O que está sendo debatido na política muita gente sabe. Já o que está sendo discutido no cinema contemporâneo brasileiro é o que os espectadores da Mostra de Cinema de Tiradentes procuram saber. Este ano, a partir desta sexta (18), as questões se fundem na 22ª edição do festival. Todo corpo é político, sugerem temática, homenagem, filmes, debates e apresentações culturais. E não há cinema sem tais corpos. Como não há cinema que não conforme outros e novos corpos. “Atravessamos um momento muito complexo, muito tenso, de crise. A política, entendida como algo que faz parte da vida, está muito presente nos filmes. Temos desde produções que tratam do desalento, da depressão, do suicídio, até os mais potentes, que com o cinema tentam propor saídas, novas possibilidades, imaginar novos mundos”, reflete Tatiana Carvalho Costa, que ao lado de Pedro Maciel Guimarães e Camila Vieira e sob a coordenação de Cleber Eduardo, selecionou os 78 curtas-metragens que compõem a programação.
“Entre a desesperança e a proposição de novas possibilidades de mundo temos uma quantidade enorme de pessoas se colocando”, pontua Tatiana. “E se vivemos no país e no mundo um momento em que as identidades diversas se afirmam, a despeito de um histórico de opressão, temos uma sociedade que é, historicamente, machista, racista e LGBTfóbica por um lado, e, por outro, posturas antimachistas, mais feministas, antirracistas, de afirmação de identidade de gênero e orientação sexual. Isso aparece na sociedade e, inevitavelmente, também está nos filmes. Temos um conjunto muito diverso de temas, proposições, modos de fazer e de sujeitos. Temos filmes dirigidos por travestis, uma quantidade significativa dirigidas por pessoas negras e filmes de pessoas indígenas. Além, óbvio, de filmes dirigidos por pessoas brancas e cisgênero. Esse conjunto, nessa diversidade, vai dizer sobre a pulsação do nosso mundo. Por isso faz sentido dizer que são filmes políticos.”
O universo múltiplo – e em certa medida de resistência – visto na seleção de curtas-metragens surge em outra configuração na seleção dos 28 longas e dois médias-metragens. “Nos longas temos uma dificuldade maior de ter uma diversidade de pessoas produzindo. Ainda é uma dificuldade no Brasil chegar ao longa-metragem, apesar dos avanços tecnológicos”, comenta o curador Victor Guimarães, que dividiu o trabalho com Lila Foster, também sob coordenação de Cleber Eduardo. Enquanto entre os curtas mais de 90 dos inscritos eram assinados por negros, entre os longas foram apenas 12, destaca Guimarães, acrescentando, ainda, que nenhum dos inscritos era assinado por um transgênero, o que se deu entre os curtas. “Ficamos muito felizes de ver que a presença de mulheres diretoras aumentou muito”, pondera o curador, ressaltando a multiplicação de corpos distintos na frente e atrás das câmeras, além dos novos corpos criados pelo cinema.
As narrativas
Se no início do novo século a grande questão que rondava o cinema contemporâneo brasileiro era a relação entre documentário e ficção, para o curador Victor Guimarães o conteúdo alcançou a forma em importância. “Essa discussão se desdobra em formas que ainda não estavam sendo trabalhadas. Essa tendência é muito visível em vários filmes”, pontua ele. Para a curadora Tatiana Carvalho Costa, o que de mais forte ficou dos 806 curtas que ela e sua equipe assistiram foi a tentativa de, através do cinema, fazer uma leitura do estado de coisas da atualidade. “Temos filmes que se estruturam em uma narrativa clássica e vão dar conta do enfrentamento de algumas questões. Alguns chegam a ser subversivos, apropriando-se do clássico para colocar outros corpos no lugar do mocinho. Temos um melodrama, uma história de amor, envolvendo uma mulher trans. Temos filmes de função especulativa tentando projetar saídas para o Brasil. Por outro lado temos filmes radicalmente experimentais, sobretudo para tentar dizer que são sujeitos que não se veem no cinema, nas formas narrativas clássicas e começam a inventar novas maneiras. Temos, também, filmes que tentam criar novos desfechos para velhas histórias, novos lugares, reconfigurando, reconstruindo, desconstruindo. Todas as narrativas são muito coerentes com as propostas de leitura de nosso mundo”, afirma ela.
