Indo em direção ao teatro, onde trabalhava como contrarregra, no início do século, Babu carregava um porco e duas galinhas. Enquanto ouvia piadas na rua, pensou que um dia seu grupo no Vidigal, Rio de Janeiro, o “Nós da Rua”, seria aplaudido. “Eu tenho o nome do nosso grupo tatuado no meu braço, então, eu vou levar meu grupo até o fim dos tempos.” Agora, no lugar de ator que receberá uma homenagem na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes, Babu está vendo, como em um filme, todo sonho coletivo se tornar realidade.
Suas gravações são marcadas por surpresas familiares. Enquanto rodava “As alegres comadres” (2002), na mesma cidade onde acontecerá o evento, sua primeira filha nasceu. Já “Café com canela” (2017) possibilitou um reencontro com parte de sua família em meio a uma comunidade no Recôncavo Baiano. As próximas emoções estão reservadas para a noite desta sexta-feira (19), em Tiradentes, quando será exibido, na abertura da mostra, o filme “Café com canela”, de Ary Rosa e Glenda Nicácio, com Babu interpretando pela primeira vez um personagem homossexual. O papel de Babu neste longa ampliou suas possibilidades de interpretação, e a história de como ele foi escolhido poderia se tornar outro filme.
Em entrevista pelo telefone à Tribuna, o ator aponta sua forma de analisar e construir cada personagem e ressalta seu encanto com a carreira musical.
Tribuna – Tiradentes parece já ser uma cidade querida para você. Como está sendo receber uma homenagem e ser protagonista nesta cidade e mostra? Esteve lá outras vezes para acompanhar e participar do evento?
Babu Santana – Eu fui com o “Estômago” (2007) e uma outra vez como espectador. A gente no “Nós do Morro” estudava cinema, juntamos uma graninha e fomos lá assistir às produções. Eu vejo uma grande conspiração do universo, porque a mostra não só está me homenageando, como eu tenho esse sentimento forte pela cidade. “As Alegres Comadres” foi um grande trabalho que eu fiz lá, tive contato com grandes atores do mercado, e eu estava em estado de êxtase. A única coisa a se lamentar é que minha companheira estava em período final de gestação. Mas foi lindo. A gente estava no meio da cena, e a diretora (Leila Hipólito) cortou para anunciar o nascimento da minha filha. Eu vim correndo! O filme de abertura (Café com canela) é muito lindo e se passa na cidade da minha família, na Bahia. Terá também a estreia do “Bandeira de retalhos” (2018), que é a minha galera aqui do Rio, do Vidigal. Eu vi todo o texto ser composto no teatro e depois vi o esforço do Sérgio Ricardo, 85 anos, como um garoto correndo atrás. Estou indo para essa homenagem com a certeza de que eu não poderia ter sonhado coisa melhor.
– Como o “Chamado realista”, temática do festival, conversa com o que você tem buscado como ator?
– Eu acho que não só eu, mas toda uma geração está em busca de um cinema mais realista. Você pode ver que os documentários estão em alta. Essa busca de a arte imitar a vida é generalizada. Foi assim que eu aprendi quando estava lá no começo das aulas de teatro. A ideia sempre foi a de buscar a verdade. Eu sempre achava que o ator tinha que aprender a contar uma mentira, mas, na verdade, ele precisa aprender a contar uma verdade. E, cada vez que você se aproxima da verdade, você se torna melhor. Eu fico muito feliz de os curadores (Lila Foster e Cleber Eduardo), assim como outras pessoas que vêm falar bem do meu trabalho, identificarem nele o peso forte calcado na realidade, na verdade, porque é isso aí o que a gente persegue, estuda. Espero poder emprestar a minha verdade para muitas e muitas histórias.
– Você considera que o ator sempre interpreta a partir de seu próprio ponto de vista? O personagem de “Café com Canela”, um homossexual, é diferente de tudo o que você já havia feito como ator?
