incentivava. Um dia, enquanto os dois assistiam um filme, um grafite na parede chamou atenção do pequeno. O mais velho logo recorreu ao amigo da mesma rua, que dava aula do negócio. Igor Moreira de Abreu tornou-se aluno de João Batista Medeiros. Diante dos muros, com sprays em punho, são Tenxu e Ileso, aluno e professor que se tornaram sócios e sinônimos de grafite em Juiz de Fora. “Comecei na Casa do Pequeno Artista, era aluno. Hoje trabalho com o Ileso. Ele é presidente da Associação Juizforana de Hip Hop, e eu, vice-presidente, temos uma loja na qual vendemos tinta spray, temos uma firma onde fazemos grafite comercialmente e trabalhamos juntos no projeto Gente em Primeiro Lugar, da Funalfa. Eu dou aula em nove bairros, e ele, em outros. Temos uma parceria para a vida”, conta Igor Tenxu, autor do leão pintado na Avenida Itamar Franco, próximo ao número 642.
Moradores do Bairro São Bernardo, os grafiteiros desenham uma realidade de perspectivas. “Vejo que o grafite me salvou. Na época em que conheci, em 2005, eu tinha 15 anos e hoje conto nos dedos das mãos quantos amigos de infância ainda estão vivos. A maioria foi morta pelo tráfico. Moro em uma região de criminalidade muito alta. Eu estava inclinado a ir por esse caminho”, emociona-se Tenxu, que hoje sustenta a si mesmo e a sua família com o grafite. “O grafite tem esse cunho social, protestante, visionário, porque foi criado por negros e latinos em Nova York que não eram vistos, estavam à margem da sociedade. O grafite é uma forma de mostrar existência. Por isso a escrita. Esses jovens queriam assinar seus nomes em todos os lugares para serem notados e reconhecidos”, completa, contando sobre uma das expressões mais populares do hip-hop.
“É uma ‘responsa’ representar a cultura hip-hop. O grafite é uma voz visual, uma ferramenta de troca, informação, conteúdo, alerta. É uma ótima ferramenta de trabalho para comunicar. Geralmente a gente tenta levar aos lugares que mais precisam de cor, de cultura”, acrescenta Ileso, que há mais de duas décadas defende a arte na cidade. Viu o rolé ganhar tom e força. Se antes eram poucas as tintas para um simples desenho, hoje ele trabalha com cinco tons de amarelo, seis de verde, para não falar de todo o restante de uma complexa paleta.
Para Davidson Lopes (Bula Temporária), autor de seres fantásticos como o gato que recebe quem entra na Casabsurda (no Granbery), não é só o desenho que forma o grafite. O ato também faz parte. “Várias coisas acontecem na rua, um monte de pessoas passando, carros, barulho. Um milhão de coisas acontecem enquanto você pinta”, diz. O corpo também faz parte. “Quando está usando o spray, o corpo mexe junto. Para fazer um movimento linear, é preciso firmar o corpo, para acompanhar o braço e o dedo. A pressão com que aperta influencia na quantidade de tinta que sai, se quer um traço fino ou grosso. Como meu desenho é mais solto, meu traço é mais torto, posso errar”, ri.
Grafite é o visível e o invisível
“A gente já apanhou, já levou pedrada. O grafite não é só o que é bonitinho, mas é também a contestação”, defende Ileso. “O grafite é uma resistência. A gente não quer morrer no cinza”, reflete Davidson, para logo completar: “Não consigo entender porque as pessoas se preocupam tanto com a pichação e não se preocupam com o ar que respiram o dia inteiro. Se preocupam com a pichação e não se preocupam com a quantidade de farmácias que existe na cidade. A tinta na parede pode estar infringindo uma lei, mas não faz mal para ninguém. O grafite existe para mudar a cidade, deixá-la colorida, marcada, porque a gente tem uma tendência a ficar cinza e enfumaçado.”
Ainda que eventos como a edição deste ano do Purencontro, que coloriu na primeira semana de dezembro a fachada da Escola Estadual Dilermando Costa Cruz, no Linhares, indiquem um crescimento da expressão em Juiz de Fora, o caminho ainda é de algumas resistências e insistências, principalmente. O evento anual, por exemplo, reuniu 200 grafiteiros de diferentes cantos do país, de Porto Alegre a Brasília, passando por Goiânia, Rio de Janeiro e vizinhos da Zona da Mata mineira, oferecendo a todos alojamento, alimentação, spray e camisa, menos cachê. Ainda assim, grafite é ofício. De acordo com a Associação Juizforana de Hip Hop, na cidade, 20 artistas atuam assiduamente na cena, sozinhos ou em grupos como o Setor 276 e o Underground Crew.
“Vejo o grafite em outras cidades e estados e percebo que Juiz de Fora ainda é muito conservadora, não só com o grafite. Esses 20 artistas são de qualidade e nível técnico muito altos. Por isso temos painéis vistosos”, comenta Tenxu, ponderando uma crescente valorização, inclusive, dos órgãos públicos. “A Prefeitura tem abraçado o grafite, procurando e apoiando a gente, e, até, bancando trabalhos, como o da ponte do Ladeira”, conta ele, que, em média, gasta R$ 1 mil apenas em tintas para a realização de um desenho. É com o apoio do município, aliás, que a associação espera inaugurar, no São Bernardo, o Centro Cultural e Profissionalizante Amadeu Rossignoli.
Segundo o presidente Ileso, a casa, cedida pela PJF, está 95% reformada e já em funcionamento, com aulas de grafite, desenho e breakdance (o grupo Jotaefe Crew é parceiro no espaço). “Eles estão formando novos grafiteiros e, além disso, formando cidadãos mais humanos, com contato com a rua, que é um lugar que não deveria, mas nos adoece”, pontua Davidson, apontando para uma cena em transformação, onde os muros não são barreiras, mas inícios.
Estilos de grafite
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Assinatura, conhecida no Brasil como pichação
Bomb
Letras mais encorpadas com, no máximo, três cores
Wild style
Letras ainda mais encorpadas e detalhadas, com degradê, volume, sombra e brilho
Free style
Personagens, paisagens, perspectiva e outros desenhos para além das letras
3D
Desenhos com letra ou outras formas em terceira dimensão
Realismo
Desenhos que simulam a hiperrealidade