Termômetro da cena nacional, a Mostra de Cinema de Tiradentes também é retrato do cinema em Minas Gerais. Segundo Tatiana, duas mostras de curtas-metragens ajudam a compreender o panorama atual no estado. Enquanto a “Cena Regional” apresenta filmes com um forte “tom de causo tipicamente do interior”, a “Foco Minas” reúne cineastas muito premiados, como Ricardo Alves Jr., que exibe “Russa”, em parceria com João Salaviza, sobre uma mulher que retorna à sua terra natal. O diretor ainda participa do festival com o longa “Elon não acredita na morte”, que faz sua pré-estreia nacional, e o média-metragem “Vaga carne”, dirigido com a homenageada Grace Passô e exibido às 21h desta sexta, na cerimônia de abertura. Ainda na “Foco Minas” estão os premiados cineastas mineiros Juliana Antunes (de “A Baronesa”), Mariana Fagundes Azevedo, Ana França, Marco Antônio Pereira, Desali e Ana Carolina Soares. “Entendemos que o elevado nível do estado permite fazer duas mostras só com cineastas mineiros”, analisa Tatiana. “Esse cinema feito por jovens cineastas dialoga com a tradição, em especial com o cinema marginal, e também com o realismo, e não para por aí”, pontua, citando os múltiplos corpos e influências que compõem uma complexa e rica paisagem que toma conta de outra complexa e rica paisagem, Tiradentes.
Adiante!
Definida tão logo começaram as inscrições, a temática “Corpos adiante” reflete a ideia de tratar as margens e também o centro, e, sobretudo, o que se impõe diante dos olhos. “No cinema, desde o início, os corpos sofreram tanto estigmas pela forma de visibilidade quanto pelas ausências na construção de narrativas e imaginários. No campo do simbólico, como na carnalidade, cada corpo é um, único e ao mesmo tempo social, parte de um grupo, de uma origem, de afinidades. Também é uma presença material, com interioridade, com gestos, com ritmos, com cores, formas, vozes e investimentos, agentes, caixas de ressonância e proposição para o futuro”, escreve o coordenador curatorial Cleber Eduardo em sua defesa da temática. “Ela não foi um critério, seria injusto com a produção que não se encaixava na temática, mas acabamos percebendo que ela se relaciona com os filmes. Enxergo uma simbiose muito grande”, comenta Victor Guimarães.
Na mostra temática são diferentes os corpos adiante: “Bimi, Shu Ikaya” é um filme indígena, produzido no Acre, retratando uma mulher que desafia as convenções de gênero e se torna líder de sua aldeia; o paulista “Corpo quilombo” é composto por performances no espaço público que se relacionam com textos de importantes figuras da cultura negra brasileira; já “Inferninho” é um longa inventivo sobre um bar fora do tempo e do espaço, onde há personagens que fogem de perfis verossímeis; e, por fim, “Ilha”, produção baiana, aborda um rapaz que sequestra um diretor de cinema para que faça um filme sobre ele, um homem negro, marginal e isolado.
Segundo Victor, os longas-metragens que chegam à tenda ou à praça em Tiradentes convergem em uma tendência estética e política de fugir do derrotismo. “Os filmes buscam linhas de fuga, formas de escapar desse momento a partir de uma crescente invenção, produzindo novos lugares, tempos e corpos. São filmes que já estavam fazendo um trabalho de resistência antes do agora. Também podemos falar de tendências mais específicas como os regimes de atuação do cinema, trabalhando entre o cinema e o teatro. Ao escolher a temática e ao homenagear a Grace Passô (atriz e dramaturga), queríamos tratar dessa fronteira, sobretudo com o teatro e a performance”, aponta o curador.