– Como personagem, sim, e é um universo maravilhoso. Eu sempre pesquiso na própria história qual a função da personagem para com a narrativa. Eu sempre busquei no teatro, na televisão, no cinema essa proximidade da personagem comigo mesmo, e eu acho que é onde começa a verdade. Por mais que eu tenha caracterização, figurino e ambientação de cenário, eu acho que o meu physic é esse, eu sou isso, a partir de mim nasce a personagem com a história. Até mesmo com o “Tim Maia” (2014), que é uma figura que todo mundo conhecia, eu busquei dentro de mim as semelhanças que eu tinha com ele, sobretudo as emocionais. Procurei também não criticar, e sim buscar os caminhos que levavam ele a fazer o que fazia. E é assim com todas as personagens. No caso do “Café com canela”, a tônica não era a orientação sexual da personagem, ele estava contando a história de uma região no Recôncavo Baiano, de uma mulher, da solidão, da amizade, buscando, dentro desses sentimentos, a verdade. E cinema é um trabalho conjunto. No “Tim Maia” eu tive uma ajuda poderosa da caracterização. Enquanto isso, eu me preocupava com o interior, isso é um ensinamento do teatro e é para isso que estou estudando até hoje. Espero poder ter mais gamas, mais personagens diferentes para que eu possa aumentar essa aquarela aí. Tem a questão do ator também ter que ser muito observador. Eu lembro que eu via a conduta do Tim Maia de um jeito, até conhecer o filho dele. Quando começou a contar as histórias do pai, me deu um estalo que me levou para um outro lugar. Eu já tirei personagens de pessoas que eu vi na rua, que estavam passando e eu pensei “que cara engraçado!”. Até de amigos meus. O jeito de falar, algum bordão, eu uso muito isso. E eu acho que a gente tem que usar de todos os artifícios que nos circundam. Esse é o modo como eu acredito na construção de personagens, eles vêm da emoção e depois você vai trabalhar a técnica.
– Além de ator, você tem se dedicado à música com o Babu Santana e Os Cabeças de Água Viva. Onde a música te permite chegar?
– Eu comecei a fazer aula de voz com o Pedro Lima, que tem uma voz poderosíssima. Ele é ator, preparador vocal e músico. Comecei a conviver com bons músicos e a ouvir música ao vivo. E a música é impressionante. Tem uma fala do Tim Maia que diz: “Cantar é maravilhoso, todo mundo quer ser cantor. O bombeiro quer ser cantor, o carteiro quer ser cantor, o jogador de futebol quer ser cantor.” É muito bom cantar, estar no meio da música, ver os instrumentos, ver o verbo no meio das melodias e o processo da música sendo criada. A parte do filme em que Tim Maia está criando “Sossego”, me deixou apaixonado. E isso tudo foi me envolvendo até que eu encontrei músicos bons e malucos o suficiente para me acompanharem no início da minha carreira. A gente está na estrada há dois anos fazendo shows, começando a criar nossas composições próprias e, se Deus quiser, virão mais novidades este ano. Estou encarando todo esse projeto como uma grande escola. Quero poder dominar essa técnica para depois tentar alçar voos maiores. É impressionante como o Tim estava completamente certo, o ator aqui quer ser cantor.
– Durante a Mostra Homenagem, seu mais novo filme, “Bandeira de retalhos”, será exibido. Qual é a história por trás desta produção com o “Nós do Morro”?
– O filme acabou de ser finalizado, e eu ainda não vi. O “Bandeira de retalhos” é sobre uma história real que ocorreu no Vidigal, conta a história do meu povo. Tentaram remover a comunidade no final da década de 1970, e o Sérgio (Ricardo, diretor do longa), que estava no meio dessa luta, escreveu essa história, que foi encenada no teatro e agora chega ao cinema. Me lembro que quando eu era menino, trabalhando como contrarregra no “Nós do Morro”, a peça precisava de um porco e duas galinhas. E eu tinha que levar os animais para o teatro. Passava pela rua, e as pessoas tiravam sarro da minha cara. Eu todo sujo de lama por causa do porco e com o cabelo grande por conta do “Cidade de Deus” (2002), que eu filmava na época. Naquele momento ali, eu estava pensando que um dia nós iríamos estar na estrada, e aquela galera, ao invés, de rir, iria bater palma. Então, quando eu vou para um trabalho e o diretor é da casa, os atores são da casa, o cinegrafista é da casa, o produtor é da casa, é um sonho concluído. Nós fomos os roteiristas, cinegrafismas e atores principais. Ver o “Bandeira de retalhos” em um festival tão glamouroso, estar em uma cidade tão charmosa, é a realização de um sonho. O filme é um sonho coletivo que virou realidade.
– Durante a gravação de “Café com canela”, no Recôncavo Baiano, você teve a feliz surpresa de encontrar familiares na comunidade onde gravou o filme. Como foi essa história?
– Descobri que o filme seria rodado lá quando saía para viajar com a equipe. Minha bisavó, meu avô e meus tios-avôs são de São Félix, que é ao lado de Cachoeira. São cidades separadas por uma ponte. Depois que a equipe me deixou no hotel, eu pensei: “Acho que consigo chegar na casa do meu tio”. Tinha estado lá com 6 anos de idade. E foi emocionante andar pela cidade e chegar sozinho até a casa do meu tio. Não sei se entrou no filme, mas o meu tio chegou a gravar cenas para o “Café com canela”. Ele tem um grupo de samba de roda, e eu nem sabia disso. Às vezes, as pessoas me perguntam se tem algum dote artístico na família, e eu achava que não, aí eu chego lá e meu tio tem uma banda, os filhos dele tocam, os netos… O “Café com canela” foi uma das coisas mais lindas que aconteceu na minha carreira.